Racismo e política migratória: do México para baixo
![](https://www.opeu.org.br/wp-content/uploads/2025/02/Primeiro-voo-com-Imigrantes-ilegais-em-processo-de-deportacao-sao-levados-a-aviao-militar-dos-EUA-para-fora-do-Pais-1024x571.jpg)
Dos 88 brasileiros enviados algemados em voo de deportação para Manaus, nenhum tinha pendências criminais (Fonte: Reprodução X/Paulo Pimenta)
Por Caio Junior Auler* [Informe OPEU] [Imigração] [Racismo] [Latinos] [Trump 2.0]
Sob ordens do recém-empossado presidente Donald Trump, a campanha de deportação em massa posta em marcha pelo Serviço de Imigração e Controle de Aduanas (ICE, na sigla em inglês) desatou o que se pode considerar uma das primeiras crises do novo governo republicano nos Estados Unidos. Em consonância com as promessas de campanha, a agressiva política migratória de Trump 2.0 tem, de fato, atacado os assim chamados imigrantes “ilegais”, criminalizados por uma retórica que em muito demonizou-os, reduzindo-os à condição de “selvagens” e “animais” – passíveis, portanto, de serem expelidos da sociedade estadunidense.
O ICE, agência responsável por temas imigratórios e de alfândega do país, tem mobilizado recursos humanos e materiais em uma verdadeira campanha de caça às bruxas, valendo-se inclusive de artimanhas como iscas e denúncias para a detenção e a posterior deportação dos imigrantes indocumentados. Em uma das operações deflagradas pelo ICE, a ex-governadora da Dakota do Sul e agora responsável pelo Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês), Kristi Noem, acompanhou as ações da agência e disse que se fazia presente para “tirar os sacos de lixo das nossas ruas”. As palavras de Noam falam por si.
(Arquivo) Kristi Noem em evento em 2020 (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)
Pânico, perseguição e um sentimento generalizado de hostilidade afetam as comunidades de imigrantes em diferentes regiões do país. Transformado no inimigo interno nº 1 da América, o imigrante médio, sobretudo o latino-americano, tornou-se o pivô de uma crise política com uma série de países ao sul do rio Bravo, em especial a Colômbia, de Gustavo Petro, e o México, de Cláudia Sheinbaum. Mas é o caso brasileiro um dos que mais elucidam o novo modus operandi dos processos de deportação do segundo mandato de Trump: transportados algemados em aviões militares sob péssimas condições, os brasileiros foram expostos a uma humilhação pública que evidencia de forma sintomática o caráter racista historicamente dispensado aos imigrantes indesejados no país.
Mesmo um mergulho breve no processo de formação histórica dos EUA é capaz de desvelar as dinâmicas raciais e de classe que preconizaram a expansão territorial do país no século XIX e, ainda hoje, incorporam a política externa imperialista do país, mormente, em relação à América Latina. Ao considerar que a atuação histórica dos EUA na América Latina ocorre em diálogo com a tradição de missão civilizatória que estruturou a formação nacional do país, temos que, na ponta, o latino foi e é tratado como a antítese daquilo que se considera a representação ideal do estadunidense médio – que seria branco, civilizado e afeito ao “progresso”.
Racismo, um denominador comum na história dos EUA
Na contracorrente da interpretação da historiografia tradicional, Gerald Horne defende uma tese incisiva acerca das contradições de raça e classe na assim chamada Revolução Americana de 1776. Em The Counter-Revolution of 1776: Slave Resistance and the Origins of the United States of America (NYU Press, 2014), o historiador estadunidense trata da ruptura das Treze Colônias com a Grã-Bretanha como uma contrarrevolução com o objetivo de manter a escravidão vigente naquele território, abordando o racismo como um dos elementos fundacionais do que viria a se tornar os EUA. Trata-se de um bom ponto de partida para pensar as vivências marginalizadas das populações não-brancas no país, as quais, forçosamente – no caso dos africanos escravizados – ou por decisão própria, emigraram aos montes desde o século XIX.
Uma vez independente, já no século XIX, os EUA passariam agora a investir na expansão para o Oeste, buscando a tomada de novas terras às expensas do genocídio e do confinamento das populações indígenas, nativas do continente. A expansão do país se deu sob o guarda-chuva ideológico e religioso do Destino Manifesto, uma espécie de doutrina baseada na crença de que os EUA tinham uma missão divina de levar a “civilização” e o “progresso” para outros territórios e povos. Naquele período, em termos de política externa, a Doutrina Monroe foi uma das primeiras políticas a cristalizar a ideia de conservação do continente americano como um espaço de atuação exclusiva dos EUA, que dispunha de cada vez mais meios materiais em virtude da expansão econômica derivada da conjugação dos modelos econômicos agrário-escravista do Sul com o industrial do Norte.
