Armas secretas do Irã? Netanyahu alarmista ataca de novo
A aposta calculada de Israel contra Teerã no YouTube seria assustadora, se fosse verdade.
por Scott Ritter
Traduzido do The American Conservative*
Na segunda-feira, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, fez uma apresentação alarmante, supostamente baseada em centenas de milhares de páginas de documentos e arquivos que ele alega terem sido adquiridas pela inteligência israelense recentemente, detalhando um programa de armas nucleares clandestino. Se for verdade, o feito da inteligência israelense expõe um elemento significativo do não cumprimento iraniano no chamado acordo nuclear do Irã, formalmente conhecido como Programa de Ação Compreensiva Conjunta, ou JCPOA (na sigla em Inglês), no momento em que o próprio futuro do documento está por um fio.
Em 12 de maio, é esperado que o presidente Donald Trump anuncie se os Estados Unidos permanecerão no acordo nuclear do Irã. O presidente concorreu em 2016 com uma campanha que ridicularizava JCPOA como um “acordo horrível”, prometendo “rasgá-lo” depois que assumisse o cargo. Cumprir a promessa provou ser mais difícil do que ele esperava. Trump enfrentou a resistência do Congresso, do seu próprio gabinete (o ex-assessor de segurança nacional, H. R. McMaster, o ex-secretário de Estado, Rex Tillerson, e o secretário de Defesa, James Mattis, advertiram consistentemente contra a saída do acordo) e dos outros signatários do JCPOA, todos afirmando que o Irã estava cumprindo as cláusulas e, assim, o acordo funcionava na medida em que bloqueava o caminho do Irã para a bomba nuclear. Consequentemente, Trump foi obrigado a adiar a saída enquanto seu governo lutava para chegar ao consenso.
Consenso este que foi alcançado não através da construção de um caminho político que permitiria que os Estados Unidos permanecessem no JCPOA apesar das fortes reservas do presidente, mas pela remoção daqueles no gabinete que não apoiavam sua política sobre o acordo com o Irã. McMaster foi substituído pelo famoso falcão anti-Irã, John Bolton, e Tillerson foi expulso do Departamento de Estado, sendo substituído pelo ex-diretor da CIA, Mike Pompeo, que compartilha a posição de Trump sobre o destino do JCPOA.
Pela Lei de Revisão do Acordo Nuclear do Irã de 2015, o presidente deve certificar a cada 90 dias que, entre outras coisas, o Irã está “implementando o compromisso, de forma transparente, verificável e completa, incluindo todos os acordos técnicos ou adicionais relacionados”. Trump tem procurado uma desculpa para não certificar o Irã. A apresentação de Netanyahu, tanto em tempo, quanto em conteúdo, parece feita para ajudar a empurrar o presidente Trump para a opção de sair do acordo.
Mas não foi um replay das táticas de pressão israelenses usadas contra o governo Obama nas semanas e meses que antecederam a assinatura do JCPOA, em julho de 2015, quando Netanyahu viajou para os Estados Unidos e falou diretamente ao Congresso americano no esforço de inviabilizar o acordo. Desta vez, Netanyahu agiu de mãos dadas com o presidente e o secretário de Estado. Os detalhes da operação da inteligência israelense, que, segundo Netanyahu, se desenrolou “várias semanas atrás”, foram compartilhados com a inteligência americana e forneceram o pano de fundo para a conversa telefônica de Netanyahu com Trump, em 28 de abril, e para seu encontro com Mike Pompeo no dia seguinte.
As informações israelenses questionam o cumprimento das obrigações pelo Irã, conforme estabelecido no Anexo 1 do JCPOA sobre “Pendências Antigas e Atuais”. Em suma, a questão controversa sobre se o Irã já tentou adquirir uma arma nuclear. Se parecer que o Irã mentiu, o presidente, em boa fé, poderia comunicar ao Congresso o descumprimento do Anexo 1 e, dessa forma, se recusar a manter a suspensão das sanções econômicas.
Legalmente falando, no entanto, é insustentável o argumento israelense, assim como qualquer tentativa do governo Trump de confiar nas informações israelenses usadas por Netanyahu na apresentação. Ao implementar o “Roteiro para Esclarecimento de Pendências Antigas e Atuais”, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), já tinha investigado exaustivamente o Projeto Amad e seu suposto líder, Mohsen Fakhrizadeh, com base em informações disponibilizadas pelos Estados membros (provavelmente incluindo Israel). As conclusões da AIEA – de que o Projeto Amad foi encerrado em 2003 e de que Fakhrizadeh assumiu a direção de uma nova organização que usava a mesma equipe do projeto – foram as mesmas apresentadas por Netanyahu. Como o primeiro-ministro disse, o Irã negou a existência do Projeto Amad à AIEA.
O que Netanyahu não disse foi que o Irã fundamentou sua explicação contando detalhadamente para a AIEA sobre as estruturas da organização que supostamente fazia parte do Projeto Amad. Além disso, a conclusão da AIEA, “de que havia no Irã, no fim de 2003, uma estrutura organizacional capacitada para coordenar uma série de atividades relevantes para o desenvolvimento de um artefato explosivo nuclear”, indica que a agência sabia da possibilidade, se não da probabilidade, de que o Irã não era totalmente transparente sobre seu passado nuclear e, mesmo assim, a AIEA optou por certificá-lo como aderente ao “Roteiro para Esclarecimento de Pendências Antigas e Atuais”. A apresentação de Netanyahu não altera esse resultado.
