Os Estados Unidos e a Ordem Internacional Contemporânea: notas
Panorama OPEU v. 9 n. 2 Setembro 2019*
Por Eduardo Barros Mariutti**
1 – O Poder dos EUA e os fundamentos da ordem mundial contemporânea
A ordem política e econômica atual repousa em duas bases interligadas. Um de seus fundamentos é uma distribuição do poder militar essencialmente assimétrica que confere uma influência política extraordinária aos Estados Unidos. Até o momento, a despeito das profundas agitações em curso na cena mundial, em sua essência, a configuração vigente da correlação de forças não está sendo seriamente contestada por nenhum Estado, ou bloco de Estados. Já o segundo fundamento reside na clara supremacia do dólar, a principal moeda internacional.
Embora a causalidade não seja direta, há uma clara interpenetração entre a postura militar americana e os arranjos financeiros consolidados pelos EUA e pelos demais Estados centrais no pós-guerra e, particularmente, depois de 1973. Ambas as dimensões, na realidade, formam um mecanismo de retroalimentação que, a despeito dos atritos e fricções cada vez mais pronunciadas, ainda opera.
A capacidade de investir pesadamente em armamentos sofisticados sem constrangimentos externos significativos depende da centralidade de Wall Street e dos títulos públicos americanos na alta finança internacional. Esta, por sua vez, por penetrar no interior das diversas sociedades civis, ajuda a sustentar, de dentro para fora, o status quo da política internacional, amarrando um conjunto complexo de interesses privados ao dólar que, deste modo, permanece sólido tanto em sua dimensão privada quanto pública.
2 – As transformações no plano da economia política mundial
Desde a década de 1990, testemunha-se um conjunto complexo de transformações no cenário mundial que, grosso modo, envolveu uma mutação na geografia econômica mundial, em sincronia com transformações incrementais na arquitetura do sistema financeiro internacional, na organização das empresas transnacionais, nos padrões tecnológicos e na reconfiguração dos direitos de propriedade em escala internacional. Cada uma dessas múltiplas transformações seguiu uma temporalidade própria, dotada de alguma peculiaridade que, em grande medida, repousa na lenta, porém incisiva, mudança geopolítica posta em marcha desde então.
Antes de mais nada, é fundamental descrever sinteticamente o padrão geral de crescimento econômico inaugurado na década de 1990. Do ponto de vista interno à economia americana, o investimento se aglutinou no processo de concentração dos grandes varejistas (o Walmart e a Amazon são os casos mais emblemáticos), na indústria do entretenimento (não apenas o cinema e a televisão, mas também jogos eletrônicos e aplicativos) e no setor de Pesquisa e Desenvolvimento.
No plano internacional – com o apoio de Washington –, verificou-se um duplo padrão de investimento: i) uma pressão pela abertura financeira na América Latina, comandada por uma lógica patrimonial que envolveu a aquisição de empresas públicas e privadas ligadas predominantemente ao setor de serviços e utilidades públicas; ii) o deslocamento dos investimentos produtivos (I.D.E. em Greenfield) para a Ásia, sobretudo para a China, fato que remodelou as antigas cadeias produtivas: este país se tornou o elo final de uma vasta rede de exportação orientada para o mercado dos EUA e dos países centrais que, para poder funcionar, demanda peças e componentes dos demais países asiáticos e recursos naturais da América do Sul e da África.
O resultado deste padrão foi a cristalização de um novo nexo dominante na economia internacional: a sinergia entre a economia dos EUA e da China e suas externalidades. O barateamento das mercadorias produzidas na Ásia garantiu a fúria consumista das famílias estadunidenses e garantiu a rentabilidade dos grandes varejistas. Na outra ponta, as reservas em dólar acumuladas na China pelo gasto dos americanos fecham o circuito, pois permitem o financiamento do déficit dos EUA, mediante a compra de títulos públicos e demais ativos financeiros por parte de Pequim. Este arranjo permitia aos chineses, porém, usarem seus dólares para comprar empresas estrangeiras e ampliar o controle direto da China sobre recursos naturais na periferia, essenciais para suportar seu crescimento e, de certo modo, para transferir também o dinamismo para estas regiões, convertendo Pequim em um potencial rival direto dos EUA.
