Trump insere a elite militar do Irã em lista de terroristas
por Solange Reis
Os ventos não sopram a favor da filosofia no Brasil atual, mas a reflexão filosófica serve como bússola quando conceitos tradicionais são desafiados.
Nos últimos tempos, a instituição do Estado nacional tem enfrentado questionamentos difusos sobre a sua autoridade, o que leva eleitores a escolher os chamados “outsiders”. Foi o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, e do brasileiro Jair Bolsonaro. Este, embora seja um político há décadas, não pertencia ao mainstream.
Ao incentivar que cidadãos se armem e se defendam por conta própria, Bolsonaro se beneficia desse sentimento antissistema para enfraquecer o controle estatal na segurança pública, uma área de domínio clássico do Estado.
Mas a crise do Estado-nação também se mostra além das fronteiras nacionais, com fogo amigo vindo de onde não deveria. É o caso da decisão dos Estados Unidos, em abril, de classificar como organização terrorista a Guarda Revolucionária do Irã (IRGC, na sigla em inglês).
Estrategicamente, isso pode até trazer ganhos pontuais. No longo prazo, fragiliza o princípio da soberania, que está para o sistema internacional moderno como o sol para o nosso sistema planetário. Tira-se o primeiro, e o segundo entra em colapso.
Trump vira a concepção de soberania do avesso. Tal como sua contraparte brasileira, apoia a formação de milícias rurais para “garantir a ordem” em casa, enquanto desacredita um exército estrangeiro.
A soberania nacional erguida na Paz de Vestfália há mais de 300 anos parece estar sofrendo de uma doença autoimune, que acontece quando um organismo ataca a parte normal de si mesmo.
Marginalizando forças oficiais
Foi a primeira vez na história de sua política externa que o Departamento de Estado agiu dessa forma em relação a um exército estrangeiro formalmente constituído. Daqui por diante, até segunda ordem, a IRGC figura na Lista Terrorista Global Especialmente Designada.
As acusações americanas a respeito do suposto apoio da Guarda Revolucionária ao terrorismo internacional são antigas. Dessa vez, no entanto, o grupo de elite militar é apontado como um operador direto do terror.
Ao marginalizar a IRGC, os Estados Unidos estendem as sanções vigentes a empresas e indivíduos que se relacionem de alguma forma com a organização. Assim, a Casa Branca dificulta a atuação iraniana no Oriente Médio e altera o equilíbrio de poder a favor da Arábia Saudita e de Israel. Estes, por sua vez, são os dois grandes aliados americanos e os maiores rivais do Irã na região.
Outro objetivo, quiçá o principal, é forçar o Irã a renegociar o acordo sobre o programa nuclear, abandonado unilateralmente pelos Estados Unidos no ano passado.
Guarda de elite
Criada depois da Revolução Iraniana de 1979, a IRGC se tornou a nata militar do país. Seus poderes atuais se estendem à indústria nuclear e aos mísseis balísticos, e sua influência alcança os setores bancários e de marinha mercante.
Qualquer golpe pesado no grupo afetaria o núcleo duro do governo iraniano e ganharia terreno para a oposição. Fragmentados, alguns oposicionistas exilados tentam se unir em torno de Reza Pahlavi, filho do último xá iraniano, Mohammad Reza Pahlavi.
Por décadas, o xá teve o que o ex-presidente argentino, Carlos Menem, chamaria de “relações carnais com os Estados Unidos”. A própria CIA já admitiu que o ajudou no golpe de 1953 que destituiu o primeiro-ministro nacionalista Mohammad Mosaddeq.
Hoje, o filho de Pahlavi recorre a Washington. Desde dezembro, o opositor vem negociando com o governo Trump para aumentar a pressão e as sanções sobre a Guarda Revolucionária.
Essa inédita manobra americana impacta o direito internacional se, em caso de confronto com o Irã, os Estados Unidos ignorarem a Convenção de Genebra que regulamenta os conflitos tradicionais.
Como os integrantes da IRGC passam a ser vistos como inimigos assimétricos, ficarão sujeitos às leis americanas do combate ao terrorismo, e não aos tratados internacionais baseados no princípio da soberania.
Nesse sentido, um prisioneiro de guerra iraniano poderia acabar seus dias na kafkaniana prisão de Guantánamo, aguardando indefinidamente por acusação e julgamento.
