Debate sobre apoio a Israel desafia democratas
Por Isabelle C. Somma de Castro*
O apoio a Israel tem sido uma das mais sólidas diretrizes da política externa norte-americana nas últimas décadas. Forjada pela comunidade judaica no país após a vitória de 1967 sobre os árabes na Guerra de Junho, a aproximação ultrapassa as divisões bipartidárias. Tornou-se uma orientação constante não apenas entre os presidentes, mas também no Congresso dos EUA, instituição fundamental para a aprovação de medidas que regulam a politica externa do país. Contudo, essa aliança está sendo colocada em xeque, em especial entre os democratas, que tradicionalmente são sua base mais fiel.
A longevidade dessa aliança se mantém por uma série de razões. Muitos da comunidade judaica norte-americana acreditam que o apoio irrestrito dos EUA ao país é uma questão vital para a sobrevivência de Israel no meio de uma vizinhança árabe hostil. Por isso, a agenda pró-Estado judaico é uma das bandeiras da comunidade, que se tornou bastante atuante no processo político-partidário. Isso se reflete no número de representantes no Senado e na Câmara. Hoje, são 34 que se identificam como judeus entre 535 congressistas, ou 6% do total – só para se ter uma ideia, apenas 2% da população dos EUA diz professar a religião.
Esse fenômeno tem um paralelo no Brasil. Há um número expressivo de parlamentares com sobrenome árabe no Congresso Nacional e também no Executivo. Mas, neste caso, não significou apoio automático aos governos libanês, ou sírio, ou uma defesa intransigente das fronteiras de ambos os países.
Financiamento de campanhas eleitorais
A visão de que essa aproximação com o Estado israelense deve ser cultivada também influencia o financiamento das campanhas eleitorais. Entre os maiores doadores individuais estão bilionários com ligações profundas com o país. Exemplos conhecidos são os irmãos Koch, empresários do ramo da indústria petroquímica, e Sheldon Adelson, proprietário de vários cassinos nos Estados Unidos. Esses empresários são os maiores financiadores individuais de campanhas republicanas. Adelson foi mais além: se ofereceu para pagar a mudança da embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém.
Apesar da preferência dos megadoadores pelos conservadores, a maior parte da comunidade judaica norte-americana tende a contribuir e a votar em candidatos democratas, pois tende a ter uma visão mais liberal. Segundo estudo recente, 50% das doações para o Partido Democrata são feitas pela comunidade judaica, enquanto entre os republicanos o número corresponde a somente 25% do total do que é arrecadado pelo partido. Mesmo que nem todos os doadores sejam pró-Israel, para a classe politica norte-americana, desafiar esse apoio irrestrito ao país pode se tornar um risco que poucos querem experimentar. Mas é exatamente entre os democratas que essa aliança automática – e muitas vezes acrítica – vem sendo desafiada.
As recém-eleitas congressistas Rashida Tlaib (D-MI) e Ilhan Omar (D-MN), que fazem parte da ala mais progressista do partido, têm discutido abertamente a questão e demonstrado adesão ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Omar é uma imigrante somali, que chegou aos EUA como refugiada aos 11 anos. Muçulmana, foi a primeira congressista a usar hijab no Plenário americano. Tlaib, por sua vez, é filha de palestinos e também se identifica como seguidora do Islã.
Através das redes sociais e de sua atuação no Congresso, ambas têm gerado controvérsia, principalmente em seu próprio partido. Respondendo a um tuíte de Glenn Greenwald, Omar afirmou que era tudo uma questão de “benjamins”, relacionando a questão do dinheiro com o apoio a Israel. As críticas foram fortes, exatamente por levantar a lembrança de velhas acusações antissemitas. Ao pedir desculpas, Omar disse: “Eu quero falar sobre a influência política neste país que diz ser OK que pessoas defendam fidelidade a um país estrangeiro”.