A crise de 2008 sinalizou os primeiros limites desta forma organização da economia internacional. As tentativas para superá-la não atacaram a raiz do problema: o que se fez foi, simplesmente, socializar as perdas, mediante a transposição da dívida privada – o famigerado bailout – para o setor público em um cenário de tendência à queda da arrecadação. A política de redução dos juros dos EUA e de emissão de dólares encorajou os especuladores a migrarem para os papéis dos países periféricos e semiperiféricos que oferecem taxas de juros maiores, preservando deste modo o ganho financeiro dos grandes investidores sem que ocorresse a retomada consistente dos níveis de emprego.
A isto se seguiram ondas de revoltas populares em escala mundial, com pautas e formas de manifestação muito heterogêneas que, invariavelmente, detonaram mecanismos violentos de repressão. Tudo isto ocorreu em meio à intensificação crescente da rivalidade interestatal em praticamente todas as zonas de maior relevo geopolítico.
3 – Os desafios do ponto de vista dos EUA: a conjuntura atual
O principal desafio aos policy makers em Washington envolve preservar a relação até então sinérgica entre a busca da superioridade militar dos EUA em escala mundial e a preservação da sua liderança no setor de alta tecnologia. Ambas as tarefas dependem da preservação do dólar no topo da pirâmide monetária internacional, em um momento em que a rivalidade entre as zonas monetárias está se intensificado, em grande parte estimuladas pelas transformações na geografia econômica mundial e o correspondente aquecimento da temperatura política na Eurásia.
Além disso, para complicar ainda mais o cenário, o processo de transnacionalização das grandes corporações mundiais reduziu o poder de controle dos Estados sobre as suas operações, gerando tensões sociais suplementares. Do ponto de vista geopolítico, parte do problema deriva do próprio sucesso na Guerra Fria. A derrota da URSS retirou uma das principais legitimações internas para o comprometimento fiscal destinado a garantir a segurança do “mundo livre” e, do ponto de vista internacional, para os privilégios “exorbitantes” da moeda americana, bem como para justificar sua presença militar maciça na Eurásia. Em grande medida, em um paradoxo aparente, é exatamente a assimetria de poder em armamentos convencionais por parte dos EUA que tem alimentado seus principais temores: a proliferação das armas nucleares e o terrorismo internacional.
3.1 – O problema da guerra assimétrica – É recorrente entre os especialistas a sugestão de projetos para tentar reduzir o papel das armas nucleares como garantia de dissuasão na política de segurança dos EUA. Ancorado na utopia de um mundo sem armas nucleares, o governo Barack Obama tendeu a estimular a substituição progressiva das ogivas nucleares americanas por armamentos convencionais que tenham a mesma função (como o projeto Conventional Prompt Global Strike), porém, com danos colaterais menores. No entanto, esta iniciativa não foi muito bem-sucedida. A reação interna foi praticamente imediata. As bases mais militaristas dos republicanos no Congresso resistiram imediatamente e o Pentágono nunca embarcou no ideal de tentar efetivamente eliminar as armas nucleares, mesmo em um cenário de longuíssimo prazo. Por fim, Obama nunca conseguiu convencer Moscou e Pequim da viabilidade da eliminação deste tipo de armamento.
Há ainda outro aspecto a ser destacado. O reforço e ampliação da capacidade de uso remoto de armas convencionais pelos EUA acabou estimulando a demanda pela difusão das armas nucleares. A percepção geral é que quanto mais os EUA aumentarem sua superioridade em meios convencionais, mais atrativas vão ser as armas nucleares para os Estados menos poderosos, exatamente por seu potencial de dissuasão local a custos relativamente pequenos.
