A política externa do governo Trump 2.0: a imprevisibilidade previsível

Crédito: Gage Skidmore/Flickr
Ainda é difícil anunciar linhas diretas de atuação na política externa, mas é possível prever que haverá impactos sobre o Brasil e as eleições presidenciais em 2026
Por Yasmim Abril M. Reis* [Republicação] [Política Externa]
O ano é 2025, mas lembra 2016. Entre muitos eventos marcantes daquele ano, destaca-se a ida do presidente dos Estados Unidos Barack Obama (2009-2017) a Havana, Cuba, após nove décadas sem uma visita presidencial norte-americana à ilha. A viagem sinalizava um avanço na tentativa de normalização das relações entre ambos os países. Em contrapartida, havia a ascensão da presença de Donald Trump na política norte-americana. Diferentemente de 2016, o novo contexto internacional neste ano tem sido marcado por crises regionais no âmbito da segurança midiaticamente reportadas, como as guerras entre a Rússia e a Ucrânia, Israel e Hamas.
No cenário doméstico, a ascensão do primeiro governo Trump (2017-2021) marcou o acentuamento da polarização política nos Estados Unidos, fenômeno que culminou na invasão ao Capitólio em 2021, quando o presidente Joe Biden (2021-2025) chegou ao comando da Casa Branca. No entanto, seria equivocado afirmar que a polarização surgiu com a presença de Trump, então um personagem outsider da política em 2016. Trata-se de um movimento que tem ganhado contornos desde a década de 1960 nos Estados Unidos.
Em 2017, o governo Trump 1.0 teve início. Com ele, o movimento da extrema direita emergiu por intermédio da narrativa antidemocrática instaurada pelo trumpismo. Paralelamente, no contexto brasileiro, em 2016, a presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) sofreu o processo de impeachment que a retirou da Presidência da República. Seu sucessor, Michel Temer (2016-2018), assumiu o cargo em meio às turbulências do cenário político do Brasil, o qual teve forte influência da Operação Lava Jato. Nessa direção, em 2018, durante a campanha eleitoral presidencial, Jair Bolsonaro (2019-2022) emulou narrativas antidemocráticas inspiradas nos slogans da campanha de Trump, a exemplo de “Pare o roubo” (“Stop the steal”, na versão em inglês) e na “Grande mentira” (“Big lie”, em inglês). Esses lemas dialogam negativamente com a democracia, representando uma tentativa de ruptura com a institucionalidade do aparato estatal em ambos os países.
Trump e Bolsonaro deixaram seus respectivos cargos presidenciais em meio ao caos instaurado por suas próprias figuras políticas, incutindo em seus apoiadores a ideia de que o processo de transição democrática de poder era uma fraude, embora nunca comprovada. Fato é que o trumpismo do primeiro governo deixou marcas significativas no mundo contemporâneo. Em questão de política doméstica, a instabilidade do sistema democrático gerou desafios a serem enfrentados pelos sucessores Joe Biden (2021-2025), nos Estados Unidos, e Luiz Inácio Lula da Silva (2023-presente), no Brasil, além do fortalecimento da raiz da extrema direita configurada na imagem de Trump.
No contexto da política externa, o primeiro governo trumpista deixou como legado a revisão do modelo de ordem liberal vigente que teve início com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), reconhecida pelo retorno de medidas nacionalistas por meio de uma posição pragmática e confrontacionista que defende ações bilaterais e regionais em detrimento do multilateralismo sustentado pela ordem liberal instaurada pelos próprios Estados Unidos. Concisamente, o balanço da política externa do governo Trump 1.0 consiste na intensificação da ferramenta econômica das tarifas com a finalidade de recuperar os postos de trabalho nos Estados Unidos, bem como reverter o déficit econômico em alguns setores da economia norte-americana por meio da campanha do “America First”.
Não por acaso, em 2024 Trump ressurgiu no contexto eleitoral norte-americano usando a mesma narrativa antidemocrática e econômico-comercial protecionista-mercantilista, atribuindo a responsabilidade dos problemas domésticos aos imigrantes e à China. É nesse ensejo que a nova política externa do governo Trump 2.0 se vale da narrativa da diplomacia do medo e da prática da diplomacia do Big Stick, uma política do século XIX inaugurada por Teddy Roosevelt (1901-1909) que preconiza o expansionismo norte-americano sob o lema “Fale com suavidade e carregue um grande porrete, e você irá longe”. Diferentemente de Teddy Roosevelt, Trump não se utiliza da suavidade para anunciar sua nova política externa.
