Internacional

Trump 2.0: ‘Riviera’ em Gaza e a ordem regional no Oriente Médio

Praia da cidade de Gaza: Da praia de Beit Lahiya até as províncias do sul (Crédito: Husam Samir/Flickr)

Por Isabela Agostinelli* [Informe OPEU] [Palestinos] [Oriente Médio] 

Em 4 de fevereiro de 2025, o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, promoveu uma coletiva de imprensa na Casa Branca, em Washington, D.C., ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Na ocasião, Trump declarou que os EUA tomariam Gaza para si e a transformariam em um empreendimento imobiliário e voltado para o turismo.  

Nas palavras do próprio republicano: “Os EUA vão assumir o controle da Faixa de Gaza e também faremos um trabalho lá. Seremos responsáveis por desmontar todas as bombas não detonadas e outras armas perigosas no local, nivelar a área e remover os prédios destruídos. Vamos nivelar tudo, criar um desenvolvimento econômico que forneça um número ilimitado de empregos e moradias para as pessoas da região… fazer um trabalho de verdade, fazer algo diferente”. 

Obviamente que os beneficiários deste suposto desenvolvimento econômico não seriam os palestinos. Vítimas de um genocídio televisionado há 16 meses, eles serão novamente forçados a se deslocarem para fora de suas terras, caso a ideia de Trump seja implementada. Em outras palavras, Trump avançaria a limpeza étnica dos palestinos, como explica Bruno Huberman. O republicano chegou, inclusive, a solicitar que Egito e Jordânia abrigassem os palestinos expulsos de Gaza, o que foi rejeitado por ambos.

Não surpreendentemente, a ideia de tornar Gaza uma riviera no Oriente Médio repercutiu negativamente ao redor do mundo. Não apenas os próprios palestinos – sociedade em geral e governantes do Hamas e da Autoridade Palestina –, mas também chefes de Estado de países como Rússia, China, Brasil, Turquia, Irlanda, Espanha, França, entre outros líderes mundiais, demonstraram oposição às falas de Trump. 

De fato, há possibilidade de os Estados Unidos ocuparem a Faixa de Gaza? O que isso significaria na prática? Quais os reais interesses por trás desta retórica?

A retórica e as ações 

Mais do que palavras, são as ações – históricas e atuais – dos Estados Unidos no Oriente Médio e sua aliança especial com Israel que indicam quais interesses podem estar por trás dessas absurdas declarações de transformar uma região devastada por Israel – com apoio financeiro, militar e ideológico dos EUA – em uma área de resorts para turismo internacional. 

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São evidentes o cinismo e a hipocrisia nas falas de Trump. Na coletiva, ele afirmou que Gaza tem sido “um símbolo de morte e destruição há muitas décadas” e um “lugar infeliz”. Trump apenas esqueceu de adicionar os sujeitos ao predicado. Quem transformou Gaza em uma paisagem de morte foi o Estado de Israel – independentemente se era Netanyahu no poder – com apoio total dos Estados Unidos.  

Estudo recente publicado na renomada revista The Lancet apontou que o número de palestinos mortos por Israel, de 7 de outubro de 2023 a 30 de junho de 2024, seria de 64 mil, um número 41% maior do que o estimado pelo Ministério da Saúde palestino. Até 3 de fevereiro de 2025, o número oficial contabilizava 61.709 mortes, incluindo 17.492 crianças. 

De outubro de 2023 a outubro de 2024, Israel recebeu cerca de US$ 18 bilhões em ajuda militar dos EUA. No apagar das luzes de seu mandato, em janeiro de 2025, Joe Biden anunciou o envio de mais US$ 8 bilhões em armas a Israel. Já com Trump, a promessa foi de US$ 1 bilhão em equipamentos militares, como bombas e buldôzeres, além dos US$ 3,3 bilhões que Israel já recebe dos EUA anualmente. 

Estrangulamento das possibilidades de vida em Gaza 

A manutenção das relações especiais dos EUA com Israel – dentro das quais a ajuda militar e financeira representa apenas uma parcela, embora uma das mais materialmente significativas – acontece ao mesmo tempo em que Trump conduz políticas protecionistas com vistas ao avanço da chamada America First. 