Desde que assumiu o poder, Trump tem-se mostrado decidido a ampliar tanto a dimensão nuclear – principalmente com a produção e o eventual emprego de armas nucleares de uso tático – quanto a convencional das Forças Armadas estadunidenses sinalizando inclusive a possibilidade de recorrer ao emprego limitado de ataques nucleares. Este fato claramente acirra as tensões e inviabiliza as políticas de desarmamento.
Por fim, é exatamente esse exagerado desequilíbrio de poder militar em favor dos EUA que, na prática, engendra o terrorismo como tática dominante pelos grupos mais fracos e, sobretudo, como um fenômeno transnacional:
“Mas, em suas manifestações precedentes, o terrorismo surgia como um elemento detonador da revolta, a antessala de enfrentamentos abertos e maciços que culminariam na vitória da ‘boa’ causa. O que há de perturbadoramente novo na forma que ele adquire no presente é a sua conversão tendencial em estratégia autônoma, desconectada dos processos de luta conduzidos por grupos sociais identificados. Essa estratégia conta com a elevada sensibilidade da opinião pública aos espetáculos mórbidos de violência indiscriminada que particiona, e se vale de todas as possibilidades abertas pelos meios de comunicação de massa para veicular sua dupla mensagem. Nesse sentido, o terrorismo transnacional é o avesso do ‘novo modo ocidental de guerra’: uma forma extrema, pelo mais fraco, de produção de assimetria” (CRUZ, 2011, p. 7, grifo meu).
Portanto, as “saídas” pela via militar simplesmente reproduzem e intensificam os problemas. Nesta mesma linha, deve ser analisado o reforço das operações “secretas” – realizadas por drones, ou por forças especiais – para assassinar insurgentes (target killing e o controverso signature killing) e demais “ameaças”, muito frequentes no Paquistão e no Iêmen. Estes expedientes de fato eliminam alvos considerados importantes, mas a um custo muito grande. O elevado número de vítimas colaterais age como uma catalisador do radicalismo e, no fim das contas, agrega mais membros para a causa dos insurgentes.
3.2 – A via para a Guerra do Iraque e seu legado – George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump tiveram de operar dentro de um equilíbrio precário entre forças que, em uma situação limite, podem entrar em franca oposição. De um lado, situam-se as pressões por uma economia internacional mais aberta (pelo menos para o investimento americano), que emanam da rede de interesses plutocráticos que gravitam ao redor das corporações transnacionais, dos grandes varejistas e dos investidores corporativos que possuem tentáculos em Washington.
Na outra ponta, posicionam-se as forças de matiz mais nacionalista e protecionista, expressas pelos setores econômicos bem enraizados na economia americana, mas que são menos competitivos (a indústria de base, citricultura, alumínio, etc.) e, portanto, dependem do protecionismo estatal e, muitas vezes, de uma diplomacia econômica mais agressiva. Ao lado destes, posicionam-se os sindicatos mais poderosos e sua rede de associados que tendem para uma orientação mais “nacionalista”.
Por fim, há um gigantesco aglomerado de grupos socioeconômicos menores e mais difusos que, exatamente por serem fragmentários, não possuem capacidade de exercer pressão política em bases institucionais, sendo, portanto, menos previsíveis. Boa parte deles é muito mais suscetível aos apelos apocalípticos e ao populismo nacionalista. A resultante final da orientação da política externa estadunidense depende, em grande medida, dos arranjos entre estas forças que, até o momento, ainda não entraram em uma tensão irreconciliável. Esta acomodação não tem raízes muito profundas, porém.
A grande expansão econômica dos anos 1990 gerou um efeito curioso: amorteceu as tensões sociais ligadas mais diretamente à economia e, ao mesmo tempo, ampliou as divergências ligadas aos costumes e às questões raciais e de gênero. Aparentemente, se atentarmos para o debate púbico no período, a América tinha superado o “problema econômico”, fato que deslocou as linhas de cisão para a dimensão cultural e religiosa. A prosperidade era dada como certa. A questão envolvia definir quais eram os valores genuinamente “americanos”, e isso gerava uma tensão que tendia a posições irredutíveis entre as vertentes seculares (extremamente divididas quanto ao papel dos EUA no mundo) e o amplo arco de vertentes, cuja orientação principal é religiosa.
