Para adoçar a pílula, Moon propõe a Kim um tratado de paz. E daí?
por Andrew Salmon
Artigo traduzido do Asia Times*
Enquanto a Coreia do Sul se prepara para sua primeira reunião com a Coreia do Norte desde 2007, começam a surgir detalhes sobre o que Seul oferecerá a Pyongyang para facilitar o processo em direção a algum tipo de acordo sobre a desnuclearização.
A próxima reunião intercoreana, em 27 de abril, é crucial para estabelecer as bases do primeiro encontro da Coreia do Norte e dos Estados Unidos, a ser realizado em local ainda não definido em maio ou início de junho. Com Washington adotando uma linha firme – descartou concessões antes da desnuclearização -, cai sobre o presidente sul-coreano Moon Jae-in o ônus de fazer valer a pena para o líder norte-coreano Kim Jong-un continuar engajado.
Foi confirmado na quarta-feira que uma das ofertas é o tratado de paz, que substituiria o armistício que interrompeu a Guerra da Coreia de 1950-1953. O tratado será um item da agenda, uma demanda norte-coreana de longo prazo.
Várias autoridades sul-coreanas lançaram a idéia no começo da semana. O conselheiro nacional de segurança, Chung Eui-young, a anunciou na quarta-feira. E o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, confirmou, separadamente, que um tratado de paz teve a “sua bênção”, embora ele tenha acrescentado, em comentários pouco divulgados, que ficaria sujeito a “um acordo”.
A declaração de Trump sugere que um tratado só será assinado no final de um processo – muito incerto – de desnuclearização. Isso dificilmente é iminente. Ainda assim, no longo prazo, um tratado de paz tem sido uma demanda norte-coreana de décadas.
Um armistício sem a Coreia do Sul
A Guerra da Coreia começou com uma invasão norte-coreana em 25 de junho de 1950 – e nunca terminou. Depois de três anos de carnificina e incontáveis mortos, um armistício foi assinado por três partes: Coreia do Norte, China e Estados Unidos, representando a coalizão que lutou sob o comando da ONU liderado pelos Estados Unidos. Entrou em vigor à meia-noite de 27 de julho de 1953.
A Coreia do Sul não era signatária. A razão que prova que a noção popular e atual de que a estratégia norte-coreana é promover um racha entre o sul e os Estados Unidos foi, na verdade, antecedida por uma divisão criada não por Pyongyang, mas por Seul.
O então presidente da Coreia do Sul, Rhee Syngman, ficou furioso porque a guerra estava terminando com metade da península ainda sob o controle de Kim Il-sung. Rhee exigiu a vitória total. Para torpedear o armistício, ele libertou milhares de prisioneiros de guerra comunistas dos campos, em vez de enviá-los para a Coreia do Norte ou para a China. A tática de Rhee quase afundou o acordo e a respectiva trocas de prisioneiros de guerra. Rhee só se acalmou depois que os Estados Unidos ofereceram um Tratado de Defesa Mútua e um generoso pacote econômico. Mas ele não assinou o acordo.
Na falta de um tratado de paz, ambas as Coreias reivindicam soberania sobre toda a península. Esta contenção está embutida em suas Constituições e em seus sistemas políticos, sociais e judiciais mais amplos.
Não é de surpreender que a luta tenha incendiado indefinidamente no pós-armistício: lutas de fronteira e de comando na década de 1960, ataques terroristas na década de 1980, confrontos navais na década de 1990 e afundamentos e ataques de artilharia nos anos 2000.
Quem assina e por quê?
A lógica sugere que a Coreia do Norte – que assinou o armistício -, teria preferência nas negociações relacionadas a um tratado de paz sobre a Coreia do Sul – que não o assinou. Isso daria vantagem a Pyongyang na ótica fundamental da “legitimidade”, ao mesmo tempo em que lhe concederia poder de negociação direto com Pequim e Washington.
No entanto, dado que Seul está propondo a iniciativa, certamente é porque também quer assinar. Isso poderia exigir algum refinamento legal-diplomático. “Se fosse racional, um tratado deveria ter sido assinado por ambas as Coreias, China e Estados Unidos”, disse Andrei Lankov, um especialista russo sobre a Coreia do Norte na Universidade Kukmin de Seul, que classifica o armistício de 1953 como “uma rede emaranhada”.
Mas existem maneiras de driblar a ausência de Seul do documento de 1953. “As mentes pervertidas dos advogados, que são bons em chamar branco de preto, e preto de branco, podem inventar algo”, disse Lankov. “Mas não será fácil.”
Uma maneira poderia ser atualizar as negociações dos militares para a esfera política. “O armistício foi um acordo de militar para militar”, disse Dan Pinkston, especialista estratégico americano da Universidade de Troy, com sede em Seul. “Um tratado de paz seria um acordo político.” Isso o tornaria um tratado feito entre líderes nacionais – presumivelmente de ambas as Coreias, China e Estados Unidos -, em vez de assinado por generais.
Mas mesmo Lankov, que estudou na Universidade Kim Il-sung de Pyongyang, está intrigado com o motivo de a Coreia do Norte querer tanto um tratado de paz. “Muitas pessoas atribuem um grande peso político a este documento, mas para mim é apenas mais um pedaço de papel”, disse ele. “Temos visto muitos conflitos e guerras acontecerem sem uma declaração de guerra”.
