Uma síntese das relações Brasil-Estados Unidos
Crédito da foto: AP/Julio Cortez
Série ‘Relações Brasil-EUA’, parte I
Por Angelo Raphael Mattos*
As relações entre o Brasil e os Estados Unidos têm sido, ao longo do tempo, marcadas por momentos de maior e de menor aproximação. Essa característica pode ser explicada por diversos fatores, como pontos de convergência, ou de afastamento, entre as agendas de política externa dos dois países. No caso dos EUA, destaque para a alternância entre posicionamentos mais ou menos internacionalistas, o que se refletiu em seu relacionamento com a América Latina. No caso do Brasil, a busca por investimentos e parcerias que impulsionassem seu desenvolvimento, notadamente no campo da indústria, militar e do comércio exterior.
Como bem observou Monica Hirst, ao longo do século XX e início do XXI, é possível notar cinco principais momentos nesse relacionamento, que são: a aliança, no contexto de adensamento das relações no início do século passado; o alinhamento, entre os anos de 1940 e 1974; a autonomia, durante o final do regime militar e início da redemocratização; os ajustes, ao longo da década de 1990; e a afirmação, dos anos 2000 ao patamar dos dias de hoje.
Durante a gestão do Barão do Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores (1902-1912), o Brasil buscou o que Edward Burns (2003) chamou de “aliança não escrita”, que se caracterizou por um relacionamento mais próximo e cordial com os Estados Unidos. Nesse contexto, o patrono da diplomacia brasileira procurou afastar possíveis intervenções europeias e consolidar as fronteiras do Brasil. Ampliar a venda do café para o mercado norte-americano também era um dos principais pontos da política de aproximação com os EUA, que crescia como potência.
Alguns anos depois, de modo pragmático, o Brasil alternou momentos entre acentuada proximidade com os EUA e outros na esteira dos acordos com a Alemanha. Um dos objetivos principais do Brasil, àquela época, era angariar investimentos para consolidar a indústria de base nacional e reaparelhar as Forças Armadas, além de buscar prestígio junto à comunidade internacional, por meio da participação no desfecho da Segunda Guerra Mundial e de sua presença quando da fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Nesse período da chamada equidistância pragmática, o Brasil fechou acordo comercial com os EUA em 1935, e outro de comércio compensado com a Alemanha no ano seguinte, o que preocupava o governo norte-americano. O então chanceler Osvaldo Aranha viajou aos EUA e encabeçou a chamada Missão Aranha. O objetivo era consolidar a vinda de investimentos dos EUA para o Brasil, o que se materializou em uma série de cinco acordos. Entre eles estava o apoio norte-americano para a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), hoje a maior da América Latina.
Assimetria nas expectativas
No âmbito do governo Dutra (1946-1951), Brasil e EUA constituíram uma comissão técnica para estudos econômicos, a chamada Missão Abbink (1948). Nela, os EUA recomendavam investimentos privados no Brasil. Isso frustrou as expectativas do governo brasileiro, que esperava obter investimentos do setor público norte-americano. O resultado foi o conhecido “Memorando da Frustração”. Em 1951, nova comissão técnica foi criada com o mesmo intuito de conseguir investimentos para o Brasil, a chamada Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. Por meio de um acordo do mesmo ano, o Brasil passa a fornecer aos EUA materiais como urânio e magnésio. Nessa esteira, mesmo com a assinatura do TIAR, um tratado de segurança coletiva entre os países do hemisfério americano e a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1947 e 1948, respectivamente, houve um relativo distanciamento entre os EUA e a América Latina. Na primeira fase da Guerra Fria, as políticas norte-americanas voltaram-se predominantemente para a Europa. No governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), apesar de os EUA não terem despendido tanta energia em torno da Operação Pan-Americana (OPA), foi lançada a chamada Aliança para o Progresso, o que também não teria tido efeitos práticos significativos para o Brasil.
