“Não é assim que se dirige uma superpotência”: a Cúpula Trump-Putin e a morte da política externa americana
por Susan B. Glasser
Traduzido da The New Yorker*
Nos dias que se seguiram à reunião de segunda-feira em Helsinque, houve um frenesi compreensível em relação à conferência de imprensa pós-cúpula do presidente Trump, já que ele tomou o partido do presidente russo, Vladimir Putin, contra suas próprias agências de inteligência na questão da interferência da Rússia nas eleições norte-americanas em 2016, além de ter falado sobre sua vitória no Colégio Eleitoral, culpado os Estados Unidos pelas relações ruins entre os dois países e chamado o promotor especial que investiga seu suposto conluio eleitoral com a Rússia de uma “vergonha para o nosso país”, enquanto era observado por um Putin sorridente. Mas o verdadeiro escândalo de Helsinque pode estar apenas emergindo.
Na quinta-feira, Putin fez um discurso público aos diplomatas russos em que afirmou que alguns “acordos úteis” específicos foram acertados na reunião privada entre os dois presidentes durante a cúpula, encontro esse decorrente da insistência do próprio Trump. O anúncio de Putin veio um dia depois de seu embaixador em Washington, Anatoly Antonov, dizer que Trump teria feito “acordos verbais importantes” com Putin sobre o controle de armas e outros assuntos. Ainda segundo Antonov, os russos estariam prontos para começar a implementá-los. A Casa Branca, no entanto, não informou nada sobre quaisquer acordos que os dois líderes possam ter acertado privadamente, embora Trump tenha tuitado na quinta-feira de manhã que ele e Putin discutiram sobre tudo, desde a proliferação de armas nucleares à Síria, Ucrânia e comércio, mencionando ainda que aguardaria ansiosamente por uma segunda reunião em breve com o presidente russo, a fim de dar continuidade às conversas. Na tarde de quinta-feira, a Casa Branca confirmou que Trump pretendia convidar Putin para uma segunda cúpula em Washington nesse outono.
Dias depois da cúpula de Helsinque, os assessores de Trump não disseram nada – literalmente nada – sobre tais acordos. Aparentemente, sua própria equipe não tem conhecimento de qualquer coisa que Trump tenha acertado com Putin ou de planos para uma segunda reunião. Comunicados oficiais do Departamento de Estado e do Pentágono somente deixaram claro que estão todos embaraçosamente desinformados dias após o encontro.
Ao contrário de Putin, Trump não manteve seus próprios diplomatas a par dos detalhes da cúpula de Helsinque. O secretário de Estado americano, o conselheiro de Segurança Nacional e o embaixador em Moscou, todos presentes ao almoço após o encontro privado entre Trump e Putin, mantiveram-se calados sobre o que teria sido dito na reunião, deixando somente para os russos, por enquanto, as declarações sobre ocorrido a portas fechadas entre os dois presidentes. Enquanto Putin falava publicamente sobre “acordos” em Moscou na quinta-feira, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, dava uma entrevista para o talk-show do radialista conservador, Hugh Hewitt. O assunto principal foi uma reunião que Pompeo vai realizar na semana que vem para promover a “liberdade religiosa” internacionalmente. O secretário de Estado preferiu não comentar e tampouco foi questionado sobre o que aconteceu em Helsinque. A única questão sobre a Rússia foi se Pompeo havia sido alertado, antes da cúpula na Finlândia, a respeito do indiciamento pelo Departamento de Justiça norte-americano de uma dúzia de oficiais de inteligência militar russos que teriam conexão com o hackeamento russo de 2016 em favor de Trump. “Eu não posso falar sobre isso, Hugh”, respondeu Pompeo.
As informações fornecidas aos principais diplomatas dos Estados Unidos, aqueles cujo trabalho é lidar com a Rússia, foram igualmente escassas e possivelmente incompletas. Nessa terça-feira, o secretário-adjunto de Estado para a Europa e a Rússia, Wess Mitchell, atualizou o grupo do Departamento de Estado que foi reunido para discutir a política da Rússia antes e depois da cúpula sobre o evento. Não houve menção a quaisquer acordos. “Não houve nenhuma palavra sobre acordos”, disse-me um alto funcionário dos Estados Unidos. “Não houve informações aqui no lado americano sobre quaisquer acordos.” Então Putin mentiu? Ou Trump? Será possível que haja um mal-entendido e que Trump pense que ele não se comprometeu a nada, enquanto Putin acredita que sim? “É terrivelmente inquietante”, disse o oficial sênior. “Mas a questão é que nós não sabemos.”
Um embaixador dos Estados Unidos na Europa, com vasta experiência em lidar com a Rússia, disse-me que ele e outros funcionários do Departamento de Estado que precisariam estar informados sobre a situação não receberam nenhum comunicado pós-cúpula, nem mesmo os pontos de discussão abordados, coisas que são comuns após um encontro tão importante. “Nada”, ele me disse. “Estamos completamente no escuro. Completamente.”