No início de fevereiro, Trump reforçou uma medida de seu primeiro governo (2017-2021) ao encerrar o financiamento à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, na sigla em inglês). A UNRWA é responsável por fornecer ajuda humanitária na forma de alimentos, educação e saúde para os mais de 5,9 milhões de palestinos registrados na agência. Dessa quantidade, 1,58 milhão estão na Faixa de Gaza. 

Vale lembrar, porém, que os cortes à UNRWA não foram feitos apenas por Trump. Em janeiro de 2024, Biden congelou as doações estadunidenses a esse mesmo órgão, após uma acusação de Israel, não comprovada, de que 12 trabalhadores palestinos da agência estiveram envolvidos nos ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023. Em outubro de 2024, o Parlamento israelense aprovou duas leis: uma, qualificando a UNRWA como uma organização terrorista; e outra, proibindo-a de atuar em território israelense. 

Os cortes à UNRWA significam, para os palestinos, mais um elemento do genocídio e da limpeza étnica levados a cabo por Israel e Estados Unidos. Impedir a chegada de ajuda humanitária – alimentos, medicamentos, água, entre outros – é estrangular qualquer possibilidade de vida minimamente sustentável em uma região que esteve sob constantes bombardeios por mais de 15 meses. 

A participação dos EUA na intensificação do genocídio da Palestina

Saiba mais sobre a relação EUA-Israel neste Informe OPEU, de Ana Flávia Pires de Moraes, Débora Figueiredo Mendonça Prado, Júlia Camargo Assad de Souza e Maria Fernanda Montandon Lemos 

Embora haja inúmeras críticas à ajuda humanitária, sobretudo por seu caráter despolitizador e paliativo, é inegável sua importância para a sobrevivência de toda uma população que foi expulsa de sua terra e que está sitiada há décadas. A um só tempo, a ajuda humanitária é inadequada, mas indispensável. Encerrar o financiamento à UNRWA é reforçar o estrangulamento da população palestina refugiada em 58 campos presentes em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, na Síria e na Jordânia. 

Contradições na política externa de Trump para o Oriente Médio 

Além dos cortes na UNRWA, Trump retirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU e anunciou o encerramento dos programas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), agência responsável por promover um volume significativo de ajuda financeira ao exterior há décadas, inclusive na América Latina. Apenas Israel e Egito estariam fora das restrições impostas pelo republicano. 

Vale lembrar que, durante o governo de Barack Obama, os EUA buscaram direcionar o foco de sua política externa para a Ásia e diminuir a presença militar no Oriente Médio. Entretanto, esse projeto foi interrompido pelas revoltar árabes iniciadas em 2011 e seus desdobramentos, sobretudo, a Guerra na Síria e a ascensão do Estado Islâmico. A partir disso, os Estados Unidos voltaram a se envolver militarmente na região.  

O governo de Trump I, contudo, retomou o projeto de diminuição da presença militar estadunidense no Oriente Médio. O exemplo mais notório foi a retirada das tropas estadunidenses do Iraque, em 2020, e do Afeganistão, em 2021. Iniciado por Trump e mantido por Joe Biden, esse projeto teria como contrapartida Israel assumir o papel de interlocutor com algumas monarquias árabes. No centro dessa estratégia estão os Acordos de Abraão, que abordaremos na seção a seguir.  

Em um primeiro momento, pode parecer contraditória a postura de Trump de afirmar que os Estados Unidos ocupariam Gaza, ao mesmo tempo em que adota diversas políticas unilaterais e isolacionistas. Seria uma espécie de oposição entre America First e boots on the ground. Mas é importante identificar e compreender os possíveis interesses por trás da ideia de tornar Gaza uma “riviera no Oriente Médio”. 

Trump é bem conhecido e lembrado por suas táticas de negociação que, em resumo, iniciam-se oferecendo o absurdo para receber em troca concessões que, de outra maneira, não seriam facilmente conseguidas. No caso do genocídio em Gaza, em particular, e da Questão Palestina, em geral, pode-se levantar a hipótese de que a fala de Trump seria uma provocação para que os Estados árabes assumissem os custos de reconstruir Gaza, sem que Israel e Estados Unidos – responsáveis por sua destruição – tivessem qualquer responsabilidade diante da população palestina. 

