Dossiê revela as mentiras na reconstrução do Afeganistão
Por Solange Reis*
Um dossiê sigiloso do governo americano revelou que líderes civis e militares dos Estados Unidos mentiram sobre a Guerra no Afeganistão. As autoridades sabiam do fracasso ao tentar reconstruir o país, mas falavam publicamente dos supostos progressos alcançados. Era preciso manter um mínimo de apoio popular para que o Congresso continuasse a liberar as verbas da reconstrução que justificava a presença militar permanente naquele país. Por sua vez, o objetivo de ‘reerguer’ o Afeganistão ajuda a manter toda uma infraestrutura de guerra para o complexo industrial-militar.
A maioria dos depoimentos colhidos pela investigação, incluindo os de quem ocupava altos postos, indica que ninguém sabia o que fazia na guerra, quais eram os objetivos e quem era o inimigo. Um desastre do ponto de vista estratégico, operacional e moral, mas também uma dura lição requentada. Assim como se viu na Guerra do Vietnã, os governos Bush, Obama e Trump não conseguiram desenvolver um plano de retirada factível do Afeganistão.
Pelo direito à informação
As revelações constam de um conjunto de documentos intitulado Lessons Learned (Lições Aprendidas), preparado pelo Escritório do Inspetor Geral para Reconstrução do Afeganistão (SIGAR, na sigla em inglês). Esta agência federal independente foi criada pelo Congresso, em 2008, para ser um órgão fiscalizador dos gastos com a reconstrução do Afeganistão. Entre 2014 e 2018, o SIGAR entrevistou 428 pessoas, gerando um relatório de duas mil páginas e inúmeros áudios.
Embora não fosse originalmente confidencial, o material passou a sofrer censura depois que o jornal The Washington Post (WP) tentou torná-lo público, há três anos. Foram necessárias duas ações judiciais e invocar a Lei de Liberdade de Informação. O processo legal do jornal contra o SIGAR continua correndo, para que os nomes das pessoas entrevistadas sejam todos revelados. Enquanto isso, o resultado do furo de reportagem pode ser verificado em The Afghan Papers: A secret history of the war.
Guerra sem fim
O Afeganistão foi invadido pelos Estados Unidos, em 2001, para localização de Osama bin Laden e desmonte de sua organização, a Al Qaeda. Mentor oficial dos trágicos atentados de 11 de setembro, o terrorista também foi responsável por outro feito inédito. Para capturá-lo e destruir a Al Qaeda, a OTAN invocou, pela primeira e única vez, o Artigo 5 de seu estatuto. Ou seja, a regra de que um ataque a um membro da aliança significa um ataque a todos. Assim, os Estados Unidos e aliados se envolveram numa guerra assimétrica da qual não sabem como sair.
Caçar um terrorista nômade, porém, não era o único objetivo de Washington. Destruir a Al Qaeda e o Talibã, transformar o Afeganistão em uma democracia nos moldes ocidentais e fincar um pé na geopolítica da Ásia Central faziam parte do plano ampliado de George W . Bush e, posteriormente, de Barack Obama.
Embora Bush tenha iniciado a guerra, Obama a levou a uma dimensão muito maior. Em sua gestão, o número de soldados americanos no Afeganistão variou de aproximadamente 25 mil, em 2008, para 100 mil, em 2010. Quando Obama deixou o poder, o contingente havia caído para 10 mil dedicados ao treinamento das forças oficiais afegãs. Àquela altura, porém, a guerra já estava para lá de perdida para os americanos. Como o WP mostra na reportagem, o treinamento do Exército afegão provou-se ineficaz.
Além disso, a estratégia de reconstrução do Afeganistão tinha sido substituída por um plano de mero controle do terrorismo, embora o governo americano insistisse em comunicar que o objetivo fosse estabilizar o país. Em 2015, numa reunião com a equipe de Segurança Nacional, Obama deu por encerrado o processo de nation-building (transformação em democracia de um país destruído por guerra). Cancelando novamente a retirada dos soldados, o democrata concentrou os esforços em evitar que o Talibã tomasse conta do país. Diante das câmeras, no entanto, o discurso era de reconstruir o Afeganistão no modelo democrático-liberal.
