O relacionamento entre EUA e Arábia Saudita está fora de controle
Mas mesmo o desaparecimento de Jamal Khashoggi pode não forçar o governo Trump a reconhecer esse fato.
por Aaron David Miller e Richard Sokolsky
Traduzido da The Atlantic*
O possível envolvimento saudita no desaparecimento – e suposto assassinato – do jornalista saudita, Jamal Khashoggi, apresenta o relacionamento americano-saudita em sua maior crise desde o 11 de setembro. Se os sauditas forem culpados desse crime hediondo, isso deveria mudar tudo no relacionamento de longa data dos Estados Unidos com a Arábia Saudita. Infelizmente, provavelmente não vai.
A identificação do governo com o príncipe herdeiro de 33 anos, Mohammed bin Salman, como um modernizador determinado a abrir o reino e domar seu extremismo religioso, foi solapada agora por uma realidade mais cruel – a de um líder impiedoso, imprudente e impulsivo. disposto a reprimir e silenciar seus críticos em casa e no exterior.
Em primeiro lugar, o que aconteceu com Khashoggi diz respeito aos sauditas. Mas, ao se render a Riad num esforço fantasioso para torná-la a peça central da estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio, o governo Trump encorajou MbS, como o príncipe herdeiro é conhecido; deu-lhe sensação de invencibilidade; e encorajou-o a acreditar que não há consequências para suas ações imprudentes. E é provável que, a menos que seja confrontado com uma evidência incontestável da responsabilidade saudita pela morte de Khashoggi ou por séria pressão do Congresso, o presidente relute em impor essas consequências mesmo agora.
A habilitação da Arábia Saudita por Donald Trump começou antes mesmo de ele se tornar presidente. Ele falou abertamente na campanha eleitoral sobre sua admiração pela Arábia Saudita e em como não pôde recusar as ofertas sauditas para investir milhões em seus empreendimentos imobiliários. Seus antecessores podem ter ido ao México ou ao Canadá nas primeiras incursões estrangeiras; Trump escolheu a Arábia Saudita. Em uma viagem cuidadosamente coreografada por seu genro, Jared Kushner, que estabeleceu rapidamente laços pessoais próximos com o futuro príncipe herdeiro, Trump foi festejado, lisonjeado e enchido de esperanças de bilhões em vendas de armas e investimentos sauditas que criariam empregos em casa. A aversão de Trump ao acordo de Barack Obama com o Irã também estimulou o romance. Trump usou seu animus anti-iraniano (mesmo quando se vangloriou de que faria um acordo melhor com os mulás) para energizar seus laços com Riad, e MbS soube explorar sua ânsia. Relatos de que MbS via a equipe de Trump, particularmente Kushner, como ingênua e ignorante não deveriam ser uma surpresa.
Governos anteriores – tanto republicanos quanto democratas – também serviram aos sauditas, mas raramente em uma escala tão galáctica, irrestrita e sem reavaliação. Com seu silêncio ou aprovação, Washington deu a MbS – o nova arquiteto das arriscadas políticas sauditas agressivas e repressivas em casa e na região – ampla latitude para seguir um caminho desastroso em direção ao Iêmen e ao Catar. O governo fez de conta que não viu algumas das reformas de MbS, ignorando a repressão aos jornalistas e ativistas da sociedade civil. Na verdade, o The Guardian e outros veículos informaram que MbS havia contado a Kushner sobre seus planos de agir contra oponentes e empresários ricos, incluindo alguns membros da realeza, no que poderia ser chamado de “sheikhdown”.
A maior conquista da política externa do primeiro ano no poder de MbS foi seu sucesso em captar o coração e a mente do presidente. E há pouca dúvida de que a permissividade e disposição dos Estados Unidos em dar aos sauditas o benefício da dúvida encorajaram MbS a agir sem levar em conta as restrições externas e com a confiança de que o apoio dos Estados Unidos era tido como certo.
