‘O Aprendiz’: como as três regras de Roy Cohn construíram a imagem de Donald Trump
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Fonte: TV Insider
Por Thiago Oliveira* [Resenha OPEU] [O Aprendiz]
Antes da Presidência, Donald J. Trump já era uma figura bem estabelecida no mundo dos negócios e na cultura pop, fazendo aparições em comerciais, videoclipes, clássicos do cinema, como “Esqueceram de mim 2”, e da televisão, como “Sex and The City”. Em sua presença no Zeigest cultural, raramente fez participações, nas quais interpretava algum personagem.
Desde o início de sua carreira no setor imobiliário, Trump buscou construir sua marca com base em uma imagem bem estabelecida: a de um homem de negócios feroz e capaz de costurar os melhores acordos possíveis, mas, ao mesmo tempo, altamente carismático e capaz de circular nos mais diversos meios – fossem políticos ou não. Talvez a mídia que mais tenha auxiliado na consolidação dessa imagem tenha sido seu reality show, “O aprendiz”, que perdurou por 14 temporadas.
Todavia, a abordagem escolhida no filme homônimo (2024) foge de uma biografia sob encomenda, optando por explorar o “indivíduo Donald Trump” antes da Presidência, do estrelato e do sucesso imobiliário. Antes mesmo de sua estreia, o filme correu sério risco de ser engavetado, em meio a uma batalha judicial movida por um de seus produtores executivos, Dan Synder.
Sob a impressão de que o filme seria uma biografia convencional, o amigo bilionário de Trump – e doador de campanha – ficou furioso quando assistiu ao primeiro corte do filme. Felizmente, o filme teve sua estreia em 11 de outubro nos Estados Unidos, pouco menos de um mês antes da eleição.
Um início conturbado
Dirigido por Ali Abbasi, diretor iraniano com alguns sucessos em seu currículo, como “Border“ (2018) e “Aranha Sagrada” (2022), e escrito pelo jornalista norte-americano Gabriel Sherman, o filme foge de uma visão enviesada ou nostálgica dos Estados Unidos nas eras Nixon e Reagan. Traz um olhar altamente crítico do momento cultural e político do país nos anos 1970, mostrando os efeitos drásticos dessa lógica de capitalismo predatório em indivíduos e, especialmente, no arco de Donald Trump no filme.
O filme inicialmente nos apresenta um Donald Trump (Sebastian Stan), ainda vice-presidente da Trump Organization, tendo que lidar com um processo movido pelo Departamento de Justiça. A empresa era acusada de discriminar racialmente inquilinos negros, exigindo comprovação de renda quatro vezes maior do que a requisitada para pessoas brancas e, assustadoramente, marcando a letra “C” – da palavra coon, uma ofensa racial severa contra negros no país – em formulários de aplicação.
É nesse contexto conturbado que Trump acaba conhecendo Roy Cohn (Jeremy Strong), um inescrupuloso advogado com conexões políticas nos mais altos escalões: amigo pessoal de Richard Nixon, tendo sido o advogado-chefe do senador Joseph McCarthy durante sua campanha de perseguição ao comunismo no auge da “ameaça vermelha”, nos anos 1950.
Cohn já detinha uma conturbada reputação na década de 1970, com três indiciamentos, sendo conhecido por estratégias que iam desde ataques agressivos e chantagens, até acusações de uso de escutas ilegais. Apesar de estar mais inserido no círculo político e econômico conservador, Cohn era um homossexual reprimido que não se intimidava em perseguir outros homossexuais. Negou sua sexualidade até seu falecimento, escondendo a real causa de sua morte no auge da pandemia da aids.
Após conseguir um acordo com o Departamento de Justiça e livrar Trump das acusações de discriminação racial, Cohn vê o potencial de Trump e decide auxiliá-lo na expansão do que viria a ser seu “império imobiliário”.
Trump e Cohn na inauguração da Trump Tower em Manhattan, em 1983 (Fonte: Vanity Fair)
As três regras para vencer do playbook de Roy Cohn
O filme causa certo estranhamento na forma como Trump é apresentado no início da narrativa: sem os maneirismos de hoje, menos expansivo e altamente impressionável com algumas estratégias de chantagem empregadas por Cohn. Contudo, ao final da narrativa, encontramos um Donald Trump na década de 1980 muito mais próximo da versão com a qual estamos acostumados. As três regras de Roy Cohn apresentadas no início da narrativa – e utilizadas por ele ao longo de sua carreira – podem auxiliar na compreensão da personalidade singular de Trump que, mesmo entre inúmeras polêmicas, condenações e falas problemáticas, pareceu sempre “cair para cima” ao longo de sua carreira.
É a partir dessas três regras, orientadas por uma crença de “prove-me que estou errado”, que o poder de Trump viria a se consolidar nas subsequentes décadas. Cabe então explorar como tais regras, apresentadas em 1973 para o atual presidente-eleito, viriam a moldar sua carreira política.
Regra nº 1: ataque, ataque e ataque
Chocante ainda nas primárias republicanas de 2015, a voracidade com a qual Trump ataca seus oponentes já é um elemento de certa forma “normalizado” em sua figura. Não apenas o simples “ataque pelo ataque”, essa estratégia serve dois princípios ao benefício de quem a utiliza: ao mesmo tempo em que busca assassinar a imagem de adversários, marca seus nomes com adjetivos simples e fáceis de serem memorizados e reproduzidos por terceiros – como “crooked Hillary”, “sleepy Joe”, “lying Kamala” e diversos outros.