Tudo em vão. Antes da invasão pelos Estados Unidos, em 2001, o Talibã controlava 90% do território afegão. Acuado nos primeiros tempos da guerra, o grupo se recuperou; hoje, domina dois terços do Afeganistão.
Passivo da guerra
Depois de dezoito anos, dezenas de milhares de mortos e cerca de um trilhão de dólares – sem contar os gastos com operações clandestinas da CIA, juros, a assistência a veteranos e outros mais – os Estados Unidos têm pouco a comemorar. Osama bin Laden foi morto no Paquistão pelos Navy Seals, uma tropa de elite americana. Mas a vitória se limitou a isso. De fato, a Al Qaeda se encolheu no Afeganistão, mas se expandiu para a África, onde agora alimenta os conflitos locais e regionais.
O Talibã não só continuou firme, como voltou a dominar o Afeganistão, apesar de as instituições apoiadas pelos Estados Unidos formarem o débil governo oficial. Para exemplificar o grau de fragilidade institucional, as eleições de setembro último não foram capazes de gerar um resultado. Sem mencionar as ameaças e os atentados feitos pelo Talibã que quase inviabilizaram o pleito. Mais do mesmo no cotidiano de um país dividido entre diversas organizações, tribos e interesses externos.
Outra herança maldita da invasão americana é o retorno do ópio. Entre 1996 e 2001, quando o Talibã comandava o país, a droga havia praticamente deixado de existir no Afeganistão. Com a guerra instalada e o subsequente vácuo de poder, as plantações de papoula e a produção do ópio foram retomadas. Sem uma campanha adequada para combatê-las, os aliados ocidentais acabaram por estimulá-la. Os britânicos pagavam os fazendeiros para queimarem as lavouras, o que os incentivava a plantar mais. Depois, os americanos passaram a destruir as plantações sem qualquer indenização. Isso jogou os agricultores nos braços do Talibã. Hoje, o Afeganistão produz oitenta por cento do ópio mundial, no que se constitui a segunda fonte de riqueza nacional, depois da receita com a guerra. Agora, o dinheiro do ópio financia o Talibã e o próprio governo afegão.
Além de não adquirir o posicionamento geopolítico que desejavam na região, os Estados Unidos sequer sabem como fazer para retirar a pesada parafernália militar e catorze mil soldados remanescentes. De 2001 até hoje, 775 mil soldados americanos se revezaram no campo de batalha ou em atividades correlatas. As autoridades sempre foram evasivas quanto ao número de mortos, mas as Lessons Learned atestam que perderam a vida:
- 2.300 soldados americanos
- 1.145 soldados da OTAN
- 3.814 mercenários contratados pelos EUA
- 64.124 mil soldados afegãos
- 43.074 mil civis afegãos
- 42.100 talibãs
- 417 prestadores de ajuda humanitária
- 67 jornalistas
Foram gastos 133 bilhões de dólares na reconstrução, boa parte com empresas particulares contratadas para cuidar da infraestrutura. O valor, ajustado pela inflação, supera o montante no Plano Marshall para reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial.
Os exemplos das dotações para reconstrução beiram o absurdo. Uma empresa terceirizada disse que precisava gastar US$ 3 milhões por dia em projetos sociais e de infraestrutura em um único distrito afegão. O dinheiro era parte de orçamentos aprovados pelo Congresso americano para o nation-building. Isso incluía a construção de escolas e pontes, mas também de instituições democráticas em um país com conceitos de organização política não centralizadas. O tribalismo é tradicional no Afeganistão, embora o país tenha vivenciado outras formas, como a monarquia e o comunismo.
“Nossa política era criar um governo central forte, o que era uma idiotice porque o Afeganistão não tem uma história de governo central forte”, disse um ex-funcionário do Departamento de Estado ao SIGAR. “O prazo para a criação de um governo central forte é de 100 anos, o que nós não tínhamos”, ironizou.
Mau aluno
As Lessons Learned tinham como objetivo criar parâmetros para invasões futuras em outros países. Mas os Estados Unidos são um mau aluno. Já em 1971, a revelação dos Pentagon Papers não só acelerou o encerramento da Guerra do Vietnã – após a população americana entender que fora enganada sobre a guerra – como levou aos acontecimentos que culminaram com a renúncia do presidente Richard Nixon.
