USMCA: o novo NAFTA

(Da esq. para a dir.) O presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, e seus colegas dos EUA, Donald Trump, e do Canadá, o premiê Justin Trudeau, após a assinatura do USMCA, em Buenos Aires. Crédito da foto: Martin Bernetti/AFP/Getty Images

Por Angelo Raphael Mattos*

Iniciada há quase dois anos, a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês) resultou em um novo acordo comercial, o chamado United States-Mexico-Canada Agreement (USMCA). A revisão do NAFTA era um dos principais pontos da campanha presidencial de Donald Trump, que prometia recompor postos de trabalho exportados para o México, além de buscar reverter o recorrente e significativo déficit comercial com o parceiro do sul. Durante as várias rodadas de renegociação do livre-comércio na região, diversos congressistas republicanos e democratas se manifestaram contrários à retirada dos Estados Unidos do acordo trilateral de livre-comércio que remonta aos anos 1990.

Do mesmo modo, governadores estaduais e associações de classe se posicionaram em favor da modernização do acordo trilateral de comércio. O USMCA, nesse sentido, parece acomodar essas reivindicações de grupos internos dos EUA, sem, no entanto, deixar de lado a promessa de campanha de Trump. Tal acomodação de interesses significa condições mais favoráveis aos EUA nas relações comerciais, por meio da modernização de um acordo de livre-comércio com um quarto de século de vigência, e que necessita atualizar questões que, hoje, são de fundamental importância na agenda do comércio internacional. O USMCA, desse modo, trata de questões como e-commerce e regras de origem mais bem detalhadas. Além disso, o novo acordo tem-se configurado como capital político de Trump para pressionar o México em outras questões de política externa e, ao mesmo tempo, conseguir apoio para a aprovação do USMCA.

Durante a renegociação do NAFTA, congressistas como o democrata Vicente Gonzalez (D-TX) e o republicano Dan Newhouse (R-WA) escreveram ao presidente Trump solicitando que os EUA permanecessem no acordo a partir da modernização de seus dispositivos. A carta, que também foi assinada por outros congressistas, enfatizava que dependiam desse acordo milhões de empregos nos EUA, e que pequenos e médios empresários só puderam expandir seus negócios por conta do livre-comércio garantido pelo NAFTA, visto que cerca de metade de todos os bens importados por Canadá e México são oriundos dos EUA.

Coalizões internas e governadores estaduais também se manifestaram em favor da permanência dos Estados Unidos no NAFTA. Em declaração à imprensa, a governadora de Iowa, Kim Reynolds, considerou que a retirada dos EUA do NAFTA teria consequências sem precedentes para produtores rurais e industriais do estado. No que se refere à produção excedente para o mercado externo, seria “devastador”, afimou Reynolds. O Missouri, por exemplo, tem mais de 60% de suas exportações destinadas a áreas de livre-comércio, como os mercados do Canadá e do México.

Os republicanos Roger Marshall (KS) e Kevin Brady (TX), esse último também presidente do Conselho de Lideranças dos Negócios do Texas, reconheceram a necessidade de atualização dos termos do NAFTA – portanto, sem a saída dos EUA do acordo. Para eles, o acordo de livre-comércio da região tem sido benéfico não apenas para grupos específicos no país, de diferentes setores da economia, como também tem beneficiado a economia dos EUA como um todo. Para Marshall, a modernização do NAFTA não é tarefa fácil, mas é perfeitamente possível. Ambos, partidários de Trump, acompanharam as rodadas de renegociação dos NAFTA até a criação do USMCA. Associações de classe e grupos de interesse como Americans for Farmers and Families e American Farm Bureau Federation, além de empresas como Heineken e Softwear Alliance, também se manifestaram publicamente em favor da continuidade dos EUA no acordo de 1994.

Desde as primeiras negociações para a efetivação do NAFTA, não há regras bem determinadas sobre o comércio digital. Tradicionalmente, demandas estadunidenses referentes a esse segmento, bem como com relação à propriedade intelectual, estão presentes, hoje, não apenas nas negociações de cunho regional, mas também nas tratativas no âmbito multilateral, como no caso da Organização Internacional do Comércio (OMC). Do início da década de 1990 à renegociação do NAFTA, não apenas tem havido um recrudescimento da complexidade das tecnologias, como também o volume de comércio nessas áreas tem se expandido crescentemente. Com o USMCA, os direitos autorais serão estendidos de 50 anos após o falecimento do autor para 70 anos, o que representa um ganho para os EUA, de onde provém boa parte da produção científica e tecnológica entre os parceiros do NAFTA. A proteção a um novo medicamento também seria estendida – neste caso, de oito para dez anos. O que significa que, dentro desse período, não poderia haver genéricos. Além disso, o acordo prevê proteções a plataformas de comércio eletrônico para que essas empresas não sejam responsabilizadas por aquilo que seus usuários postam. Também poderá haver isenção de impostos a produtos comprados eletronicamente.

