Arthur Banzatto ao OPEU: ‘Lava Jato foi nova etapa de ingerência, mais consensual, dos EUA no Brasil’

Crédito: GGN
Por Luan Brum* [OPEU Entrevista] [Lava Jato]
Arquivo pessoal
Neste OPEU Entrevista, conversamos com Arthur Banzatto, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina.
Nossa conversa abordou o seu recente livro A hegemonia estadunidense e o combate à corrupção no Brasil: o caso da Operação Lava Jato, publicado pela Kotter Editorial (2024). Como destaca o autor, “… a ascensão da Lava Jato promoveu, no Brasil, um discurso político iliberal, com características conservadoras e punitivistas, responsável por alguns dos retrocessos democráticos que o país enfrentou nos últimos anos”.
OPEU: Professor, gostaria de saber como a sua formação em Direito e Relações Internacionais contribui para a compreensão dos reflexos da hegemonia dos Estados Unidos na América Latina.
Acredito que as duas áreas do conhecimento são complementares e, de formas distintas, ambas nos ajudam a compreender a realidade social em que estamos inseridos. Para a tradição marxista, o Direito, por si só, não é capaz de explicar a realidade, tampouco existe de maneira autônoma, pois está subordinado ao modo de produção capitalista. O Direito moderno, portanto, seria um instrumento de dominação de classe com o objetivo de garantir a propriedade privada dos meios de produção e o acúmulo de capital nas mãos de uma elite econômica.
Sendo assim, apesar de nos ajudar a compreender a dimensão jurídica desta hegemonia dos EUA na América Latina – a partir de suas legislações internas, como a FCPA [Lei de Combate aos Atos de Corrupção no Exterior, em tradução literal], de acordos internacionais de cooperação jurídica com outros países e da aplicação de multas bilionárias contra empresas estrangeiras por parte do seu Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) –, as limitações próprias do Direito fazem com que seja necessário recorrer a outras áreas do conhecimento para compreender o fenômeno em sua totalidade.
Com sua abordagem interdisciplinar, as Relações Internacionais nos permitem compreender essa hegemonia estadunidense de uma forma mais profunda, conjugando os níveis de análise política e econômica, nacional e internacional, além de sua dimensão histórica. De forma mais específica, o Marxismo aplicado às Relações Internacionais nos permite compreender o fenômeno não apenas com base nas relações de dominação envolvendo os EUA e os Estados da América Latina, mas também incorporando a análise das divisões de classe e os interesses particulares que existem dentro de cada Estado.
OPEU: Qual é a relação entre os atentados do 11 de Setembro e a estratégia adotada pelos Estados Unidos para o combate à corrupção? Seria possível afirmar que houve uma maior centralização de poder nas mãos de agências como a NSA, a CIA e o FBI?
Sim, podemos afirmar que, em resposta aos atentados do 11 de Setembro, a Doutrina Bush e sua política de Guerra ao Terror promoveram um fortalecimento do poder estatal estadunidense, exercido por órgãos como a NSA, a CIA e o FBI [Agência de Segurança Nacional, Agência Central de Inteligência e Escritório Federal de Investigação, equivalente à Polícia Federal no Brasil, respectivamente]. Naquele contexto, foi desenvolvido um amplo sistema de espionagem e monitoramento de telefonemas e e-mails de cidadãos e instituições, dentro e fora do território dos EUA, sob a alegação de supostos vínculos com grupos terroristas. A partir de atos normativos, como a Patriot Act (2001), houve uma crescente relativização do direito à privacidade em escala global, em favor de uma suposta segurança nacional estadunidense.
Essa estrutura de vigilância permaneceu ativa, mesmo após o fim do Governo W. Bush, passando a ser mobilizada para outras finalidades. Em agosto de 2013, foi revelado que a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) espionava o governo brasileiro, interceptando comunicações e mensagens eletrônicas da então presidenta Dilma Rousseff, que chegou a ter seu telefone grampeado, além do monitoramento de empresas estatais, como a Petrobras.
Nesta entrevista à TV Fórum, o prof. Arthur Banzatto compartilha as descobertas e conclusões de sua tese de doutorado sobre a Lava Jato
Em paralelo, existe também uma estreita relação entre a agenda antiterrorismo e a agenda anticorrupção por parte da política externa dos EUA. De forma resumida, a pesquisa identificou que as ações de cooperação jurídica internacional das autoridades estadunidenses com as elites jurídicas brasileiras (delegados, juízes e promotores) foram motivadas inicialmente pela preocupação de que seria necessário combater a lavagem de dinheiro, pois esta seria uma das principais formas de financiamento do terrorismo internacional. Nesse contexto, a corrupção aparece como um crime associado à lavagem de dinheiro, uma vez que agentes públicos acusados de corrupção utilizavam doleiros para movimentar recursos ilícitos advindos do pagamento de propina.