Em um contexto de constantes avanços no meio da comunicação política, o maniqueísmo e o imediatismo, altamente presentes nas redes sociais, apenas auxiliam na propulsão dessa estratégia, gerando “cortes” amplamente compartilhados e favoráveis a Trump. Com isso, busca expor que denotam a fraqueza de seus oponentes, ao mesmo tempo em que cativa seu público com apelidos humorísticos – pouco importando que sejam extremamente ofensivos e/ou mentirosos.
Por fim, isso também serve ao benefício de sua agenda política: esgarçar o limite do aceitável no debate político público. Se, em 2015, a ideia de um muro na fronteira era vista como arcaica e chocava grande parte do público, pudemos observar, mais recentemente, a própria candidata democrata à Casa Branca, Kamala Harris, antes crítica da ideia, aderir ao muro e a sua expansão.
Trump durante comício eleitoral em 2016 (Fonte: Gage Skidmore)
Regra nº 2: admita nada, negue tudo
Talvez essa seja a regra de Cohn mais utilizada pelo empresário nos momentos conturbados de sua carreira política. Estamos acostumados a observar Trump negando desde as mentiras mais simples e irrelevantes – como quando afirmou que o chefe nacional dos escoteiros havia ligado para ele, elogiando um de seus discursos mais estranhos e dizendo que teria sido “o melhor que ele já tinha feito” – até aquelas que desafiam a fábrica da realidade: que o barulho de moinhos de vento causariam câncer.
Negar a realidade ao máximo, inicialmente, parece ser uma aposta cara para qualquer carreira política. Obviamente que narrativas políticas distorcem os fatos em favor de um candidato. A razão de essa estratégia ser tão politicamente eficaz com Trump se dá pela preservação de sua imagem e pela imposição de sua força. Quando figuras políticas dão um passo para trás, elas se descomprometem com a imagem e a narrativa política construída até ali. Na era do engajamento, negar a realidade é um ato extremamente poderoso.
Regra nº 3: sempre clame vitória e nunca admita derrota
É a regra essencial que, se desrespeitada, pode derrubar sua casa de cartas. Não é possível nos recordarmos facilmente de uma única vez, em que Donald Trump tenha recuado e se desculpado por práticas e falas controversas, ou tenha reconhecido erros em algum cálculo político. Perante seu público, Trump nunca levou parte de seus negócios à falência, fez um excelente trabalho na pandemia da covid-19 – mesmo com o caos sanitário e o saldo de mais de 400 mil mortes pelo vírus no país, durante o último ano de seu governo –, nunca perdeu a eleição de 2020 e não teve qualquer ligação com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.
Mesmo facilmente checáveis e provadas falsas, essas e outras declarações tornam Trump imune frente qualquer restrição que a realidade dos fatos possa impor. Nesse aspecto, as câmaras de eco que o meio digital proporciona facilitam seus esforços. Ao mesmo tempo, leva seus apoiadores na mesma jornada, fazendo com que o senso de pertencimento ao grupo lhes dê um pouco do gosto das vitórias políticas de Trump. É uma linha tênue entre acusar seus adversários de “vitimismo” e fazer uso da mesma estratégia para clamar perseguição quando, claramente, foi derrotado. E, nesse quesito, Trump se mantém firme até hoje.
A regra que Roy Cohn parece não ter compreendido na política
É nítido que a relação com Cohn, por mais dramatizada e com claros exageros comuns em qualquer cinebiografia, impactou a trajetória profissional e política de Trump. Na cena final do filme, após o falecimento de Roy Cohn, somos colocados em uma reunião com Tony Schwartz, o ghostwriter do bestseller de Trump: A Arte da Negociação (Citadel, 2017). Após uma interação que causa estranhamento em Schwartz, Trump apresenta as três regras para vencer como se fossem de sua autoria e, mesmo com algumas falas e comportamentos estranhos, consegue cativar e prender a atenção do escritor durante a reunião.
Se Cohn inventou e colocou as regras em prática, e Trump apenas as seguiu, o que explicaria seu insucesso em construir uma imagem como a de Donald Trump? Obviamente que o fator econômico e digital serviu ao sucesso de Trump, mas isso não é garantia de vitória – basta tomarmos como exemplo a campanha bilionária, mas pouco eficaz de Harris no último ciclo. Apesar de gerar a ira em parte do campo político atual, Trump fez uso dessas estratégias durante décadas e, antes de começar a embarcar na política, era uma figura altamente popular e querida em ambientes políticos, culturais e de negócios, ao passo que Cohn era comumente chamado de “o diabo encarnado” pela mídia.
Enquanto é necessário não se importar com o que dizem ou falam de você e de suas atividades, como Roy Cohn afirmava diversas vezes, parece ter-lhe faltado um ingrediente essencial para a construção de uma imagem quase que inquebrável na política: é necessário não se importar com opiniões alheias, mas se faz necessário ser carismático no emprego das três regras.
Carisma nunca esteve em baixa no dicionário de Trump, proferindo absurdos de forma descontraída e, simultaneamente, conseguindo gerar identificação e vínculo com seu público – apresentando uma figura poderosa, mas acessível. Talvez o momento na campanha de 2024 que exemplifica essa estratégia tenha sido sua presença no podcast do comediante Theo Von. Na ocasião, Trump abordou os mais diversos temas, mas sempre de forma descontraída. O momento que marcou a entrevista foi o conturbado histórico de vício em drogas e álcool de seu falecido irmão, Fred Jr. Esse momento mostrou o poder do carisma de Trump: humanizar sua figura com seu interlocutor, mesmo em meio a diversas inúmeras polêmicas e contradições.
Tais condições permitiram que Donald Trump saísse da posição de aprendiz para a de mestre na “arte de vencer” – mesmo que, literalmente, a qualquer custo.
* Thiago Oliveira é doutorando pelo PPGRI-San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador do OPEU. Contato: thiagogodoy_oliveira@hotmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 30 nov. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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