Adeus, soldados americanos?
A ideia convencional por trás da exigência do norte por um tratado de paz – mais criticamente com os Estados Unidos, ao invés de com a Coreia do Sul – é que isso acabaria com a justificativa para as tropas americanas no sul.
“Um acordo é um pedaço de papel. Quais são as ações?”, perguntou Go Myong-hyun, especialista em Coreia do Norte do Instituto Asan, em Seul. “Uma redução da aliança entre Coreia do Sul e Estados Unidos, e o cancelamento permanente de exercícios militares conjuntos. Se você tem um acordo de paz, para que esses exercícios?”
Go acrescentou que o “timing é perfeito” para que isso aconteça. Washington e Seul discordam sobre o ônus da partilha dos custos de 28.500 soldados das Forças dos Estados Unidos na Coreia (USFK) estacionados na Coreia do Sul. Já uma redução do tamanho da tropa parece provável. “Se você olhar para a história do USFK (desde 1953), sempre houve uma retirada em câmera lenta”, disse Lankov. “Os números sempre diminuíram e raramente aumentaram”. De fato. A unidade central de combate do USFK, a 2ª Divisão de Infantaria, foi, ao longo dos anos, rebaixada de três brigadas de infantaria para apenas uma.
Outro ponto de discórdia entre Seul e Washington é a transferência planejada do controle operacional, em tempo de guerra, das tropas sul-coreanas para o comando sul-coreano, e não dos Estados Unidos. Dada a primazia americana no combate de guerra, não há um roteiro claro para a implementação.
“A diminuição do número de tropas é menos preocupante, o desmantelamento do Comando de Forças Combinadas (CFC) é mais”, disse Go. “Agora, o comandante do USFK pode aproveitar reforços de todo o Pacífico, e isso é possível porque o comandante do USFK é o chefe do CFC, mas se um general coreano estiver à frente, ficaríamos mais distante desse estado de coordenação entre as tropas americanas aqui e o resto das forças armadas dos Estados Unidos”.
Um tratado de paz poderia dar mais ímpeto aos fatores acima.
No entanto, uma retirada dos Estados Unidos pode afetar a economia da Coreia do Sul: empresários estrangeiros, particularmente, dizem que o USFK ajuda a manter o grau de investimento das agências de crédito para Seul, sendo um fator estabilizador para o investimento estrangeiro. “A remoção das tropas dos Estados Unidos tiraria um fator de estabilização”, disse Go.
E um tratado não significaria necessariamente o fim da aliança entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos. “Há presença dos Estados Unidos em muitos países que não estão em estado de guerra”, disse Lankov. O falecido líder norte-coreano, Kim Jong-il, chegou a dizer que a presença norte-americana na Coreia é um fator estabilizador contra a China, que durante séculos dominou a Coréia.
Mudanças domésticas para ambas as Coréias
Internamente, um tratado de paz provavelmente exigiria mudanças constitucionais e sistêmicas em ambas as Coreias: cada uma teria de reconhecer a outra e não poderia, a partir de então, reivindicar soberania sobre toda a península.
Isso poderia ser embaraçoso para Seul, uma democracia com toda a bagunça política que isso implica. O governo de Moon já está enfrentando a oposição da Assembléia Nacional com relação a emendas constitucionais muito menos radicais que propôs para coincidir com as eleições locais em junho. Um tratado também pode exigir que ele abandone a polêmica e poderosa Lei de Segurança Nacional, que inclui uma ampla gama de sanções para as negociações com a Coreia do Norte. Este passo também enfrentaria oposição conservadora.
Superficialmente, a mudança seria mais fácil para a Coreia do Norte: há menos pesos e contrapesos ao poder de Kim. No entanto, isso exigiria uma enorme mudança na propaganda e no pensamento do público: a missão nacional da Coreia do Norte, por mais de meio século, foi a reunificação liderada por Pyongyang.
“Para que fosse real, eu teria que ver mudanças fundamentais na sua visão de mundo – como quando Gorbachev veio com a glasnost e a perestroika, o abandono da doutrina Brezhnev e a liberação da Alemanha Oriental”, disse Pinkston. “Nós saberíamos quando a víssemos.”
No entanto, um tratado de paz – ainda que por escrito – não pode dar a garantia de segurança que Kim supostamente procura.
“Um tratado pode incluir a promessa de que os Estados Unidos não vão invadir a Coreia do Norte – existe algum tipo de garantia em relação a Cuba e, até agora, isso funcionou bem: não importa o quanto os americanos estejam irritados com Cuba, eles não atacaram”, disse Lankov.
“Mas a maior ameaça para a Coreia do Norte não é um ataque estrangeiro, mas a combinação de distúrbios domésticos e ataques estrangeiros, e nenhum presidente dos Estados Unidos pode garantir a segurança do governo norte-coreano contra esse tipo de ameaça.”
* Tradução por Solange Reis
Artigo originalmente publicado em 19/04/2018, em http://www.atimes.com/article/sweeten-summit-pill-moon-offers-kim-peace-treaty/