Importante destacar que a Operação Lava Jato surge, inicialmente, como uma investigação envolvendo lavagem de dinheiro, e não atos de corrupção propriamente. Além disso, o ex-juiz Sergio Moro foi uma das autoridades que participaram do Projeto Pontes, que consistia no financiamento e o treinamento, por parte do Departamento de Estado dos EUA (DoS, na sigla em inglês), de uma rede de juristas brasileiros para atuarem de forma alinhada aos interesses estadunidenses no Brasil.
OPEU: Como situar os interesses das elites econômicas locais e estadunidenses dentro do que representou a Lava Jato? Em termos históricos, o que esse relacionamento nos ensina quanto à hegemonia dos Estados Unidos e a América Latina?
Historicamente, a política externa dos EUA para a América Latina sempre buscou atender aos interesses das suas grandes empresas e dos seus investidores privados. Para alcançar esses objetivos, promoveu intervenções militares, golpes de Estado e estratégias de desestabilização econômica e política contra governos socialistas ou progressistas que defendiam a redução das desigualdades sociais, maiores direitos para os trabalhadores, reforma agrária e nacionalização de empresas estratégicas, entre outras medidas populares que contrariavam os interesses do grande capital.
No caso específico da Lava Jato, a questão central envolvia a exploração do pré-sal brasileiro pelos conglomerados petrolíferos estadunidenses (Chevron e Exxon). O marco jurídico do pré-sal, aprovado pelo Governo Lula em 2010, havia contrariado os interesses dessas empresas, que buscavam maior protagonismo nas operações de exploração do petróleo brasileiro. Essas empresas externavam seu descontentamento principalmente com o fato de que a Petrobras atuaria como única operadora de todos os blocos não licenciados e com as exigências de conteúdo local para a exploração dos demais blocos. Como consequência, a Embaixada dos EUA em Brasília e o Consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro atuaram ativamente para derrubar a lei do pré-sal.
Desde 2015, Lava Jato discutia repartir multa da Petrobras com estadunidenses (Crédito: Agência Pública/The Intercept Brasil)
Após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, o modelo petista de exploração do pré-sal seria revisto em 2016, durante o governo Temer, por meio de uma lei proposta por José Serra, então senador, que passou a ocupar o cargo de ministro das Relações Exteriores. A partir de então, as grandes corporações estadunidenses finalmente tiveram as suas demandas atendidas.
Além da questão envolvendo o pré-sal, o crescimento internacional da Odebrecht e de outras grandes construtoras era visto pelos EUA como parte de um projeto político do Partido dos Trabalhadores e da esquerda latino-americana na região. Ademais, ao ganharem cada vez mais contratos internacionais, essas empreiteiras fortaleciam a influência geopolítica do Brasil na América Latina e na África, principalmente por meio do financiamento de campanhas eleitorais em diversos países. Nesse sentido, a ascensão internacional do Brasil representava uma ameaça à hegemonia dos EUA na região, o que despertou o alerta das autoridades estadunidenses.
OPEU: A Operação Lava Jato representou uma nova fase nos processos de ingerência dos Estados Unidos na região, ou seria apenas a continuidade de práticas históricas adaptadas a novos mecanismos?
Acredito que ela representa uma nova etapa de ingerência, de caráter mais consensual, em comparação aos processos coercitivos de intervenções militares e golpes de Estado clássicos que ocorreram ao longo do século XX, sobretudo, durante a Guerra Fria. Nesse sentido, a Operação Lava Jato se insere dentro de uma dinâmica de ingerência que alguns autores vão classificar como “imperialismo sutil” ou “golpe brando”, por meio de práticas institucionais que operam dentro de uma aparente legalidade e legitimidade, como o Lawfare e a cooptação de elites jurídicas brasileiras.
Apesar de as finalidades políticas e econômicas dessas ingerências apresentarem uma relação de continuidade ao longo da história – em que os EUA buscam garantir a manutenção de sua hegemonia no sistema internacional e, ao mesmo tempo, a expansão global de seu capital privado nacional –, o caráter cada vez mais consensual dessa hegemonia estadunidense contemporânea faz essas ingerências se tornarem cada vez menos perceptíveis.
OPEU: Dez anos se passaram desde o início formal da Operação Lava Jato. Quais foram os impactos materiais e simbólicos deixados na conjuntura brasileira? Onde estão seus principais atores hoje?
