Economia e Finanças

A trigo-dependência e sua estranha história

Por Reginaldo Moraes*

Está é uma crônica um tanto desparafusada, construída a partir de minhas teorias conspiratórias. Porém, qualquer coincidência com fatos reais… nem sempre é coincidência.

Como sabemos, o trigo é um dos mais antigos símbolos da alimentação humana. Com ecos sagrados. Afinal, além de tudo, era a base do corpo de Cristo. E foi pão que Cristo multiplicou, para fazer dobradinha com os peixes.

Pois faz algum tempo caiu-me diante dos olhos esta declaração de um fazendeiro:

“O Brasil, como player e grande produtor de alimentos do mundo, tem na cultura do trigo a única em que o País não consegue se sustentar, isto é, não é autossuficiente, demandando recursos absurdos em importações”, afirma o presidente da Comissão do Trigo da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Hamilton Jardim.

Desde quando isso é problema? E por quê?

Ora, lá onde os homens tinham almas virgens e andavam quase nus, era outro o alimento sagrado. Era o milho, consumido por diversos povos da América desde milhares de anos, antes do próprio Cristo ter posto o pé na terra criada por seu pai.

Com a descoberta da América, a cultura do milho se expandiu. Hoje é plantado e consumido em todos os continentes e sua produção quase emparelha com a do trigo e do arroz.

Em alguns países, o milho virou pau-para-toda-obra. Dele os norte-americanos, por exemplo, tiram combustível, adoçante, melado para suas panquecas e… o Bourbon, o uísque dos cowboys do Tennessee e do Kentucky. Dá-lhe Jack Daniels!

O milho praticamente cresce sozinho, é nutritivo, saudável e versátil. Mas, no Brasil, apenas um pequeno percentual da produção é utilizado para consumo humano.

Ora, e por que, cargas d’água, nós, brazucas, viramos trigo-dependentes?

Se julgarmos pela imigração italiana em São Paulo, ou em estados do Sul, faz sentido. A macarronada da nona era sagrada. Mas a nona também gostava de fazer nhoque, com a batata, este outro milagre da América, que salvou a Europa da fome, segundo Hobsbawn. E aos domingos, a nona fazia aquela fantástica polenta napolitana, milho e tomate siciliano à vontade. Depois das grandes navegações, a polenta deixou de ser feita com outros cereais. O milho veio, viu e venceu.

Então… e o trigo???

Bom, a vida é cheia de razões que se cruzam. E um fato talvez explique em parte a nossa trigo-dependência. Parte da coisa é relatada no livro de Philip McMichael, Development and Social Change (Sabe Publications, 2016).

A história vem lá do início dos anos 1950, quando o modelo americano de agroindústria entulhava os estoques, inflado pela tecnologia, mas, também, pelas tarifas e subsídios do governo federal.

Daí, agricultores, governadores de Estados predominantemente agrícolas e grandes companhias comercializadoras tiveram uma ideia brilhante. E, no ano de 1954, o governo federal inventou o Public Law Program (PL-480). Tinha três partes, a lei. Uma delas dizia respeito a vendas com termos de concessão (isto é, com descontos). O segundo título da lei anunciava o socorro a famélicos da terra (sem referência ao hino da internacional comunista, claro). E o terceiro referia-se ao escambo de alimentos por matérias-primas estratégicas. Esta última preocupação, lembremos, era parte do programa do Departamento de Defesa, que mantinha uma lista de dezenas de materiais dessa natureza.

Mas o que nos interessa é a ajuda alimentar, ou, mais precisamente, a parte do programa que visava mudar essa situação – fazer com que os países receptores da ajuda se tornassem clientes.