A reação do Irã
Dadas as consequências explosivas, essa hipótese é improvável. A ONU e outros países reagiriam contra, principalmente a China e a Rússia, que são próximas do Irã. Este talvez perdesse influência regional, mas é possível que antes fizesse um movimento potencialmente impactante no Oriente Médio, uma região exaurida por conflitos causados por particularidades locais e os interesses de grandes potências.
É preciso lembrar que um Estado não é só a entidade que se relaciona com seus pares de forma mais ou menos anárquica no mundo, mas uma instituição que depende de credibilidade para exercer hierarquia interna e prover segurança básica à população em seu território. Não tenhamos dúvidas de que o Irã, assim como qualquer país o faria, reagirá para afirmar sua soberania.
Por enquanto, fica na retórica. Sua reação imediata foi categorizar como terrorista o Comando Central dos Estados Unidos (USCENTCOM), a massiva força militar americana que “cobre o centro do globo”.
Muita fumaça e pouco fogo é tudo o que o Irã pode fazer contra uma potência militar do porte dos Estados Unidos. Mas não se pode esquecer que, eventualmente, tensões escalonáveis geram resultados inesperados. A Guerra do Vietnã nos recorda sempre do imponderável.
Outra consequência de criminalizar a Guarda Revolucionária é o risco de mais instabilidade no Iraque. A influência iraniana na política doméstica iraquiana sempre foi presente, mas cresceu depois da invasão americana, em 2003. Hoje, existe pouca margem de ação do Pentágono e do Departamento de Estado no Iraque sem combinar com Teerã.
Soberania meio cheia, meio vazia
Ao não reconhecer a legitimidade das forças iranianas, a Casa Branca fere tanto o direito internacional quanto a diplomacia militar. Principalmente, rompe os princípios filosóficos que levam à normatização das relações entre Estados soberanos em guerra ou na paz.
Para além dos efeitos práticos, o governo Trump inverteu o fundamento do Estado como dono do monopólio sobre o uso legítimo da força em um território unitário.
Essa definição é notoriamente relacionada ao sociólogo alemão, Max Weber, embora este tenha bebido na fonte de muitos predecessores. Antes dele, o inglês Thomas Hobbes já atribuíra ao Estado o direito de aplicar a violência para conter a natureza selvagem dos homens. Depois de Weber, Charles Tilly refletiu sobre a associação racional entre coerção e capital na formação do Estado-nação. A lista não é exaustiva, passando por outros filósofos e teóricos que, à esquerda ou à direita, interpretaram o papel do Estado como o agente autorizado da violência.
Para muitos desses pensadores e seus seguidores, o monopólio sobre o uso legítimo da força não se aplica nas relações internacionais. Segundo as teorias realistas, entre as nações prevalece o estado de natureza selvagem e a ausência de um Leviatã. Nem Hobbes encontrou uma solução para este dilema.
Portanto, os Estados Unidos não têm autoridade para marginalizar ou oficializar as forças de segurança de nenhum outro país. Na prática, porém, sabe-se que são uma espécie de Leviatã Liberal do sistema internacional, como colocado por John Ikenberry no livro “Liberal Leviathan: The Origins, Crisis, and Transformation of the American World Order”.
Ikenberry destaca o risco de perda da autoridade quando interferências externas do Leviatã “democrático”, em nome de valores e interesses ocidentais, ultrapassam qualquer limite de razoabilidade. Chamar de grupo terrorista a elite de um exército legítimo com mais de 500 mil integrantes parece ser o caso apontado pelo autor. Somente a Guarda Revolucionária tem 150 mil membros e estreitas relações com grupos aliados no Oriente Médio, bem como o apoio da China e da Rússia.
O mundo hoje não é o mesmo de quando os Estados Unidos construíram e dirigiram a ordem liberal. Outros países pleiteiam o reequilíbrio de poder, especialmente em âmbitos regionais. Nenhum deles ousará deslegitimar as Forças Armadas americanas, que são incomparáveis em termos de capacidades. Mas, uma vez aberto o precedente, o que custará à Rússia classificar o exército ucraniano ou georgiano como terrorista? Ou, a China em relação algum desafeto na Ásia-Pacífico. Pau que bate em Chico bate em Francisco.