Embora o STF tenha anulado processos, provas e sentenças produzidos pela Lava Jato, com base nas ilegalidades cometidas pela operação, os seus impactos materiais e simbólicos apresentaram efeitos negativos mais duradouros, repercutindo até os dias atuais, mesmo com a eleição de Lula em 2022.
Do ponto de vista econômico, podemos destacar a desestruturação da indústria brasileira de construção pesada e o declínio sistemático dos investimentos da Petrobras, que voltou a se dedicar, principalmente, à produção e à exploração de petróleo, reduzindo a sua atuação em refino, distribuição e transporte. Nesse sentido, a queda expressiva no volume de investimentos coincidiu com a política de venda de ativos e com o expressivo avanço das petroleiras estrangeiras no Brasil, sobretudo a partir da privatização de subsidiárias, como a Liquigas, e de refinarias, gasodutos e oleodutos.
Do ponto de vista político, além de ter contribuído decisivamente para o impeachment de Dilma Roussef em 2016 e para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, a parcialidade da Lava Jato também foi responsável por promover uma “judicialização da política” e uma “politização da Justiça”, com o Poder Judiciário interferindo cada vez mais nos rumos da política brasileira. Ademais, a ascensão da Lava Jato promoveu, no Brasil, um discurso político iliberal, com características conservadoras e punitivistas, responsável por alguns dos retrocessos democráticos que o país enfrentou nos últimos anos. A aliança entre o “lavajatismo” e a direita brasileira, presente desde o início da operação, foi reforçada a partir do momento em que Sergio Moro, expoente máximo da Lava Jato, aceitou ser um dos fiadores do governo Bolsonaro. Posteriormente, a atuação político-partidária de Moro e seu colega [Deltan] Dallagnol [jurista e político, procurador da República de 2003 a 2021 e coordenador da força-tarefa da Lava Jato] foi-se radicalizando ainda mais no sentido de atacar as instituições do Estado Democrático de Direito, como os direitos e as garantias fundamentais, o STF e o Congresso Nacional – considerados como obstáculos da luta anticorrupção.
Atualmente, Moro é senador da República pelo estado do Paraná e um dos principais nomes da oposição ao governo Lula. Dallagnol, apesar de ter tido o seu mandato cassado por decisão do Tribunal Superior Eleitoral em maio de 2023, continua sendo uma figura política influente no debate público, por meio de manifestações nas redes sociais e participação em eventos com lideranças políticas, empresariais e religiosas.
Saiba mais sobre a pesquisa do prof. Arthur Banzatto, nesta conversa no canal A Voz Trabalhadora
OPEU: Com o recente retorno de Donald Trump à Casa Branca, como você avalia e/ou projeta a atuação dos Estados Unidos na América Latina? A retórica de combate à corrupção continua a ocupar um lugar central nas agendas de suas agências?
Em 2017, o Plano Estratégico de Segurança Nacional do governo Trump reconheceu publicamente que o combate à corrupção estrangeira por parte dos EUA, por meio de suas ferramentas econômicas e diplomáticas, estaria relacionado com a defesa dos interesses das empresas estadunidenses no exterior, garantindo-lhes maior competitividade contra a concorrência internacional.
Uma dessas principais ferramentas era a FCPA [Lei de Combate aos Atos de Corrupção no Exterior, em tradução literal], mobilizado para aplicar sanções bilionárias contra empresas estrangeiras por atos de corrupção cometidos fora dos EUA. A FCPA e outras legislações correlatas dos EUA, além de garantirem a extraterritorialidade da jurisdição estadunidense, apresentam também a finalidade de eliminar concorrentes e expandir mercados.
Contraditoriamente, essa legislação foi suspensa por Trump no dia 10 de fevereiro de 2025, sob o argumento de que a aplicação da FCPA tem sido utilizada de forma abusiva, prejudicando os interesses de empresas estadunidenses e, consequentemente, da própria política externa do país.
Ainda que empresas estadunidenses estejam sujeitas às multas aplicadas com base na FCPA, a minha pesquisa (e outras sobre o tema) mostram que a aplicação da lei tem sido desproporcionalmente direcionada a países emergentes, em especial do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Sobre o livro
Título: A hegemonia estadunidense e o combate à corrupção no Brasil: o caso da Operação Lava Jato
Autor: Arthur Banzatto
Editora: Kotter Editorial
Ano de publicação: 2024
Número de páginas: 528
Valor (site da editora): R$ 174,70
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* Luan Brum é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGRI-UFSC) e pesquisador do GEPPIC. Contato: luan.brum1996@hotmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. Recebido em 28 fev. 2025.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com
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