Mattis, Kelly, McMaster e Tillerson: todos os ‘adultos’ saíram da sala
por Tatiana Teixeira
No dia seguinte ao abrupto anúncio do presidente Donald Trump sobre a retirada das tropas americanas estacionadas na Síria, o secretário da Defesa, Jim Mattis, informou, em 20 de dezembro, que deixa o governo até 28 de fevereiro próximo. Embora a decisão pareça ter surpreendido muitos em Washington, ela não é tão inesperada, nem se refere exclusivamente à questão síria.
Sua decisão coroa uma relação cheia de divergências em muitos temas: da necessidade de se criar uma Space Force à manutenção de soldados no Afeganistão (Trump quer a volta de metade do contingente), passando pela defesa das alianças tradicionais dos EUA, pelos exercícios militares conjuntos com a Coreia do Sul, pelo acordo nuclear iraniano e pela estratégia para a Síria e seus desdobramentos na região. Ou ainda pelas diferentes visões sobre as intenções de China e Rússia no sistema internacional e como isso deve afetar a relação com os EUA. Também pesou o fato de o presidente desprestigiar Mattis e ignorar sua indicação para o Estado-Maior Conjunto, escolhendo o chefe do Estado-Maior do Exército, general Mark Milley, e não o chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general David Goldfein.
Mattis não era o único contrário ao recuo militar americano na Síria. Nessa questão específica, sua visão era compartilhada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, e pelo conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, com os quais o general diverge em outras frentes. Também foi rejeitada, a seu tempo, pelo antecessor de Bolton, general H.R. McMaster.
Tensão pós-eleitoral
A decisão do secretário da Defesa também é o ápice de uma semana marcada pelas críticas de Trump ao Federal Reserve, pela queda de braço do Executivo com o Legislativo sobre o muro na fronteira e sobre o orçamento – disputa que levou a mais um shutdown –, ou ainda pelo cerco que se aperta, na investigação do FBI, sobre o magnata nova-iorquino. É em momentos assim que mais cortinas de fumaça costumam ser criadas.
Além disso, aparentemente, depois de perder a Câmara de Representantes nas midterms e após críticas de analistas (ultra)conservadores, Trump estaria tentando reanimar sua base eleitoral. Para mostrar seu compromisso com promessas de campanha, o presidente teria investido em duas frentes: a retirada de soldados da Síria, para deixar claro que “os EUA não são mais o xerife do mundo”; e o muro com o México, para mostrar sua “preocupação com a segurança nacional e com a preservação dos valores americanos”.
Intensa rotatividade no alto escalão
Apelidado de “mad dog” pela imprensa americana, o general Mattis foi o último do grupo de militares de alta patente a deixar o núcleo duro da Casa Branca e o quarto membro do alto escalão a sair do governo em menos de dois meses. Então vistos como aqueles que enquadrariam Trump e tornariam suas decisões em política externa e de defesa mais previsíveis e consensuais, todos os generais abandonaram o barco – por livre e espontânea vontade, ou porque foram forçados a fazê-lo. Para o senador Bob Corker (R-TN), um crítico de Trump, esses homens eram “aquelas pessoas que ajudam a separar nosso país do caos”.
Não restou nenhum dos chamados “adultos” na presidência.
No início de dezembro, o presidente anunciou que seu chefe de gabinete, general John Kelly, deixaria o governo até o final deste ano. Ao assumir o cargo em julho de 2017, sua função seria colocar alguma ordem na Casa Branca – sem muito sucesso. Depois das eleições de meio de mandato, Trump passou a dizer que renovaria sua equipe para 2020, incluindo a chefia de gabinete, buscando alguém que intensificasse as articulações políticas. Com dificuldades para preencher o cargo, no dia 14, o presidente anunciou que o atual diretor do Escritório de Gestão e Orçamento da Casa Branca (OMB, na sigla em inglês), Mick Mulvaney, assume a posição interinamente no começo de 2019. A relação entre Kelly e Trump já estava há tempos desgastada.
Também este mês, Trump anunciou a indicação de William Barr para a Justiça (Jeff Sessions foi demitido após as midterms), e Heather Nauert, como embaixadora dos Estados Unidos na ONU (Nikki Haley renunciou). Depois da saída do general Kelly, aumentaram as apostas quanto à permanência da secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, no governo. Ela acumula atritos com o presidente, sobretudo na política migratória, e era alinhada com o chefe de gabinete.
Após meses de desavenças e de reprimendas públicas por parte de Trump, o então secretário de Estado, Rex Tillerson (único civil do grupo dos “adultos”), foi demitido em março passado. Recentemente, Tillerson descreveu Trump como “bastante indisciplinado, não gosta de ler, não lê relatórios, não gosta de saber o detalhe de muitas coisas”. Já o general McMaster chegou ao governo em fevereiro de 2017 para substituir Michael Flynn no Conselho de Segurança Nacional. A relação com Trump desandou rápido por diferenças de estilo e de opinião, com atritos em público e reservadamente.
Falando da dança das cadeiras apenas no topo, em dois anos de governo, a administração Trump já teve pelo menos três chefes de gabinete, três conselheiros de Segurança Nacional, seis secretários de Comunicação, dois secretários de Estado, dois secretários de Segurança Interna, dois procuradores-gerais e dois secretários da Defesa, entre outras trocas. De acordo com o presidente e CEO da organização Partnership for Public Service, Max Stier, esse fluxo é “sem precedentes”.
Sistema de alianças e respeito aos aliados
A carta de Mattis foi inequívoca sobre os motivos que levaram a seu pedido de demissão: a falta de alinhamento entre as crenças e as visões de mundo dele e do presidente e a dissonância nas estratégias para atingir os objetivos delineados na National Defense Strategy de 2018 para manter os EUA como “ nação indispensável”.