Neste cenário, era difícil conciliar as diversas posições, e o chamado “projeto imperial” – ao estilo de Irving Kristol – tendia a sofrer resistência dos setores sociais mais orientados para os problemas internos dos EUA. No entanto, o atentado ao World Trade Center em 2001 produziu uma transformação radical, ao promover dois movimentos.
O primeiro foi a preponderância, dentro dos conservadores, de uma linha diplomática mais agressiva e intervencionista, disposta a “completar” a americanização do mundo: os neoconservadores. O segundo movimento derivou da criação de um ambiente propício à aliança entre os neo e teoconservadores que encurralou tanto a esquerda quanto os conservadores isolacionistas e, deste modo, abriu caminho para a invasão do Iraque. Mas esta associação se explica, fundamentalmente, pelas circunstâncias.
O único ponto de convergência que não é meramente conjuntural deriva do peculiar universalismo estadunidense que, simplificando, ramifica-se em uma vertente secular – da qual fazem parte os neocons – e outra mística – na qual os teocons representam a posição mais extrema. Mas o alcance reduzido desta coalizão conservadora é evidente: o pragmatismo dos neocons é, no limite, incompatível com a lógica de convicção dos teoconservadores. E, como será discutido logo à frente, este bloco foi rompido pela formação de novas ramificações dentre os conservadores que pavimentou a eleição de Donald Trump.
Descontentes com os inúmeros blowbacks derivados do estilo indireto de domínio estadunidense sobre o Oriente Médio – onde a Arábia Saudita figura hoje como o modelo paradigmático –, parte dos policy makers fez uma aposta ousada: aproveitar o clima que se seguiu ao 11 de Setembro para invadir e utilizar o Iraque como uma cabeça de ponte para promover uma mudança radical de regime em todo Oriente Médio. Uma vez consolidado o novo poder – com apoio direto e treinamento oficial de Washington, amparado no uso das empresas privadas de segurança –, as sanções econômicas poderiam ser retiradas.
Isso daria livre vazão às exportações, estimulando a economia local, para estabelecer um programa de longo prazo similar ao que ocorreu no Japão após o final da Segunda Guerra mundial: exercer uma pressão para as elites locais modernizarem suas formas de domínio, distribuindo melhor a riqueza, gerando um grau maior de conforto social para a população que, neste cenário, talvez enxergasse algum papel benevolente nas ações dos EUA. Isto poderia encorajar a adesão – bandwagon – de algumas zonas radicalizadas próximas ao Iraque, criando um novo cenário que poderia abrir alguma margem para resolver os problemas mais espinhosos, como a questão palestina, por exemplo e, deste modo, consolidar uma orientação pró-americana na região de forma menos abrasiva e com menos custos no longo prazo.
No entanto, a invasão deste país iniciada em 2003 detonou uma guerra civil violenta que não somente passou a retroalimentar a tendência à guerra assimétrica como alargou a zona de sua incidência nesta região. Durante o conflito, o Irã passou a dar suporte às milícias iraquianas e, com isto, elevou significativamente as baixas no Exército americano, promovendo uma escalada do conflito que reforçou o poder de Teerã. Esta percepção de força levou o Irã a acelerar seu programa nuclear e, frente a esta nova cartada, mesmo enfrentando dificuldades no Iraque, Washington passou a considerar ataques às instalações iranianas e até mesmo uma invasão.
Após vencer as eleições, Barack Obama – crítico ferrenho da guerra ao Iraque – tentou uma tática alternativa que, já no final do segundo mandato, culminou no “The Joint Comprehensive Plan of Action”, isto é, o acordo nuclear de 2015. Esta medida foi fustigada por Donald Trump durante sua campanha e, já instalado no poder, o presidente republicano não apenas denunciou o acordo unilateralmente em 2018, como foi além: estabeleceu sanções econômicas pesadas à economia do Irã (particularmente sobre as exportações de petróleo) e impôs uma política de “pressão máxima”, composta por uma lista de 12 demandas que, na prática, contradizem todos os elementos principais da estratégia regional de Teerã.