O setor automobilístico sofreu, por sua vez, importante mudança com o novo acordo, no que se refere às regras de origem. Com o USMCA, 75% dos componentes de carros e caminhões devem ser oriundos de um dos países do acordo para não ser tarifado em nenhum nível. No NAFTA, esse percentual é de 62,5. O intuito é fomentar a compra desses componentes na América do Norte e fazer frente a custos mais competitivos proveniente da Ásia. Outra mudança importante e que evidencia mais um ganho do governo dos EUA diz respeito aos dispositivos trabalhistas no novo acordo. O USMCA pretende estabelecer um piso de 16 dólares a hora de trabalho para empregados no setor automobilístico, o que é uma clara tentativa de o governo Trump recompor os empregos exportados. A lógica é que, se não houver salários menos valorizados no México, como ocorre atualmente, as empresas não terão razão para deixar o território estadunidense, em princípio.

Durante as tratativas do acordo, o México também se comprometeu a fortalecer os sindicatos locais por meio da ampliação da legislação trabalhista interna. Outra mudança substancial do texto do NAFTA – mais especificamente de seu capítulo 11 – para o novo acordo, é que investidores não poderão processar os governos. No caso de EUA e Canadá, em nenhuma hipótese. Com relação ao México, a restrição ocorreu em termos relativos. A mudança é relevante porque pode relativizar questões ambientais, o que não é desejável por setores domésticos nos EUA e por parte considerável do Congresso. No USMCA, algo que se manteve e que pode ser considerado um ganho da diplomacia canadense foi a manutenção dos termos do capítulo 19 do NAFTA, cujo conteúdo permite que os Estados Partes adotem medidas contra decisões desfavoráveis provenientes de tribunais e agências dos EUA, em casos de disputas no âmbito do NAFTA.

Estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam que os efeitos das possíveis mudanças com o USMCA no Canadá poderão se concentrar no encolhimento de seu setor de veículos automotores, acompanhado por um declínio na produção de peças. No México, a contração na produção de veículos será superior a 5%, enquanto os setores de veículos, têxtil e de vestuário também reduzirão de tamanho. Ainda segundo o FMI, o México poderá compensar essas perdas no setor automobilístico com ganhos conjuntos em equipamentos elétricos e bens de capital. Nos Estados Unidos, os declínios mais notáveis podem se concentrar nos setores de têxteis e de peças de veículos, em face do efeito negativo dos preços mais altos na demanda do consumidor.

Nesse sentido, a aprovação e vida útil do USMCA são ainda incertas. O acordo possui a chamada sunset clause – ou “cláusula pôr do sol”, em uma tradução livre. Além disso, precisa passar pelo crivo dos Congressos de EUA, México e Canadá. Em decorrência dessa cláusula, o acordo estará sujeito à revisão pelos três países a cada seis anos, podendo expirar ao final desse prazo, ou se renovar por igual período. Quanto à apreciação do Legislativo dos EUA, a análise dos impactos do USMCA na economia norte-americana demandará tempo. O USMCA tem 34 capítulos, 13 anexos e 13 contratos paralelos, enquanto seu antecessor possui 22 capítulos, nove anexos e nenhum contrato paralelo.

Desse modo, ainda com relação ao Congresso dos EUA, Nancy Pelosi (D-CA) e seu partido democrata, maioria na Câmara, já se pronunciaram no sentido da criação de dispositivos mais rígidos no acordo, tanto no que diz respeito à matéria trabalhista quanto ambiental. Pelosi também salientou que o avanço do acordo depende da efetivação de novos dispositivos legais trabalhistas no México. A reação de Trump foi aumentar a pressão sobre o vizinho do sul em questões de fronteira e migração, o que demonstra que a práxis do America First é mais complexa do que um slogan de campanha e que, portanto, depende de outras variáveis e atores do campo doméstico e da arena internacional.

*Angelo Raphael Mattos é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com apoio CAPES.

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