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Endividamento estudantil nos EUA: lições para o Futuro (FUTURE-SE) da Universidade brasileira?

Por Thiago Lima*

O sistema universitário público de um país não deve ser igual a uma loja de departamentos, um magazine, assim como os estudantes não devem ser vistos como clientes. Enquanto o compromisso das lojas é com a lucratividade de seus donos ou acionistas e com a satisfação do cliente com o produto ou serviço específico, a universidade pública tem compromisso com a nação de uma forma mais complexa. Se tomarmos a metáfora de um corpo humano, a universidade seria um órgão, entre outros, responsável por transmutar moléculas mais brutas em moléculas mais especializadas, capazes de desempenhar funções que contribuam para a saúde geral do corpo. Se, neste processo, o órgão transformador acabar onerando demais o restante do corpo, ou se acabar produzindo moléculas especializadas que não consigam realizar funções coletivas porque estão comprometidas demais com a própria sobrevivência, temos aí algo de errado. A universidade deve ser um órgão fundamental para a melhoria da qualidade da nação.

O endividamento dos estudantes universitários nos Estados Unidos é um caso que deve ser conhecido pelos brasileiros, já que o ministro Weintraub sempre os toma como exemplo. Lá, 1 em cada 4 adultos possui dívida contraída para pagamento de seus estudos de graduação, profissionalização, ou pós-graduação. São dívidas que, conforme reportam muitos daqueles estudantes e egressos, são tão altas que não conseguem pagar com os salários que recebem, prejudicando outros aspectos essenciais da vida social, como casar-se, pagar aluguel, comprar um carro, manter plano de saúde, entre outros. Os americanos, que têm o costume de sair da casa dos pais quando jovens adultos, estão tendo que morar com os familiares por muito mais tempo. Os danos para a saúde mental se amontoam: a cada 15 pessoas endividadas, uma pensou em suicídio. Não é à toa que a dívida estudantil já é um dos principais temas da eleição presidencial que ocorrerá em 2020.

Para se ter uma ideia da magnitude do problema, a dívida pública brasileira é de R$ 3,9 trilhões de reais. A dívida estudantil nos EUA é de US$ 1,6 trilhão, o que corresponde a cerca de R$ 6 trilhões. Isso é mais do que o PIB da Espanha. Em seu conjunto, a dívida estudantil é menor apenas do que a dívida de financiamento imobiliário. Mas há uma diferença importante entre as duas: se é possível vender uma casa, ou devolvê-la para o banco para se livrar da dívida, o mesmo não pode ser feito com o ensino recebido.

É importante destacar que esse valor altíssimo cresceu de forma avassaladora. As 44 milhões de pessoas hoje endividadas são o dobro de 15 anos atrás, o valor dos empréstimos subiu 60% no mesmo período, e 25% dos endividados não conseguem se manter em dia com o carnê 12 anos após concluídos os estudos. Os graduados em 2017 saíram com uma dívida média de US$ 28.650. Em 1997, o montante costumava ser de US$ 12.750. Atualmente, cerca de 2,8 milhões de pessoas devem US$ 100 mil, ou mais.

Historicamente, o ensino superior nos Estados Unidos deve ser pago pelos estudantes, mesmo nas universidades públicas. Isso não significa que as universidades – públicas, privadas com fins lucrativas, ou privadas sem fins lucrativos, como Harvard – prescindam de financiamento público. Muitas delas receberam generosas doações de terras, com as quais constituíram fundos imobiliários, principalmente do século XIX à Segunda Guerra Mundial. De 1950 em diante, ganharam peso as bolsas de estudo e os incentivos indiretos (subsídios) para a formação universitária dos veteranos de guerra, o que foi um programa gigantesco.

Ocorre que, de meados dos anos 1970 para cá, o arrocho orçamentário nos Estados Unidos levou a uma pressão por diminuir o financiamento público das universidades, tanto para ensino, quanto para pesquisa. Se algumas universidades de excelência conseguem obter recursos junto ao setor privado para a pesquisa em alguns setores – e mesmo assim o principal financiador geral continua a ser o Estado, via contratos com o Pentágono, a NASA, os Institutos de Saúde Pública etc. –, o ensino não consegue atrair nada correspondente no país. Daí, a solução é cobrar mensalidades cada vez mais caras.

Nos últimos cinco anos, o valor das mensalidades cresceu 10% acima da inflação. Como as famílias americanas – assim como as brasileiras – não conseguem aumentar consistentemente sua renda, devido aos mecanismos estruturais que intensificam a desigualdade social, o jeito é fornecer empréstimos para os jovens. O problema é que – notem a redundância: como as famílias americanas, assim como as brasileiras, não conseguem aumentar consistentemente sua renda devido aos mecanismos estruturais que intensificam a desigualdade social… entre eles os juros do sistema financeiro – os recém-formados ficam atolados em dívidas.

Fonte: MORAES, Reginaldo C.; SILVA, Maitá de Paula; CASTRO, Luiza Carnicero. Modelos internacionais de educação superior Estados Unidos, Alemanha e França. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

Ainda sobre a questão da desigualdade social, dois dados da maior relevância: 1) como as egressas têm renda inferior aos egressos ao longo do tempo, elas pagam mais juros do que eles. Dois terços dos empréstimos são para mulheres (há mais mulheres matriculadas do que homens); 2) estudantes negros devem, em média, US$ 7.400 a mais do que os brancos quando concluem a pós-graduação. Lembre-se de que o Brasil, assim como os EUA, teve regime de escravidão. Porém, enquanto para lá foram levadas 400 mil pessoas do continente africano, para cá foram trazidas 4,3 milhões de africanos e africanas!

Veja que, no Reino Unido, a situação é ainda mais aguda: a dívida estudantil média é de US$ 55 mil. O custo dos estudos no Reino Unido chegou a tal ponto que o sistema universitário está dependente dos estudantes asiáticos, quem têm seus estudos custeados pelos países de origem. Os britânicos têm cada vez menos condições de acessar suas próprias universidades. Mas nem todo país desenvolvido é assim. Na Alemanha, onde a universidade é gratuita, os graduados começam a vida profissional com uma dívida de US$ 2.400 em média.

Estes são elementos para nós no Brasil e na Paraíba – um estado onde a renda média familiar é de cerca de R$ 850 – pensarmos sobre que tipo de Universidade queremos e podemos custear com recursos públicos e/ou privados. Nos Estados Unidos, uma pequena elevação nas mensalidades das universidades públicas deslocou muitos jovens para universidades privadas com fins lucrativos e de baixo custo e, ainda assim, os jovens precisaram se endividar.

O sistema universitário brasileiro precisa de reformas? Sim. Mas que sejam dialogadas, amparadas em evidências nacionais e internacionais e que levem em conta as características próprias do nosso país e das nossas regiões. Se refletirmos a partir da experiência atual dos Estados Unidos, fica claro que o sistema universitário do Tio Sam, amplamente dependente do setor financeiro, está sendo deletério para a qualidade da nação. Já temos problemas demais por aqui. Que não cometamos os mesmos erros de lá.

 

* Thiago Lima é professor do mestrado em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB e membro do Coletivo Representativo dos Docentes em Luta (CORDEL) da UFPB.

** Artigo originalmente publicado no Jornal da Paraíba, em 29/8/2019, com base na apresentação “O endividamento estudantil nos EUA”, em 19 de agosto, no Ciclo de Palestras, Debates e Mobilizações “Projetos de Universidade em Disputa: qual universidade defendemos?”, realizado na UFPB.

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