Com efeito, desde antes da posse oficial, bem como em seu discurso inaugural, em 20 de janeiro de 2025, Trump não atuou com suavidade. Entre suas falas, ele anunciou o desejo de retomar o controle do Canal do Panamá, conquistar a Groenlândia e anexar o Canadá ao território norte-americano. Em vista disso, a América Latina retorna ao radar da política externa dos Estados Unidos de forma discursivamente direta, já que nunca saiu do mapeamento de Washington, o qual realizava o trabalho de vigilância de ameaça iminente na região por meio de seus departamentos de Estado e de Defesa.
Observa-se, desse modo, o redescobrimento da importância da América Latina na política externa do segundo governo Trump, visto que este é influenciado por uma visão ideológica da Guerra Fria (1946-1991), adotando uma abordagem mais pragmática baseada na força e na coerção econômica por meio do uso das tarifas comerciais e das bravatas que constituem a diplomacia do medo; portanto, desconfigurando as regras da ordem internacional liberal.
Diante disso, é plausível um questionamento diante da reorientação estratégica que Trump tem tentado colocar em prática desde 20 de janeiro: há uma reorientação estratégica na política externa norte-americana? Em caso afirmativo, ela pode ser considerada uma novidade? A verdade é que não é possível até o momento afirmar que há uma reorientação estratégica, porém é possível dizer que há uma reorientação tática, na medida em que Trump se retroalimenta das tradições de política externa dos pais fundadores e de seus discípulos ao longo da história dos Estados Unidos. Isso significa que o exemplo mais claro nos discursos de Trump é a herança deixada pelo primeiro presidente do país, George Washington (1789-1797), do não alinhamento permanente por meio do unilateralismo norte-americano. Dessa forma, observa-se a tentativa de retorno da tradicional política externa dos Estados Unidos anterior ao modelo de ordem internacional liberal pós-Segunda Guerra Mundial, em que o país defendia a expansão no multilateralismo. Assim, percebe-se que o segundo governo Trump representará a tradição da política externa, mas agregará mudanças, dados os novos desafios geopolíticos e geoeconômicos do século XXI, como a presença global da China, que tem interferido na hegemonia norte-americana.
Além disso, é importante distinguir os conceitos de hegemonia e dominação. Hegemonia, concisamente, é a promoção de bens públicos, isto é, uma tipologia de dominação por consentimento sem o uso direto da força militar. Dessa forma, a nova política externa de Trump consiste em manter as vantagens econômicas do país, que tem perdido espaço para os chineses. Em outras palavras, Trump 2.0 deseja reconquistar espaços para empresas norte-americanas no mundo.
Erroneamente, o senso comum tende a articular que Trump não sabe que é incapaz de deter a China. No entanto, o presidente compreende que é impossível deter a China de forma direta. Em decorrência disso, ele é crítico da política da globalização que se expandiu na era Bill Clinton (1993-2001). A nova lógica da política externa é que os Estados Unidos não podem mais se isolar e ser dependentes de insumos produzidos na China.
Com isso, Trump defende a ideia do reshoring, isto é, o retorno das fábricas e empresas para os Estados Unidos. Assim, ele identifica a necessidade de resgate da área de influência norte-americana com a finalidade de criar uma região em que a China não tenha grande atuação. Por isso, a América Latina, tradicional esfera de influência norte-americana, retorna ao radar norte-americano.
A América Latina foi a primeira região prioritária na expansão política e econômica dos Estados Unidos, tanto no aspecto público como no privado. Exemplo disso é a utilização de empresas, como a ExxonMobil, para exploração de petróleo colombiano e venezuelano. Outra empresa de relevância para acesso a recursos fundamentais para o desenvolvimento nacional norte-americano foi a United Fruit Company, atuante na América Central. Ainda, frisa-se que, para impulsionar, desenvolver e consolidar o poder econômico e militar dos Estados Unidos no mundo, o Canal do Panamá foi central, já que permite a comunicação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico.
Dessa maneira, a hegemonia regional marcou profundamente as relações latino-americanas, dado que a região sempre foi entendida como área de negócios norte-americana. Apesar de o foco estratégico dos Estados ter-se remodelado para outras regiões do globo nas últimas décadas, a América Latina permaneceu de forma implícita nos interesses norte-americanos por meio de algumas atuações. Entre estas, destacam-se milhões de dólares destinados ao Plano Colômbia com o objetivo de garantir a estabilidade da região ante o desafio do narcotráfico e a reativação da IV Frota Naval, em 2008, durante o governo de George W. Bush filho (2001-2009), em meio ao crescimento de governos progressistas e de esquerda na América Latina.