Em sua despedida, Mattis alegou que “nossa força como nação está intrinsecamente ligada à força de nosso único e abrangente sistema de alianças e parcerias”. Defendeu “alianças fortes”, “solidariedade” e “respeito pelos aliados”. É no único momento em que concorda com Trump – “as forças armadas dos Estados Unidos não devem ser a polícia do mundo” – que ele estabelece, ao mesmo tempo, uma grande diferença. O ainda secretário se pronuncia pela defesa comum e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – alvo de Trump desde a campanha de 2016.
Também alerta sobre China e Rússia, países que estariam buscando “promover seus próprios interesses às custas dos vizinhos, da América e dos nossos aliados”. Na carta, Mattis se refere ainda a “atores malignos” e “competidores estratégicos” – duas expressões ouvidas, em suas variações, tanto em governos republicanos quanto democratas. “Temos de fazer todo o possível para promover uma ordem internacional que seja mais favorável para nossa segurança, prosperidade e valores”, acrescentou.
“Porque você tem o direito de ter um Secretário da Defesa que tenha visões mais bem alinhadas com as suas nesses e em outros assuntos, acredito que seja correto, para mim, renunciar à minha posição”, encerra ele.
Lamentos e rejeição bipartidária
Boa parte dos republicanos e dos democratas convergiu nas reações, tecendo elogios a Mattis e críticas a Trump, além de manifestarem seu temor quanto aos próximos desafios em segurança nacional e defesa e aos desgastes na relação com países aliados. No Congresso, mesmo entre os correligionários de Trump, muitos consideram que a condução da política exerna está em risco e que o presidente está “fora de controle”. Para além do interesse nacional, o principal critério agora para a substituição de Mattis seria a concordância com Trump, que estaria cada vez menos aberto ao contraditório.
Chuck Schumer (D-NY), líder da minoria no Senado, disse que Mattis foi “um dos poucos símbolos, um dos poucos itens de força e estabilidade no governo”, que agora ficará mergulhado “no caos”. A líder da (ainda) minoria na Câmara de Representantes e futura presidente dessa Casa, Nancy Pelosi (D-CA), afirmou que ficou “abalada” com a notícia e chamou Mattis de “americano patriota que era um conforto para muitos de nós como uma voz de estabilidade no governo Trump”.
O ex-vice-presidente democrata Joe Biden lembrou que, apesar das divergências, “compartilhávamos a visão — há muito tempo mantida por democratas e republicanos nesta nação — de que o respeito por nossos aliados e o compromisso com as mais importante e eficazes alianças na história tornaram a América segura”. Para Biden, “é claro que esse governo abandonou essas crenças americanas básicas”.
Republicanos defendem alianças
O senador Marco Rubio (R-FL) considerou que a saída do secretário da Defesa “deixa bastante claro que estamos indo na direção de uma série de graves erros políticos que vão colocar nossa nação em perigo, prejudicar nossas alianças & fortalecer nossos adversários”.
Em uma incomum declaração, o líder da maioria no Senado, o republicano Mitch McConnell (R-KY), defendeu os fundamentos de uma tradição de política externa que se manteve desde meados do século XX, com maior, ou menor intensidade, independentemente do governo. “É essencial que os Estados Unidos mantenham e fortaleçam as alianças do Pós-Segunda Guerra Mundial que foram cuidadosamente construídas por líderes em ambos os partidos. Também temos de manter uma compreensão clara dos nossos amigos e inimigos e reconhecer que nações como a Rússia estão entre estes últimos”, afirmou McConnell.
“Lamentei saber que o secretário Mattis, que compartilha esses princípios claros, deixará o governo em breve. Mas estou particularmente preocupado que ele esteja se demitindo, devido a diferenças profundas com o presidente nestes e em outros aspectos-chave da liderança global da América”, insistiu o senador, em geral constrito nas considerações.
Mesmo um dos principais aliados de Trump no Senado, o republicano Lindsey Graham (R-SC), condenou as recentes decisões do presidente e lamentou a saída de Mattis. “Se continuarmos no curso atual, estaremos iniciando a perda de todos os nossos ganhos e cimentando o caminho para um segundo 11/9”, advertiu.
O presidente do Comitê de Segurança Interna, representante Michael McCaul (R-TX), declarou que “dormia melhor à noite sabendo que ele estava lá”, enquanto o presidente do Comitê de Serviços Armados, representante Mac Thornberry (R-TX), admitiu estar “desapontado”.
Saída preocupa aliados
Entre os aliados europeus e asiáticos, Mattis era considerado um defensor da continuidade das alianças tradicionais, o que incluiria a preservação da Otan, assim como da segurança e dos interesses de seus integrantes. Sua saída reforçou a percepção, especialmente na Europa, de um governo que busca desmontar as estruturas da ordem erguida e organizada no Pós-Guerra. Pelo que Mattis passou a representar na Casa Branca e pelo conteúdo de sua carta, talvez este tenha sido um dos mais claros sinais recentes de uma ruptura no establishment de segurança e defesa americano.
No dia seguinte ao anúncio, o ex-primeiro-ministro sueco Carl Bildt disse ser “uma manhã de alerta na Europa”. Segundo ele, Mattis era visto como “o último vínculo forte através do Atlântico na administração Trump”, já que “todos os outros eram frágeis, na melhor das hipóteses, ou rompidos, na pior delas”. O secretário japonês da Defesa, Takeshi Iwaya, também se mostrou surpreso: “Não apenas ele trabalhou por uma estreita cooperação entre o Japão e os EUA, como ele mostrou uma liderança muito forte. Espero que a política de estreita cooperação como aliados continue”.