De acordo com os documentos e áudios colhidos pelo SIGAR, as autoridade americanas divergem sobre a missão no Afeganistão. Para uns, trata-se de construir a democracia. Outros têm uma visão geopolítica e querem criar uma nova balança de poder regional. Essa disputa entre objetivos locais e regionais faz toda a diferença na hora de definir a estratégia e alocar recursos. O resultado são ações sobrepostas e ineficazes.
Outra divergência ou desconhecimento é quanto ao inimigo. A certa altura da guerra, generais e soldados não tinham certeza contra quem lutavam. Alguns acreditavam ser o Talibã e a Al Qaeda, enquanto outros miravam os senhores da guerra, muitos deles financiados pela CIA. O próprio governo afegão, a quem o Pentágono fornecia treinamento e armamento, não era consensualmente visto como confiável.
O Paquistão era mais uma incógnita. Afinal, seria um país amigo ou inimigo? Possuidor de bomba nuclear, o Paquistão soube explorar a situação para sua própria projeção de poder e capacidade de barganha. Em tratando-se de uma região potencialmente conflitiva – outros atores regionais são Rússia, China, Índia, Irã e, até mesmo, Arábia Saudita – a estratégia americana pode ser considerada uma catalisadora de problemas, um estopim de bombas, como tem sido no Oriente Médio.
Depoimentos
Bob Crowley, um coronel do Exército que atuou como conselheiro para contrainsurgência disse que “a verdade raramente era bem-vinda nas bases em Cabul” quando se tratava de erros de estratégia ou de corrupção no governo afegão.
John Garofano, estrategista da Escola Naval de Guerra, revelou que gráficos com falsos dados positivos eram amplamente produzidos e exibidos por oficiais de altas patentes para incentivar os subordinados.
De acordo com uma pessoa identificada apenas como integrante sênior do Conselho de Segurança Nacional, entre 2009 e 2011, a instrução no governo Obama era dizer que o aumento do número de soldados havia funcionado, quando a realidade era bem diferente. Até o crescimento dos casos de atentados suicidas pelo Talibã era tratado como sinal de desespero do inimigo, não como ofensiva.
O dossiê destaca as declarações de grande figurões, como o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld (2001-2006), sobre o “incontestável sucesso” da guerra. O secretário, no entanto, vinha sendo minuciosamente informado sobre o aumento do poder talibã e da insatisfação popular com o governo afegão. O mesmo Rumsfeld que dissera, em 2002, que jamais seria possível retirar os soldados do Afeganistão se não fosse criada algum tipo de estabilidade.
Lições requentadas e desaprendidas
O dossiê revela que foram dadas muitas informações falsas, mas um bom resumo veio de John F. Sopko, o inspetor geral do SIGAR. “O povo americano tem sido constantemente enganado”, disse Sopko. É importante lembrar que a população foi ludibriada não apenas pelo Executivo e as sacrossantas instituições militares, mas pelo próprio Congresso. Pois, se o Legislativo encomendou a investigação, o que fez pela transparência, enquanto o The Washington Post travava as batalhas judiciais?
A guerra, que já contava com pouco apoio popular, tem hoje mais chance de ser encerrada do que em qualquer momento nestes últimos quase vinte anos. Para Donald Trump, que é contrário à manutenção dos soldados no Afeganistão, os depoimentos vêm a calhar. Por outro lado, a desinformação produzida durante a sua gestão poderão cobrar-lhe um preço na eleição de 2020.
Embora elas se pareçam em muitos aspectos, a guerra no Afeganistão não tem o mesmo apelo emocional que teve a do Vietnã. Esta se desenrolou no contexto da Guerra Fria, do alistamento militar obrigatório, do movimento pelos direitos civis dos negros e das marchas pacifistas. Faltavam armas cibernéticas, ao passo que sobrava romantização. No caso do Afeganistão, um país tratado como bárbaro pela própria imprensa mundial, as imagens de sofrimento humano pouco circulam nos jornais e na televisão. Por tudo isso, é difícil dizer se as revelações mudarão o curso da atuação americana no teatro de guerra.
Porém, um palpite é possível. Para os belicistas de plantão no Congresso, na Casa Branca e nos think tanks neoconservadores e intervencionistas liberais em Washington, é hora de criar novos monstros a combater em alguma outra parte do planeta.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).