O Irã, por sua vez, não cedeu e passou a adotar um conjunto de retaliações agressivas, onde a mais explícita foi a controversa derrubada recente do drone americano no Golfo Pérsico. Esta retaliação, que conta com apoio popular entre os iranianos, combinada com a insistência de Washington na pressão ao regime iraniano – Mike Pompeo tem insistido na possibilidade de uma ação militar contra Teerã – pode desembocar em uma guerra de fato, algo que traria consequências imprevisíveis e um elevado potencial de escalada.
4 – O Front Interno
Embora muito saliente na camada mais erudita da sociedade americana, a Política Internacional sempre foi um tema secundário no debate público estadunidense. E, especialmente para o cidadão médio, esta temática é abordada sempre do ponto de vista de suas implicações para sua vida cotidiana. Deste prisma, em uma primeira aproximação, sempre existiu um acirrado debate no interior dos EUA sobre o grau e a natureza do envolvimento de Washington nos assuntos internacionais: a construção de uma “fortaleza” nas Américas (isolacionismo), ou um papel internacional mais ativo, marcado pelo engajamento nas principais questões internacionais. Estas duas orientações, curiosamente, emanam da arraigada noção do Excepcionalismo Americano.
A retórica isolacionista tende a se basear na crença de que as virtudes da sociedade americana podem ser preservadas apenas se ela ficar isolada do mundo decaído (embora, é claro, em uma posição de segurança). Já a posição mais intervencionista gravita entre um ativismo messiânico – no qual os americanos se sentem e se comportam como os redentores de uma humanidade corrompida – e um pseudocosmopolitismo, onde Washington se apresenta como o alicerce e o principal gestor de uma “ordem internacional liberal” ou, em outra nota, como os fiadores de um mundo mais seguro e compatível com os “valores americanos”.
No primeiro caso, a excepcionalidade americana pode ser garantida somente pelo isolamento e pela contenção das ameaças externas ao seu modo de vida, especialmente quando elas se incrustam no território nacional. No segundo, somente os EUA seriam capazes de criar um ambiente internacional propício a uma sociedade comercial competitiva ancorada no empreendedorismo e na livre-iniciativa.
Dentre os adeptos de um maior envolvimento internacional, é possível distinguir duas orientações distintas que podem – e geralmente o fazem – se sobrepor): i) a tradição “hamiltoniana”, que define como um elemento vital do interesse americano a consolidação de um Poder Executivo forte, capaz de proteger a economia dos EUA e, simultaneamente, pressionar pela criação de um sistema comercial e financeiro mundial aberto, ao estilo dos Free Traders britânicos da era vitoriana; ii) a vertente “wilsoniana”, que também defende o comércio livre em escala mundial, mas com ênfase nos valores morais, onde a promoção dos direitos humanos, da democracia e a luta contra o autoritarismo é tão ou mais importante do que a preservação de uma economia mundial liberal.
Logo, a despeito da fricção, a disputa entre estas duas correntes tinha uma zona de coincidência – o compromisso de Washington com um engajamento significativo nas principais questões internacionais – que era forte o suficiente para silenciar outros discursos e orientações, especialmente as posturas associadas ao isolacionismo.
Este entendimento predominou pelo menos até a eleição de Donald Trump, que recorreu a uma retórica isolacionista, onde o bordão “America First” representa o símbolo mais eloquente e emblemático desta predisposição. No entanto, é muito difícil caracterizar o governo Trump como isolacionista, ou como um retorno de fato ao protecionismo dos séculos XVIII e XIX. O “isolacionismo” do século XIX só fazia sentido apenas tendo a Europa como referência, pois este século foi marcado pelo expansionismo e pela consolidação da supremacia militar dos EUA nas Américas, mediante a consolidação da sua preponderância absoluta no Caribe e a presença militar no Pacífico.