De Gaza aos países do Golfo: interesses dos EUA nas alianças regionais 

O plano de despovoar Gaza dos palestinos e construir empreendimentos imobiliários sobre os escombros dos massacres já havia sido revelado por Jared Kushner, genro do presidente Donald Trump, em fevereiro de 2024. Kushner dissera que a “propriedade à beira-mar [de Gaza]… pode ser muito valiosa”. Em outubro de 2024, em um programa de rádio, Trump retomou essa ideia e chegou a dizer que, caso Gaza fosse reconstruída, poderia ser melhor que Mônaco.

Kushner foi responsável por apresentar um “Plano de Paz à Prosperidade”, em julho de 2019, no Bahrein. Na ocasião, foram apresentados diversos projetos aos Territórios Palestinos Ocupados (TPO), sobretudo a Cisjordânia, orçados em mais de US$ 27 bilhões. Embora não tenha sido colocado em prática, o plano revelou os tipos de ações visadas pelo governo Trump I no Oriente Médio. 

O maior destaque da política externa trumpista para a região se consolidou em setembro de 2020: a assinatura dos Acordos de Abraão. Pela primeira vez após mais de 25 anos, Estados árabes normalizaram suas relações com Israel – que até então só tinha relações diplomáticas formais com Egito, desde 1979, e com Jordânia, desde 1994, como parte do processo de paz entre palestinos e israelenses, conhecido como Acordos de Oslo.  

Mediados pelos EUA e assinados entre Israel, Emirados Árabes Unidos (EAU), Bahrein, Marrocos e Sudão, os Acordos de Abraão estiveram imbuídos de um discurso de paz entre árabes e israelenses e de estabilidade para a região. Por trás dos discursos, porém, estão interesses econômicos e geopolíticos relacionados a acesso a recursos energéticos, indústria de armas e transferência de tecnologia. Mais do que isso, as alianças entre Israel e os regimes autocráticos membros dos Acordos respondem a preocupações de contrainsurgência, sobretudo, relacionadas às dinâmicas das revoltas árabes, bem como à uma espécie de coalizão anti-Irã e anti-Eixo da Resistência. Nessa transação, a Questão Palestina foi completamente abandonada. 

Conclusion of the Annual Palestine Forum 2024

Prof. Tariq Dana (Fonte: Doha Institute)

Como explica o professor do Doha Institute, Tariq Dana, os Acordos de Abraão não resolvem os conflitos regionais, mas os aprofundam, ao imbricar em uma rede complexa de relações comerciais e de poder o Estado de Israel, os Estados Unidos e, principalmente, as monarquias do Golfo. Com isso, Israel conseguiria expandir sua esfera de influência e os Estados árabes conseguiriam acesso à indústria militar e tecnológica israelense. 

Ainda de acordo com Dana, os Estados Unidos estariam adotando uma estratégia de offshore balancing, diminuindo sua presença militar, mas aumentando sua influência econômica. Nesta dinâmica, Israel seria o entreposto confiável nas relações com alguns países árabes. Essa dinâmica também responde à atual competição de poder entre as grandes potências – EUA, Rússia e China – materializada no Oriente Médio. 

Em seu mandato, Biden manteve e tentou expandir os Acordos de Abraão para incluir um grande parceiro dos EUA: a Arábia Saudita. Em setembro de 2023, Biden estava na iminência de assinar um pacto de defesa com os sauditas e avançava as negociações para a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita. Com o 7 de outubro de 2023, porém, essas negociações ficaram paralisadas. Se antes parecia que a Arábia Saudita abandonaria de vez a Questão Palestina, as ações genocidas de Israel em Gaza levaram o país a condicionar a assinatura de um acordo com Israel à criação de um Estado palestino. 

Com Trump, a tendência é retomar as negociações com os sauditas. Também na coletiva de imprensa na Casa Branca, o presidente dos EUA comentou que, em seu primeiro mandato, conseguiu estabelecer “uma parceria tremendamente bem-sucedida que trouxe paz e estabilidade ao Médio Oriente como não se via há décadas”. Ele acrescentou que os Acordos de Abraão foram históricos e que “se tornariam cada vez mais importantes, porque alcançamos os acordos de paz mais significativos no Oriente Médio em meio século”. 