Os Estados Unidos têm importantes interesses nacionais na estabilidade da Arábia Saudita, e a adoção de MbS por Trump trouxe alguns retornos. As vantagens do apoio a MbS, no entanto, são esmagadas pelas desvantagens de capacitá-lo a estragar tudo o que ele toca. Nos últimos dois anos, as políticas adotadas pelo príncipe herdeiro prejudicaram importantes interesses americanos. Por todo o investimento que o governo fez na relação EUA-Arábia Saudita, estamos recebendo pouco em troca.
Em maio de 2017, os sauditas prometeram comprar US$ 110 bilhões em armas e equipamentos militares dos EUA. Trump citou essas vendas de armas como uma razão para não pressionar os sauditas pelo desaparecimento de Khashoggi. Mas há bem menos aqui do que aparenta.
Os sauditas também abriram seu talão de cheques para apoiar as iniciativas de ajuda dos Estados Unidos no Oriente Médio. Em resposta ao estímulo americano, eles ofereceram US$ 100 milhões em assistência à reconstrução da Síria. Esse é um passo bem-vindo, mas eles poderiam fazer muito mais, como, por exemplo, no Iraque.
É difícil avaliar o valor da cooperação contraterrorista saudita, porque a maior parte dela opera sob um manto de sigilo. No entanto, quaisquer que sejam as contribuições dos sauditas no compartilhamento de informações e na aplicação da lei atendem aos interesses sauditas. Eles não estão sendo oferecidos como favores aos Estados Unidos. O mesmo é geralmente verdade para a política energética da Arábia Saudita, onde as decisões sobre a produção de petróleo e as exportações são em grande parte impulsionadas pelas forças do mercado e pelas próprias necessidades do reino.
Contra esses ganhos modestos, os erros de MbS pesam muito. Uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita está travando uma campanha desumana contra os rebeldes Houthi, apoiados pelo Irã, no Iêmen, dando à al-Qaeda e ao ISIS maior margem de manobra e ao Irã mais chance de espalhar sua influência no Iêmen. O assassinato e a destruição arbitrários, em grande parte feitos com o apoio militar americano, contaminaram ainda mais a reputação da América. Os sauditas resistiram às tentativas das Nações Unidas de intermediar uma solução política para a disputa, bem como aos esforços de investigação da ONU para estabelecer a responsabilidade por possíveis crimes de guerra na Arábia Saudita.
Os esforços do governo para transformar o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) em uma coalizão anti-iraniana efetiva afundaram na luta amarga e desnecessária que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos escolheram com o Catar. O bloqueio conjunto do Catar levou o Estado do Golfo a fortalecer seus laços com o Irã e complicou enormemente os esforços do governo para enfrentar o desafio iraniano na região, transformando o GCC em uma força mais militar e formando uma nova “Aliança Estratégica para o Oriente Médio”. Os sauditas fizeram uma série de exigências não razoáveis ao Catar, rejeitando o empenho dos Estados Unidos para resolver a disputa.
Os sauditas também amorteceram as esperanças de Kushner de fazer o “acordo do século”. O rei Salman deixou claro à Casa Branca que a Arábia Saudita não apoiará o novo plano de paz do Oriente Médio, a menos que se designe explicitamente Jerusalém Oriental como a capital de um Estado palestino independente, uma exigência que o governo de Benjamin Netanyahu provavelmente rejeitaria. Sempre houve muita ilusão na concepção do governo Trump sobre o que os sauditas fariam para se aproximar de Israel e pressionar os palestinos quando se tratasse de pacificação. Agora, na sequência do caso Khashoggi, a tomada de decisões na Arábia Saudita sobre esta e outras questões pode tornar-se ainda mais introspectiva.