O segundo aspecto que garante a especificidade deste período era o gigantesco caráter autárquico da sociedade americana, que ainda estava consolidando a integração dos novos territórios do Oeste, uma zona que funcionava como uma válvula de escape capaz de absorver os fluxos migratórios e amenizar as tensões urbanas das grandes cidades do nordeste. A situação mudou radicalmente depois da grande expansão do comércio mundial e do investimento externo direto que entrelaçou os EUA com a Europa e os grandes centros urbanizados entre 1945 e 1970.
A dissolução dos laços internacionais por uma política econômica realmente isolacionista teria de enfrentar o poderoso bloco de interesses que articula Wall Street, as grandes corporações estadunidenses, a “indústria do entretenimento” sediada na Califórnia e a rede de grandes distribuidores (Walmart, Amazon, etc.). Além disto, esta medida descontentaria a atual “classe média” estadunidense, aquela assentada em ocupações liberais sofisticadas, formada nas melhores universidades e com patrimônio material e cultural consolidado, ao mesmo tempo em que nada garante que melhoraria a posição dos aspirantes a esta posição, que olham de forma mística e saudosista para os seus antepassados, que viveram o mundo do fordismo e dos Anos Dourados, uma época que não existe mais e nunca voltará.
Logo, a despeito das diatribes oficiais e dos seus famosos tuítes, fica cada vez mais claro que o “America First” de Donald Trump é muito mais uma perigosa retórica do que uma estratégia nacional e internacional organizada e coesa. No entanto, o fato de vencer a eleição com esse slogan genérico não deixa de evidenciar uma tensão que remonta à década de 1980 e que, desde então, só tem se exacerbado: a sociedade estadunidense teria sido vítima da traição da sua classe industrial e empreendedora, que teria, “em casa”, migrado para finanças e serviços para, por meio do comércio mundial aberto, ter acesso a recursos baratos no exterior, em detrimento dos trabalhadores americanos.
Trata-se, evidentemente, de uma visão falaciosa que desloca a atenção do centro do problema: a redução do “emprego industrial” não decorre da imigração ou do comércio internacional, mas, sobretudo, da automação e de um processo de transnacionalização da produção colocado em marcha na década de 1970. Porém, esta forma incorreta de formular a questão no debate público é que, por ressuscitar a xenofobia, tem causado tensão em uma era onde as linhas políticas têm-se definido pela questão das identidades e pelo multiculturalismo. Como recentemente destacou Charles Kupchan, dadas as declarações de Trump sobre a imigração, muitos leram na combinação entre o motto “America First” e a expressão “Make America Great Again” algo como “Make America White Again” (KUPCHAN, 2018, p. 145).
É precisamente neste clima que as tradições “jeffersonianas” e “jacksonianas” voltaram a ter relevância e aderência no debate público americano. A primeira posição defende que a redução do envolvimento dos EUA no cenário internacional diminuiria os custos e os riscos de sua política externa. Esta deveria ter como foco uma definição mais estreita dos interesses dos americanos, os quais deveriam ser defendidos de forma mais segura e eficaz, fato que abre margem para o “unilateralismo”.
O aspecto curioso é que esta visão é compatível com um agrupamento de forças sociais muito distintas. Os realistas mais agressivos tendem a endossá-la, por acreditar que, deste modo, é possível centrar as operações internacionais em uma perspectiva minimalista, onde o interesse estratégico nacional seria mais bem defendido. “Os libertários levam esta proposta ao limite e, nisto, encontram aliados entre muitos da esquerda que se opõem ao intervencionismo, querem cortar gastos militares e favorecem a redistribuição dos esforços e recursos do governo em casa” (MEAD, 2017, p. 2).