Para Rafeef Ziadah, professora na King’s College London, a normalização de relações entre Israel e nações do Golfo marginalizam e colocam em um horizonte longínquo a libertação da Palestina. Nesta equação, os interesses imperialistas dos EUA e de Israel são somados ao status quo dos regimes autoritários do Golfo e à garantia de extração de recursos às custas do sofrimento, expulsão e morte da população palestina. Em outras palavras, isso seria uma geopolítica do genocídio. 

Resistência e reconstrução: dos palestinos, para os palestinos 

É diante deste cenário que podemos tentar interpretar o que Trump quis dizer com “transformar Gaza em uma riviera no Oriente Médio”. Uma interpretação possível, como já mencionado, é colocar na conta dos países árabes a reconstrução de Gaza. Alguns analistas qualificam esse tipo de atitude como “chantagem política”. Isso teria acontecido em relação ao Egito e à Jordânia, principalmente, que teriam a ajuda militar e financeira dos EUA cortadas, caso não aceitassem fluxos de refugiados palestinos em seus territórios. 

Ambos rejeitaram a proposta de Trump. O rei da Jordânia, Abdullah II, visitou a Casa Branca na semana que passou. Em coletiva de imprensa ao lado de Trump, o monarca buscou não contradizer o anfitrião, declarando que os países árabes apresentariam seu próprio plano para Gaza quando estivesse pronto. Por sua vez, o Egito disse estar trabalhando em um plano para a reconstrução de Gaza, que garantiria a presença dos palestinos no território. 

Com o cessar-fogo ameaçado e sendo violado diversas vezes por Israel, a perspectiva é que os Estados árabes bem relacionados com os Estados Unidos não aceitem o plano absurdo de Trump. A Cúpula Árabe, sediada na Arábia Saudita, deve acontecer no próximo dia 20 de fevereiro, uma semana antes da reunião da Liga Árabe, no Cairo. O tema central de ambos os encontros será o plano de Trump para Gaza e possíveis alternativas. Apesar das boas relações com os EUA, fato é que as monarquias árabes devem lidar com um elemento central: a chamada “rua árabe”, as pressões das populações que, em geral, tendem a apoiar a libertação da Palestina.  

Enquanto os Estados Unidos tratam a Faixa de Gaza como uma propriedade privada, os palestinos veem-na como seu lar, que não pode ser substituído. Embora, para Trump, os palestinos não tenham alternativa, visto que “[Gaza] é um local de demolição” e está praticamente em ruínas, para a população palestina a terra é a centralidade de toda a questão. Se, para o republicano, a única alternativa é sair, para os palestinos, a única alternativa é permanecer na terra e lutar por ela. Essa tem sido a realidade há mais de 75 anos. 

A recusa de deixar a terra e a resistência em permanecer mesmo diante das tentativas de expulsão revelam a extraordinária força dos palestinos em lutar por seus direitos humanos e seu direito de autodeterminação nacional. Dessa maneira, Gaza é a ilustração exímia da luta contra o imperialismo e colonialismo.

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Como escreveu o poeta palestino Mahmoud Darwish, em “Silêncio por Gaza” (Diário da Tristeza Comum, Editora Tabla, 2024), originalmente publicado em 1973:  

“E Gaza não é a mais polida das cidades nem a maior. Mas ela equivale à história de uma nação, porque é a mais repulsiva entre nós aos olhos do inimigo — a mais pobre, a mais desesperada e a mais feroz. Porque é um pesadelo. Porque são laranjas minadas, crianças sem infância, velhos sem velhice e mulheres sem desejos. E, por ser tudo isso, ela é a mais bela entre nós, a mais pura, a mais rica e a mais digna de amor. […] Gaza não repetirá as mentiras. Gaza não dirá sim aos conquistadores. E continuará a explodir. Não é morte, não é suicídio, é uma maneira de anunciar que é digna da vida”.

 

 

* Isabela Agostinelli é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), pesquisadora do INCT-INEU e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: isagostinellis@gmail.com. 

** Primeira revisão de conteúdo de Bruno Huberman e Karime Cheaito. ​Revisão e edição finais: Tatiana TeixeiraRecebido em 14 fev. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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