Para produzir resultados “virtuosos”, a ajuda era acompanhada de contrapartidas, ou condicionalidades. Em primeiro lugar, não permitia redução de compras – se um país comprava X toneladas de trigo norte-americano, receberia igual quantidade em doação, desde que seguisse comprando as X toneladas. Era uma espécie de promoção “compre um e receba dois”. Mas apenas para clientes fiéis e bem comportados – esses países deveriam mudar sua legislação, permitindo, por exemplo, que estrangeiros comprassem ativos no seu território – terras, prédios, fábricas, o que desse e viesse, o que viesse e desse. E uma cláusula era peculiar: os empreendedores americanos participantes da “doação” seriam remunerados em moeda do país receptor – cruzeiros brasileiros ou pesos colombianos, por exemplo. Em bancos locais e ao câmbio do dia, por suposto. Os montantes eram significativos. Calcula-se que na Índia, lá nos anos 1970, os EUA detinham quase um terço da oferta de rúpias. Os fundos seriam gastos via agências norte-americanas, nos países receptores. Iriam para projetos de infraestrutura, fornecimentos para as bases militares, empréstimos a companhias americanas (principalmente aquelas que operavam em agronegócio), e outras compras de produtos e serviços locais. Uma das expectativas, nada disfarçada, era promover “novas dietas” nesses países, em programas como os de merenda escolar. Por exemplo, fazendo o trigo substituir outros alimentos. Sacou, mané?

Os resultados da aplicação do plano foram variados, conforme os países. Alguns até que conseguiram margem de autonomia para tirar proveito. A Coreia do Sul, que tinha um governo centralizado, se deu bem. A Colômbia (guardem esse exemplo!) foi por outra via. Seu sistema agrícola era bem menos protegido e ruiu diante da concorrência de preços dos bens importados (trigo, por suposto). E as cidades incharam com camponeses falidos. Suas terras… se tornaram atraentes para compradores com dinheiro líquido. Algumas dessas terras eram férteis para plantações seletivas. Outras delas já tinham seu subsolo cuidadosamente mapeado. Eram ricas em ouro negro. Que estranho, não é? São áreas em que hoje atua o ELN, organização guerrilheira que sequestra executivos de petroleiros para cobrar “imposto revolucionário”, comprar mais armas e distribuir mantimentos, entre outras atividades. A vida dá voltas.

Talvez isso até ajude a entender um mistério. A Colômbia não era uma produtora nem consumidora de coca. Peru e Bolívia, sim – as plantações faziam parte da cultura dos nativos desde séculos. Como alimento e como recurso de acomodação às altitudes elevadas. A falência dos camponeses colombianos deve ter suscitado minhocas nas suas cabeças – o que acham? Se houvesse – como havia – um bom mercado para outras produções em outros mercados…

Os norte-americanos não faziam muita questão de enfeitar seus objetivos. Até o senador democrata George McGovern, que nem era dos mais reacionários, fez essa previsão em 1964:

“Os grandes mercados de alimentos, no futuro, serão os em que multidões estão apreendendo a comer produtos americanos, através do programa Food for Peace. As pessoas que ajudamos hoje se tornarão nossos clientes amanhã…  Um enorme mercado surgirá para todos os tipos de produtos americanos, se a Índia conseguir atingir pelo menos a metade da produtividade do Canadá”.

Claro como água.

Lá pelo final dos anos 1970, os países do chamado terceiro mundo recebiam perto de 70% das exportações norte-americanas de trigo. O consumo nesses países tinha deslanchado. As dietas locais mudavam. Trigo substituía milho, na América Central e do Sul. Ou o painço e o sorgo, na África Ocidental. Os preços subsidiados também faziam cair os preços das batatas, mandioca e outros produtos regionais.

Minha teoria conspiratória, nada ousada, aliás, me faz pensar no primeiro grande programa de merenda escolar patrocinado pelo governo federal, em Pernambuco, naquele canto do país em que os norte-americanos enfiavam seguidas missões “filantrópicas”, como os Peace corps. Lembram do filme de Fernando Weles? Vale a pena rever…

Pois é, o programa PL-480 evoluiu, foi integrado na Aliança para o Progresso (Alimentos para a Paz) e ensinou os nordestinos a substituir mandioca, milho, tapioca por trigo. E leite de cabra e vaca por leite em pó. E a comer macarrão com feijão. Merenda escolar com leite em pó, Toddinho e bolacha é um bom começo. O resto vem depois. For all, forró.

Agora acho que entendo melhor a frase do agricultor, aquela que abriu este artigo. A razão de sermos tão trigo-dependentes.

Ainda acho indispensável a pasta asciutta da nona. Ou o pão dito francês (que de francês tem nada). Mas me pergunto se alguém, lá no leste do mundo, sem algum programa de “ajuda alimentar”, substituiria a vodka pelo aguardente de cana. Ou o porco pelo tatu. Aqui no quintal da grande América tudo isso pode acontecer.

 

* Reginaldo Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

** Artigo originalmente publicado no Jornal da Unicamp, em 11/4/2019.

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