A segunda posição é diferente e parece estar na raiz do sucesso de Donald Trump, na medida em que ele conseguiu se apresentar como um ícone da “revolta jacksoniana”:
“For Jacksonians – who formed the core of Trump’s passionately supportive base – the United States is not a political entity created and defined by a set of intellectual propositions rooted in the Enlightenment and oriented toward the fulfillment of a universal mission. Rather, it is the nation-state of the American people, and its chief business lies at home. Jacksonians see American exceptionalism not as a function of the universal appeal of American ideas, or even as a function of a unique American vocation to transform the world, but rather as rooted in the country’s singular commitment to the equality and dignity of individual American citizens” (MEAD, 2017, p. 3).
Assim, de acordo com Mead (2017), o papel fundamental do Estado é garantir a segurança do território nacional e as condições básicas para o bem-estar econômico do povo americano, interferindo o mínimo possível na liberdade individual que, supostamente, é o que garante a singularidade da sociedade americana.
Embora um tanto precário e muito polêmico, o rótulo “revolta jacksoniana” – com as devidas mediações – ajuda a esclarecer algumas tendências sociopolíticas recentes na sociedade americana que estão na base do governo Trump. Como se sabe, o período conhecido como a era jacksoniana foi marcado por um conjunto de transformações muito aceleradas que envolveram praticamente todas as dimensões da vida social. O isolamento das comunidades que caracterizava os EUA até o início do século XIX foi brutalmente rompido por uma tensa conexão entre os novos sistemas de transporte, o comércio em maior escala e o reforço de um sistema político que fazia todas as questões locais e regionais desembocarem em Washington.
Novas relações de autoridade e interesses mais remotos se impuseram sobre a esfera de intimidade que marcava as relações econômicas e políticas das comunidades. O que singularizava a posição jacksoniana é que eles rejeitavam o pendor tradicionalista de seus adversários mais diretos (reunidos principalmente no Partido Democrata) mas, ao mesmo tempo, não se sentiam à vontade com a defesa mais enfática feita pelos Whigs das relações impessoais típicas de uma sociedade comercial moderna regulada por contratos:
“Paradoxically, the Jacksonians’ persistent demands for freedom and equality could sound quite modern. And they were sincere in their rejection of hierarchy and deference. Yet, their liberation rhetoric was particularly intense precisely because their traditional social character inhibited their accommodation to society’s demands. The bristly independence of their writings and speeches revealed a certain desire to respond to these demands, but it also disclosed their frustration in the attempt. Even more telling is the fact that Jacksonians frequently used the concepts of freedom and equality to liberate them from the impersonal social ties which frustrated and exploited them. Their political policies which embodied these ideals were often defensive reactions to the emergence of individualistic institutions, attempts to protect more traditional relationships from the transforming effects of modernity” (KOHL, 1989, p. 16).
Em certo sentido, a atual “revolta jacksoniana” expressa uma tensão formalmente similar, porém reconfigurada e embebida por um conjunto distinto de forças sociais. A ameaça é dupla.
Em uma ponta, o “globalismo” (sic) das elites que se julgam cosmopolitas corrompe e dissolve os costumes das comunidades locais e, ao mesmo tempo, internaliza tensões internacionais que pouco têm a ver com o interesse do cidadão americano, desperdiçando tempo, recursos e a vida de soldados engajados em guerras e ações militares que não correspondem às questões genuinamente nacionais. Esta mesma elite apoia um discurso multiculturalista que reforça “artificialmente” a demanda de imigrantes não adaptados aos valores americanos, minorias e grupos de identidade definidos em torno de questões culturais, raciais e de gênero. É precisamente neste ponto que a “revolta” jacksoniana entra em sinergia com boa parte das inclinações e das demandas da Alt-Right.
A convergência é quase absoluta na questão da posse de armas e no controle sobre as imigrações. No primeiro caso, a posse é defendida como um direito fundamental para defesa pessoal e para, eventualmente, resistir a governos tiranos. O aspecto curioso é que a defesa das liberdades individuais não está associada à defesa do Laissez-faire no plano da economia. A tendência dominante é a defesa do protecionismo, ou seja, Fair Trade no lugar de Free Trade.