Tudo isso ajuda a explicar por que o papel saudita no desaparecimento de Khashoggi é um ponto de inflexão tão crítico nas relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita. Ao contrário do 11 de setembro, onde não havia evidências convincentes de que a liderança sênior anterior tivesse conhecimento ou desempenhado algum papel nos ataques, a morte de Khashoggi não poderia ter ocorrido sem a aprovação expressa do príncipe herdeiro. Mesmo que aqueles que procuram uma maneira de neutralizar esta crise acreditem que ela possa ser descartada como uma operação desonesta, e aqueles que perpetraram a matança possam ser levados a julgamento (uma fantasia, provavelmente), ninguém jamais acreditaria que MbS não tivesse responsabilidade no caso. Este ato único – a culminação de uma série de ações repressivas contra mulheres ativistas, jornalistas e familiares – tornará quase impossível continuar a mascarar o óbvio: MbS pode estar comprometido com uma reforma séria, mas ela será feita de cima para baixo por um líder implacável e inexperiente, que não tolera críticas ou discordâncias e que está preparado para descer ao nível de assassino a fim de eliminar qualquer oposição. A mensagem para os sauditas que acreditavam poder criticar MbS impunemente é que ninguém pode protegê-los. Se as alegações do terrível assassinato de Khashoggi forem confirmadas, isso marcará MbS permanentemente e tornará impossível para o governo apresentar suas credenciais reformistas.
Mesmo assim, o dinheiro saudita pode ser persuasivo. Na semana que vem, grandes financiadores americanos e funcionários do governo foram convidados para a Conferência Davos no Deserto, patrocinada por MbS, a ser realizada no mesmo Ritz-Carlton onde o regime marcou pontos com a detenção de sauditas ricos e influentes sob a desculpa de uma campanha anti-corrupção. Quem comparecer e quem não for dará alguma medida de como o desaparecimento de Khashoggi está afetando o reino.
Fora do governo, a pressão está crescendo. Recentemente, o Congresso ficou a quatro votos de suspender a assistência militar dos Estados Unidos à Arábia Saudita devido às baixas civis no Iêmen. Uma carta enviada a Trump, na quarta-feira, por um grupo de parlamentares bipartidários desencadeou a Lei Global Magnitsky, que poderia forçar o governo a investigar o desaparecimento de Khashoggi e, se os sauditas fossem considerados culpados, impor sanções. E os jornalistas – tendo perdido um dos seus – continuarão a ser dominados por essa questão.
A pergunta que resta a ser respondida, no entanto, dado o controle da política externa pelo Poder Executivo, é como o governo Trump responderá com o passar do tempo. Será que reconhecerá que o relacionamento entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita está fora de controle? Que os sauditas buscam interesses que não coincidem com os nossos, e que a liderança saudita parece estar confiante de que pode continuar a usar e abusar do apoio de Washington sem atenção ou consideração pelos valores ou interesses americanos? E será que – frustrado com o comportamento saudita – fará a mesma pergunta feita por Bill Clinton aos seus assessores após seu primeiro encontro com Netanyahu: “Quem é a ‘porra’ da superpotência aqui?”
No papel, MbS está comprometido com uma agenda que beneficiaria a Arábia Saudita e a região, particularmente sua aparente determinação de moderar a tensão extremista do Islã, a qual os sauditas exportaram durante anos, e promover os laços emergentes e amplamente encobertos do reino com os israelenses. Um líder experiente e esclarecido que busca a reforma em uma cultura política e região resistente à mudança normalmente seria digno do apoio dos Estados Unidos. Mas um impulsivo e imprudente de 33 anos liderando um regime que está reprimindo e aprisionando seus súditos em casa e, talvez, matando-os no exterior não é. A América não pode criar o primeiro, mas certamente não tem nenhum poder que empodere o segundo. O governo Trump não deve deixar de reconhecer a diferença.
Aaron David Miller é membro do Wilson Center e ex-analista do Departamento de Estado do Oriente Médio, consultor e negociador nos governos democrata e republicano. Ele é autor mais recentemente de “O fim da grandeza: por que a América não pode (e não quer) outro grande presidente”.
Richard Sokolsky é membro sênior não residente do Carnegie Endowment for International Peace. De 2005 a 2015, foi membro do Gabinete de Planejamento de Políticas da Secretaria de Estado.
Tradução por Solange Reis
*Artigo originalmente publicado em 12/10/2018, em https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2018/10/trump-fault-jamal-khashoggis-disappearance/572797/