Ao mesmo tempo, os fragmentos evidentes que surgiram dos comentários russos e das várias entrevistas de Trump sugerem que há motivo real para preocupação. Em uma entrevista à Fox, Trump questionou o compromisso dos Estados Unidos com o artigo 5 da OTAN, depreciando o seu novo membro, Montenegro, como um pequeno país “agressivo” que poderia nos levar à “Terceira Guerra Mundial”. Tal comentário se assemelha às ideias de Putin sobre a OTAN e Montenegro – onde a Rússia realizou uma tentativa fracassada de golpe no ano passado, com o objetivo de impedir a sua adesão à OTAN. Essa atitude deixou os analistas imaginando, justificadamente, se isso faria parte da agenda de negociações secretas entre Trump e Putin. O presidente norte-americano também fez alusão, em seus tuítes e em outras entrevistas, a discussões significativas com Putin sobre questões como a Síria, de onde ele já disse que quer retirar as tropas dos Estados Unidos. Se Trump, de fato, fechou um acordo secreto com Putin em Helsinque para retirar as tropas norte-americanas da Síria ou, ao menos, limitar a presença americana lá, isso poderia gerar sérios conflitos com muitos em seu próprio partido.
Embora os comentários de Trump tenham dado motivo para preocupação, outro alvoroço público surgiu por causa da sua afirmação de que estaria levando a sério a exigência de Putin em interrogar o ex-embaixador dos EUA na Rússia, Michael McFaul, e vários funcionários do Congresso. McFaul e esses funcionários participaram na imposição de sanções às autoridades russas corruptas após o bem-sucedido lobby do empresário norte-americano Bill Browder, que emergiu como um dos principais adversários internacionais de Putin. Será que a entrega de um ex-embaixador americano em Moscou e de funcionários do Congresso a autoridades russas também foi discutida – ou até acertada com Trump – na reunião privada? A Casa Branca disse inicialmente que a proposta de Putin estaria “em consideração”, enquanto o Departamento de Estado classificou-a como “absurda” e fadada ao fracasso. Finalmente, na tarde de quinta-feira, a Casa Branca disse que Trump “discorda” da proposta, apesar de ter insistido que a mesma teria sido feita por Putin “de forma sincera”.
Falei com o McFaul alguns minutos depois que a declaração da Porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, foi divulgada. “Isso dificilmente pode ser classificado como uma defesa nossa”, McFaul me disse, ressaltando que nem ele, nem os outros dez funcionários do governo dos Estados Unidos aparentemente listados por Putin, tinham algo a ver com Browder e ainda assim foram de alguma forma acusados de envolvimento em uma ação criminal espúria da Rússia contra o empresário. “O mais perturbador é que essa é somente a parte que sabemos dessa conversa privada e veja quão ridículo foi”, acrescentou McFaul. “Então, essa é a única coisa que sabemos sobre as negociações privadas e com consequências incrivelmente contrárias ao interesse americano. Então, por que não imaginar que o resto da conversa foi assim também?
Estamos testemunhando nada menos do que o colapso da política externa americana. A confusão enorme desta semana, até mesmo sobre os detalhes básicos da cúpula de Helsinque, mostra isso com muita clareza. Podemos não saber ainda o que Trump acordou exatamente com Putin ou se eles fizeram mesmo qualquer acordo; talvez, afinal, Putin e seus conselheiros tenham montado outra jogada de desinformação em cima de Trump e estejam enganando o mundo sobre sua reunião privada, porque um presidente americano inexperiente lhes deu uma oportunidade para fazê-lo. Mas, mesmo que não saibamos toda a extensão do que foi dito e feito a portas fechadas em Helsinque, eis os resultados da cúpula que já estão claros: o governo dos Estados Unidos ficou dividido por seu próprio presidente em relação à Rússia; seu processo tranquilo de tomada de decisão, ou mesmo de comunicação básica, se desintegrou; e a sua capacidade de liderar uma aliança na Europa, cuja principal missão nos últimos anos foi combater e conter a renovada ameaça russa, foi seriamente posta em dúvida.
Na quinta-feira, pouco depois dos comentários de Putin, conversei com um alto ex-funcionário do Conselho de Segurança Nacional e que tem mantido contato próximo com os conselheiros russos de Trump. O funcionário descreveu uma cena sombria: a total falta de procedimentos; o fracasso do governo dos Estados Unidos em esclarecer, não o que foi acertado, mas até mesmo o que foi discutido na reunião; as profundas preocupações dos aliados da OTAN que haviam passado a semana anterior acreditando ter garantido o compromisso de Trump com a agenda comum de combater a agressão russa. Tudo parecendo quase incompreensível para qualquer um com a mínimo noção de como os Estados Unidos conduziram sua política externa por gerações. “Isso não é a forma de administrar uma superpotência”, ele me disse. É difícil imaginar alguém, republicano ou democrata, que possa discordar seriamente.
Susan B. Glasser é redatora da The New Yorker, onde escreve uma coluna semanal sobre a vida na Washington de Trump.
Tradução por Solange Reis
*Artigo originalmente publicado em 19/07/2018, em https://www.newyorker.com/news/letter-from-trumps-washington/the-trump-putin-summit-and-the-death-of-american-foreign-policy