A frase provocou ainda mais controvérsia entre os próprios democratas e quase valeu a Omar um puxão de orelhas público do partido em forma de punição – muitos políticos de ambos os lados a atacaram em suas redes sociais. Um outro grupo tentou passar no congresso uma reprimenda contra ela, mas o texto acabou por englobar reprimendas a ataques islamofóbicos também.
Debate antigo
Apesar de ser novidade na política, a crítica a essa aliança já foi discutida no mainstream acadêmico com grande repercussão há mais de uma década. Deu-se em termos menos ousados, porém, com o foco específico no que seriam desvantagens para os Estados Unidos. Em 2007, John Mersheimer e Stephen Waltz lançaram o livro The Israeli Lobby and the US Foreign Policy. Na obra, os autores apontam como o apoio incondicional a Israel tem prejudicado os próprios interesses norte-americanos, tanto internos como externos. Em artigo escrito um ano antes do lançamento da obra, eles afirmaram que, “graças ao Lobby, os Estados Unidos se tornaram o facilitador de facto da expansão israelense nos Territórios Ocupados, fazendo com que sejam cúmplices dos crimes perpetrados contra os palestinos”. Depois da publicação do livro, Mersheimer e Waltz também foram acusados de antissemitismo, assim como Omar.
A ascensão de Omar e Tlaib ao Congresso também levou a discussão para o maior bastião da voz democrata que sempre foi pouco afeito a publicar críticas às violações dos direitos humanos por Israel: o jornal The New York Times. A polêmica chegou ao diário antes mesmo de ambas assumirem. O artigo “Anti-Zionism Isn’t the Same as Anti-Semitism” de Michelle Goldberg, publicado em dezembro de 2018, defendia o direito das congressistas de criticarem Israel e acrescentou: “pessoas com um compromisso intransigente com a democracia pluralística serão necessariamente críticas a Israel contemporânea. Esse compromisso, contudo, faz delas aliadas naturais dos judeus em qualquer lugar”.
Mais contundente ainda foi Michelle Alexander em seu artigo “Time to Break the Silence on Palestine”, publicado pouco mais de um mês depois do artigo de Goldberg no mesmo jornal. Em seu longo texto, Alexander afirma que, assim como Martin Luther King Jr. disse que ficar em silêncio sobre as atrocidades que ocorriam na Guerra do Vietnã era errado, o mesmo se daria em relação aos palestinos. “Nós devemos denunciar com veemência o tratamento dado as palestinos nos checkpoints, as rotineiras buscas feitas em suas casas e restrições de seus movimentos, e o acesso limitado a moradia decente, escolas, comida, hospitais e água que eles se deparam”.
Não faltaram respostas em forma de cartas e artigos nas páginas do diário nova-iorquino, com críticas às colunistas e aos seus argumentos.
Novas formas de pressão
Mas a pressão contra os defensores do BDS, ou contra aqueles que defendem posições críticas a Israel também se dá de outras formas. Uma dessas táticas tem sido criar sites em que ativistas e acadêmicos são listados como antissemitas apenas por apoiarem o BDS. Um caso clássico é o Canary Mission, site que publica uma lista de acadêmicos acusados de serem antissemitas apenas por defenderem o BDS. Outra é o lawfare, processos na Justiça que tentam minar as vozes contrárias aos interesses israelenses, especialmente nos campi do país. A liberdade de expressão, tão cara aos norte-americanos e garantida pela Primeira Emenda da Constituição, está em jogo. A intenção principal parece ser, na verdade, acuar os alvos, minando suas finanças.
Um dos casos mais famosos de como o uso de ações legais contra defensores dos direitos de palestinos pode ser utilizado como tática de intimidação é o da professora Rabab Abdulhadi, da San Francisco State University. Tanto Abdulhadi, defensora do BDS, como a universidade, foram processados três vezes em menos de cinco anos por supostamente criarem um ambiente hostil para estudantes judeus ao apoiarem os direitos de palestinos. Os processos foram encerrados por falta de provas, mas não deixaram de causar danos financeiros tanto para a professora como para a instituição.