A ênfase no controle sobre as fronteiras e no combate aos imigrantes ilegais, ao contrário do que geralmente se destaca, não tem como motivo fundamental o receio de uma hipotética desvalorização dos salários por conta da pressão dos estrangeiros no mercado de trabalho. O motivo é muito mais perturbador, pois está radicado na percepção de que as políticas identitárias protegem e prestigiam diversas minorias, mas deixam de fora o branco que se identifica simplesmente como “americano” (plain american).
E, frente a isto, brotam teorias conspiratórias fundadas no temor de que existe uma iniciativa deliberada da oligarquia bipartidária de reduzir e marginalizar a população branca tanto no plano demográfico como no cultural e no político.
Aqui reside um problema fundamental. Como já foi apontado, essa divisão interna tem muito mais projeção e relevância na política estadunidense do que as questões internacionais. No entanto, a despeito das percepções do eleitorado médio, Washington precisam garantir minimamente os fundamentos da ordem internacional vigente que, embora cada vez mais disfuncional, ainda lhe é favorável. O problema é que o status quo passa a ser contestado tanto dentro da sociedade americana quanto pelas potências ditas revisionistas, como a Rússia e a China. Isto nos leva de volta aos problemas da geopolítica mundial.
China e Rússia estão de olho na conjuntura atual, agem em função da cena política imediata, mas o fazem tendo como horizonte as tendências de longo prazo. E, nestes dois cenários, existem múltiplos pontos de fricção entre Pequim e Moscou e apenas uma zona de consenso mínimo, embora radicada em motivações e ambições muito diferentes: reduzir a influência direta dos EUA no Oriente Médio e na Eurásia.
Além de sua importância estratégica no campo militar, a influência decisiva de Washington sobre a Arábia Saudita, a posse de reservas nacionais significativas e o controle sobre o dólar permitem que os EUA exerçam influência sobre os preços internacionais do petróleo, podendo com isso manipular os interesses de Pequim e de Moscou. A alta dos preços favorece a Rússia e descontenta Pequim. A queda produz o efeito inverso.
Esta posição dos EUA é vista como um empecilho para ambos. A Rússia precisa acomodar suas tensões internas e, para tanto, necessita garantir o crescimento de sua economia e reivindicar um protagonismo aos moldes da época de ouro da URSS, um esforço já posto em marcha acelerada desde 2008. Já a China está consolidando sua influência regional, expandindo o uso de sua moeda nas trocas com seus parceiros asiáticos, ampliando sua presença militar no seu entorno estratégico, onde esbarra com os EUA e com seus aliados. Logo, uma retirada dos EUA desta região provavelmente intensificaria a rivalidade entre Pequim e Moscou, arrastando o Japão para o turbilhão. Não é plausível, portanto, uma postura isolacionista. O envolvimento custa dinheiro, porém, e precisa ser justificado para os eleitores nos EUA que, em grande medida, compraram pelo valor facial as diatribes de Trump e, portanto, parecem cada vez menos dispostos a financiar a segurança dos estrangeiros.
Referências
CRUZ, Sebastião C. V. Evolução Geopolítica: Cenários e Perspectivas. Texto para Discussão, 1611, Brasília: IPEA (2011).
KOHL, Lawrence F. The Politics of Individualism: Parties and the American Character in the Jacksonian Era. Nova York: Oxford U. Press, 1989.
KUPCHAN, Charles. The Clash of Excepcionalisms: A New Fight over an Old Idea. Foreign Affairs, v. 97, n. 2 (2018).
MEAD, Walter Russell. The Jacksonian Revolt: American Populism and the Liberal Order. Foreign Affairs, v. 96, n. 2 (2017).
* Esta breve nota é uma versão sintética – sem notas de rodapé e com apenas uma fração mínima da bibliografia – de um texto para discussão onde os temas aqui abordados se encontram mais desenvolvidos. Nesta versão, o foco incide principalmente no “front interno”, isto é, o modo como o engajamento internacional de Washington e a transformação da dinâmica e da geografia econômica mundial se relacionam com a política interna.
** Eduardo Barros Mariutti é pesquisador do INCT-INEU e professor associado do IE/Unicamp e do San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).