A questão da credibilidade da informação à qual ele recorreu, bem como da fonte dessa informação – os serviços de inteligência israelenses -, é essencial para qualquer discussão sobre a relevância da apresentação de Netanyahu. De 1994 a 1998, quando servi como inspetor na Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM, na sigla em Inglês), trabalhei ativamente com a inteligência israelense, nos mais altos níveis, em questões relativas ao cumprimento pelo Iraque da obrigação de desarmamento, conforme as resoluções relevantes do Conselho de Segurança. A partir daquela experiência, minha conclusão é que as capacidades da inteligência israelense eram, e são, algumas das mais avançadas do mundo quando se trata de questões regionais que afetam diretamente sua segurança nacional – tanto o Iraque quanto o Irã se enquadrariam nessa categoria. Também descobri que o serviço de inteligência israelense, assim como todos os outros, é falível e propenso a erros analíticos motivados por imperativos políticos internos, falhas na supervisão e má análise por parte dos responsáveis pela avaliação da enorme quantidade de dados que chegavam às mãos de Israel.
Às vezes, os israelenses marcam um gol – um exemplo é a interceptação bem sucedida de equipamentos de orientação e controle de mísseis balísticos na Jordânia, em novembro de 1995, baseada em informação dos israelenses; outras vezes, eles falham, como no documento preparado para a AIEA, em 1997, sobre a reconstituição da infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento de armas nucleares do Iraque, que se mostrou 100% errada.
Em 1998, Israel concordou com a constatação dos inspetores da UNSCOM de que o programa proscrito de mísseis balísticos do Iraque não era mais uma ameaça operacional. Quatro anos depois, sem nenhuma informação nova, os israelenses mudaram de ideia, reavaliando que o Iraque possuía dezenas de mísseis operacionais de longo alcance, na tentativa de reforçar as justificativas americanas para invadir o país. Isso só ressalta que o governo de Israel, como o de qualquer outro país, é capaz de manipular a inteligência para atingir um objetivo político.
Essa experiência pessoal influencia a minha avaliação da apresentação de Netanyahu sobre o Irã. Ao discutir o Irã e quaisquer alegações sobre programas anteriores voltados para o desenvolvimento de armas nucleares, não se pode descartar o fato de as impressões digitais israelenses estarem na coleção de documentos anteriores – o chamado “laptop da morte” – que deu início à controvérsia sobre “supostos estudos”.
O momento da apresentação de Netanyahu, duas semanas antes de Trump decidir sobre o destino do JCPOA, é suspeito, assim como a metodologia usada para apresentar o material de inteligência para o mundo. Se, de fato, esse tesouro de documentos é o que Netanyahu afirma, existem mecanismos vigentes na estrutura do JCPOA para abordar as preocupações legítimas levantadas pelo conteúdo dos papéis. O governo israelense poderia ter compartilhado essa informação com qualquer uma das partes signatárias do acordo, que poderia, então, ter solicitado uma reunião da Comissão Conjunta do JCPOA, onde a questão do cumprimento iraniano seria discutida. Embora o processo envolvido seja complicado, no final, qualquer falha do Irã em se engajar construtivamente resultaria no encaminhamento do assunto ao Conselho de Segurança, onde as sanções poderiam ser reaplicadas.
Da mesma forma, os israelenses poderiam levar as informações diretamente para a AIEA, que é autorizada pelo JCPOA a investigar “atividades inconsistentes” em “locais que não foram declarados no acordo de salvaguardas ou no Protocolo Adicional”. O prédio em ruínas no distrito de Shorabad, ao sul de Teerã, mostrado por Netanyahu, parece se encaixar perfeitamente nessa descrição, apesar da aparente falta de lógica do Irã ao esconder documentos sensíveis em local tão inseguro. Mais uma vez, qualquer descumprimento substancial iraniano das exigências da AIEA acabaria por levar à retomada das sanções econômicas contra si mesmo.
As falácias práticas e legais inerentes à apresentação de Netanyahu podem não ter importância nenhuma. No fim das contas, Netanyahu se dirigia à plateia de uma pessoa só – Donald Trump. Esse “briefing de inteligência”, independentemente da veracidade das informações usadas para embasá-lo, será aproveitado por Trump para reforçar a decisão que ele já tomou de se retirar do JCPOA, colocando os Estados Unidos e o mundo num caminho para um único destino – guerra com o Irã. Uma vez que Trump saia do JCPOA, não haverá como voltar atrás. As alegações sensacionalistas de Israel nunca serão submetidas ao tipo de escrutínio que decisões dessa magnitude exigem. Este foi, e é, o objetivo final de Netanyahu, que é em si um comentário triste sobre um presidente cuja campanha foi ancorada na oposição à falha de inteligência para justificar a Guerra do Iraque. Tristemente, pode-se apenas constatar “Missão Cumprida”.
Scott Ritter é ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais, que serviu na antiga União Soviética implementando tratados de controle de armas, no Golfo Pérsico, durante a Operação Tempestade no Deserto, e no Iraque, supervisionando o desarmamento de armas de destruição em massa. É autor de “Deal of the Century: How Iran Blocked the West’s Road to War”.
Tradução por Solange Reis
* Artigo originalmente publicado em 01/05/2018, em http://www.theamericanconservative.com/articles/iranian-nukes-scaremongering-netanyahu-strikes-again/