A intimidação também pode estar sendo institucionalizada no país. Vinte e seis Estados norte-americanos já possuem legislação que pune empresas que boicotam Israel. Essas leis obrigam prestadores de serviços a órgãos estaduais a assinarem contratos, nos quais se comprometem a não se envolverem com boicotes, como apoiar o BDS. A lei já fez vítimas. Uma fonoaudióloga que atendia crianças autistas em Austin, no Texas, desde 2009 se recusou a assinar o documento e, por isso, teve seus serviços descontinuados pelo Estado no ano passado.
Na esfera federal, um projeto de lei semelhante, que também tratava de intimidar adversários de Israel, foi o primeiro a ser protocolado na legislatura de 2019. O autor, o senador Marc Rubio (R-FL), escolheu um momento caótico para colocar em pauta. No começo deste ano, o governo estava paralisado devido à queda de braço entre o presidente Donald Trump e o Congresso sobre o financiamento da construção do muro com o México. Mesmo tendo muitos senadores de ambos os partidos apoiando o projeto, o líder da minoria democrata se recusou a votar, ou permitir, o andamento de qualquer projeto enquanto o governo não reabrisse. Por esse motivo, a lei acabou naufragando.
Laços renovados
Se, por um lado, a aproximação de Trump com Benjamim Netanyahu e o próprio primeiro-ministro ultraconservador israelense fazem com que seja mais fácil para os democratas criticarem as ações do governo de Israel para seus eleitores, por outro, eles também vêm sendo atacados exatamente por sua contundência. O presidente norte-americano está usando o debate para se apresentar como o verdadeiro defensor de Israel nos Estados Unidos.
Recentemente, Trump disse levianamente a doadores de campanha que “democratas odeiam judeus”. A imprensa foi rápida em lembrar que ele é o mesmo autor de um tuíte que dizia que “neo-nazis are fine” e que já se esqueceu de citar judeus e o antissemitismo em seu primeiro pronunciamento como presidente dos Estados Unidos no dia Internacional em Memória ao Holocausto em 2017. Mas o alvo predileto de Trump tem sido a congressista Ilhan Omar. Em uma de suas publicações no Twitter, o presidente relacionou imagens dos atentados de 11 de setembro de 2001 com a congressista. O mesmo foi feito pelo jornal conservador The New York Post.
A ligação com Israel talvez esteja longe de estar xeque na política americana, apesar de ser um dos temas mais abordados pela ascendente ala progressista dos democratas. Mas, é necessário lembrar, que os progressistas ainda são minoritários. Os principais pré-candidatos do partido à presidência em 2020 são mais moderados e, na última convenção da poderosa American Israel Public Affairs Comittee (AIPAC), realizada no final de março passado, estiveram em peso prometendo apoiar Israel caso eleitos. Poucos também discutem se as leis aprovadas em seus Estados não entram em rota de colisão com a Primeira Emenda da Constituição.
É fato que a simpatia pelo BDS nos EUA vem crescendo, apesar dos ataques, acusações de antissemitismo e intimidações, principalmente contra acadêmicos. Mas o movimento de progressistas e acadêmicos dificilmente será um “game changer” a curto prazo. O que realmente pode ser decisivo para indicar o futuro dessa relação tão visceral é o grau de suporte da própria comunidade judaica do país. Entre os judeus americanos mais jovens e mais liberais, a inclinação pela defesa de demandas palestinas vem aumentando. Grupos judaicos, como o J Street e If Not Now, são cada vez mais visíveis, influentes e têm se destacado por realizar protestos mais ousados em favor dos direitos humanos dos palestinos[15]. Resta saber se isso se refletirá em uma onda na política interna americana, ou se será apenas uma marola.
* Isabelle C. Somma de Castro é Visiting Scholar no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, com bolsa Fapesp, e pós-doutoranda pelo Departamento de Ciência Política da USP. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).