O século XXI tem sido marcado pela disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. Essa disputa e a busca pela transição energética global inserem a América Latina como prioritária, dado que é uma área rica em recursos minerais críticos para a transição energética global e, consequentemente, para a segurança energética que Donald Trump citou em seu discurso de posse.
Resumidamente, a América Latina retoma os parâmetros da política externa norte-americana com a finalidade de conter o avanço chinês na região, buscando assegurar aos Estados Unidos o acesso aos recursos naturais, ao comércio e aos investimentos. Desse modo, frisa-se que, apesar da imprevisibilidade característica de Trump em suas ações, é possível prever que ele se utilizará de pressões diplomáticas, aplicação de tarifas e até de coerção para conter a presença chinesa na América Latina e assegurar a hegemonia regional norte-americana, embora discursivamente ele contradiga a defesa dessa hegemonia, sendo, portanto, um discurso implícito ao unilateralismo defendido por sua nova gestão.
A nova tática da política externa norte-americana consiste na aproximação com governos mais alinhados a seus interesses. Isso significa desafios para governos progressistas na América Latina, como é o caso do Brasil sob a gestão Lula, que tende a enfrentar e tem enfrentado dificuldades no diálogo com a Casa Branca. O país tem ganhado maior atenção no radar norte-americano desde 2014 após os desdobramentos da Operação Lava Jato e das novas descobertas do pré-sal, uma das maiores reservas de petróleo localizadas no presente século. Esse assunto ganhou maior ênfase após Edward Snowden, em 2013, revelar que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos estava espionando os assuntos internos do Brasil, em especial na Petrobras.
Os primeiros governos de Trump, nos Estados Unidos, e de Bolsonaro, no Brasil, foram marcados por ataques às instituições democráticas e ao sistema multilateral. No entanto, em 2023, Lula assumiu a Presidência em meio a acusações de eleição fraudulenta e à perseguição dos apoiadores do bolsonarismo. Em contrapartida, o apoio e o rápido reconhecimento do novo governo pela gestão Biden contribuíram para a garantia do processo democrático brasileiro. Nesse sentido, observa-se que a relação bilateral Estados Unidos-Brasil é histórica. Desse modo, a falta de diálogo entre o governo progressista de Lula e o governo de extrema direita de Trump será a principal questão neste ano, já que, em 2026, acontecerão as eleições presidenciais no Brasil. O bolsonarismo deve se utilizar dessa narrativa, somada ao slogan de perseguição política de seu líder, Bolsonaro, para confrontar o sistema e tentar derrotar o governo progressista e de esquerda petista.
Sublinha-se ainda que o principal desafio, com o qual o governo petista terá de lidar no cenário político que se aproxima, é a articulação entre o “populismo” bolsonarista emulado pelo trumpismo e as elites dirigentes do país que declaram apoio aos Estados Unidos, sendo contrárias às mudanças sociais que a China propaga em suas ações. É importante frisar que, corretamente, a China, diferentemente dos Estados Unidos, defende a não interferência em assuntos internos de Estados soberanos.
Em meio ao contexto da disputa geopolítica, o Brasil e os países da América Latina não podem perder a chance de buscar dialogar com outros blocos, como a União Europeia, a qual, pressionada pelas bravatas de Trump, buscará novos parceiros e aliados, como o Brasil, acelerando, portanto, o acordo com o Mercosul. A política externa trumpista pode ser caracterizada como uma encruzilhada histórica, na medida em que tenta resgatar linhas tradicionais de política externa ao mesmo tempo que abre possibilidades de novos horizontes comerciais para a América Latina e para o Brasil. Dessa forma, cabe aos países da região a decisão de se reposicionarem no cenário internacional evitando que a América Latina seja um território de disputa entre grandes potências, assim como de exploração e extração de recursos; portanto, garantindo seu papel no cenário internacional por meio de sua posição estratégica para o desenvolvimento sustentável global.
Referências bibliográficas
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* Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID-ESG), pesquisadora colaboradora no Opeu nas áreas de Segurança e Defesa, e líder de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC-EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
** Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil, em 3 mar. 20925. Republicado no OPEU com a autorização da autora.
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