Durante o regime militar, o Brasil pagou compensações a empresas norte-americanas. Algum tempo antes do pagamento, o governo dos EUA reiterou o pedido para que o Brasil cumprisse os compromissos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e implementasse medidas fiscais mais austeras. Nesse contexto, também exigiu que fossem pagas as tais indenizações às subsidiárias das empresas norte-americanas Bond & Share e International Telephone and Telegraph (ITT), que estavam sendo encampadas pelo então governo do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Apesar do alinhamento com os norte-americanos, houve importantes distensões no relacionamento entre o Brasil e os EUA nesse período. A diplomacia brasileira não assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) de 1968. Ao invés disso, celebrou acordo internacional na área de segurança com a Índia, o que incomodou os EUA. O Brasil viria a aderir ao TNP três décadas mais tarde, já no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Somado a isso, nesse período, o Brasil foi criticado pelos EUA por questões de direitos humanos e de comércio. Em 1989, o governo norte-americano colocou o Brasil na chamada seção 301, que é parte da Lei de Comércio do país. Parceiros nela enquadrados são acompanhados de forma mais detida pelo Departamento de Comércio dos EUA e são considerados praticantes de uma política de comércio exterior e de propriedade intelectual injusta, segundo os parâmetros estadunidenses (Fair Trade), o que pode implicar restrições ao comércio. O Brasil, por exemplo, sofreu prejuízo de US$ 120 milhões no setor de celulose, em face das restrições comerciais embasadas na aplicação desse mecanismo legal de política comercial. O Brasil foi retirado da seção 301 já na década de 1990, quando as relações entre os dois países se normalizaram. Nesse período, os diferentes governos brasileiros aderiram aos principais regimes internacionais, tendo participado da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, ratificado o TNP, reconhecido a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos e sediado a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), a Rio-92.
Governos Lula e Dilma
Nos governos de Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011-2016), as relações Brasil-EUA se mantiveram em um bom patamar de diálogo, sobretudo no que se refere ao governo Lula. Nesse momento, o Brasil não se isentou de tecer críticas à guerra do Iraque. Um período em que a ideia de uma Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA) foi de vez enterrada. O Congresso Nacional brasileiro também não deu prosseguimento à proposta dos EUA de usar a Base de Alcântara, no Maranhão, para lançamento de foguetes, o que, recentemente, tem sido objeto de nova discussão no Parlamento. Naquela época, em audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (CREDN), o então ministro da defesa, Geraldo Quintão, explicou que era preciso observar de modo cuidadoso se o Acordo de Salvaguarda Tecnológica entre Brasil e EUA, que envolvia o Centro de Lançamento de Alcântara, era de cooperação científica e tecnológica, ou se era apenas um contrato comercial de aquisição de foguetes, de satélites, ou de outra tecnologia. Também seria importante determinar se se tratava de contrato de aluguel, ou de arrendamento, ou ainda, se versava sobre tecnologia sensível de uso dual.
Além dessa temática, Brasil e EUA discutiam os biocombustíveis e a ampliação do comércio entre os dois países. Os EUA são, hoje, o segundo maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China. Essa relação comercial ainda apresenta, no entanto, grande potencial de crescimento. O montante dos valores de comércio entre os dois países permanece praticamente o mesmo desde o governo Lula e, apesar dos déficits consecutivos registrados na balança comercial, a relação se mostra equilibrada.
Na gestão Dilma Rousseff, apesar do caso de espionagem relatado pelo Brasil e pela Alemanha na ONU, as relações entre os governos brasileiro e norte-americano se mantiveram em bom tom e foram elevadas ao status de Diálogo de Parceria Global (2011), como resultado da visita de Barack Obama (2009-2017) ao Brasil. Destacam-se da relação, naquele momento, a assinatura de mais acordos entre os dois países, especialmente no que se refere aos direitos das mulheres e à cooperação em Ciência e Educação, na esteira do Programa Ciência sem Fronteiras, assim como a tentativa de flexibilizar a questão dos vistos para brasileiros entrarem nos EUA. Além disso, já no governo de Michel Temer (2016-2018), o vice de Donald Trump, Mike Pence, veio ao Brasil discutir a questão da Venezuela, tendo sido criticado pelo prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que se recusou a recebê-lo.
Em compasso de espera
No contexto hodierno, a política exterior do Brasil tem priorizado o relacionamento com os EUA, na busca de mais cooperação e investimentos entre os dois países. Brasília também espera o apoio de Washington quanto à entrada brasileira na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que conferiria maior credibilidade e segurança jurídica ao Brasil em questões financeiras e comerciais e mais investimentos diretos. Além disso, a questão do comércio do etanol deve ocupar boa parte da agenda de negociações entre as duas diplomacias nos próximos encontros. Até recentemente, o Brasil aplicava uma taxa de 20% sobre um excedente de 600 milhões de litros do produto estadunidense. Os EUA impõem, contudo, uma forte barreira para o Brasil ao limitar as importações de açúcar do país em 150 mil toneladas por ano. Independentemente do desfecho das próximas negociações sobre esse tema, ambos continuarão interferindo um no mercado do outro, com ou sem majoração de taxas. Nas últimas conversas sobre outras temáticas da agenda bilateral, o Brasil tem feito concessões aos EUA e, de modo geral, aguardam-se efeitos mais práticos e menos retóricos no momento atual dessa relação.
* Angelo Raphael Mattos é doutorando, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com apoio CAPES.