Pensar a atuação dos EUA do México para baixo implica uma delimitação precisa, em termos de fronteiras, no tempo e no espaço. A atual divisão fronteiriça entre EUA e México fora estabelecida apenas em 1848, mediante o Tratado de Guadalupe Hidalgo, mas não sem antes os EUA terem tomado cerca de 40% do território mexicano por ocasião da Guerra Mexicano-Americana (1846-1848). Três anos antes disso, em 1845, também o Texas seria incorporado ao território estadunidense. Da anexação dos territórios mexicanos no século XIX à exploração, no México, da mão de obra barata nas maquiladoras hoje, observamos quase 200 anos de um tratamento digno de cidadãos de quinta classe dispensado aos mexicanos.
A anexação do Texas e de outros territórios a oeste constituiu um dos vetores para a eclosão da Guerra Civil (1861-1865) no país, um evento significativo quando considerado à luz das dinâmicas de segregação racial. O que estava em disputa era o modelo econômico a ser adotado nos novos territórios: se com mão de obra escrava ou não. Antes, durante e por um longo período depois da Guerra Civil, a população negra permaneceu sem direito à cidadania, visto que, com a morte de Abraham Lincoln, quem assumiu a Presidência foi o então vice-presidente e representante dos estados do Sul, Andrew Johnson, que em 1866 vetou a Lei dos Direitos Civis, dando início à era da segregação formal nos EUA.
É preciso destacar, contudo, que a própria administração Lincoln discutiu ativamente planos para a “‘deportação”’ em massa da população negra, que estaria livre uma vez que a guerra fosse vencida pelo Norte. A ideia eugenista de aquisição de territórios externos para fins de alforria chegou a cogitar o Brasil como uma possibilidade, quando o ministro plenipotenciário dos EUA no país durante a década de 1860, James Watson Webb, sugeriu a instituição de uma colônia na Amazônia brasileira para o envio de negros libertos no contexto da guerra estadunidense. Embora seja autoevidente o caráter racista de tal proposição, que nunca chegou a ser oficialmente apresentada ao governo brasileiro, chama também muita atenção, nesse caso, o lugar da Amazônia no ideário dos tomadores de decisão dos EUA. Webb desejava um lugar “selvagem” para um povo “selvagem”, muito em função de sua noção eugenista de que “as raças não podem viver juntas em estado de liberdade”.
Segregação, violência e dilemas da imigração contemporânea
O Norte ganhou a guerra, mas o Sul ganhou a paz. É com essa máxima que a historiadora estadunidense Jill Lepore, em seu livro Estas verdades: A história de formação dos Estados Unidos (W. W. Norton & Company, 2020), descreve o período após o fim da Guerra Civil, em referência ao estado de Apartheid que se estabeleceu nos EUA a partir das Leis Jim Crow. Na prática, o período de segregação racial vedou a cidadania à população negra e, institucionalmente, transformou-a em uma massa de cidadãos de segunda classe. Não menos dramática foi a questão indígena naquele contexto, cujo processo de subjugação observou seu auge em 1887, com a aprovação da Lei Dawes. Esta legislação expropriou as terras nativas, dando início a um período de assimilação forçada, discriminação e exclusão social.
A questão da imigração chinesa também é sintomática do processo de expansão dos EUA e de suas dinâmicas de segregação racial. Os imigrantes chineses foram aos milhares à Costa Oeste para trabalhar no garimpo, a partir da descoberta de ouro na Califórnia e, mesmo com direitos limitados e em meio à crescente sinofobia, estiveram envolvidos na fundação de uma série de cidades no Noroeste do país. Atualmente, o contexto de disputa estratégica com a China e a recente pandemia da covid-19 tem revelado, em alguma medida, a continuidade do preconceito racial para com os chineses por parte de alguns setores estadunidenses, cujas origens podem ser traçadas até a Lei de Exclusão de Chineses, de 1882, que impedia esses imigrantes de entrarem no país.
Saiba mais sobre a Lei de Exclusão neste Informe OPEU, de Rúbia Marcussi
Outra consequência da Guerra Civil, que impactou diretamente o relacionamento dos EUA com a América Latina, foi a consolidação da indústria armamentista em larga escala no país, propiciando as bases materiais para uma política externa mais intervencionista. Em Turning the Tide: US Intervention in Central America and the Struggle for Peace (South End Press, 1985), Noam Chomsky destaca que nenhuma região do mundo fora tão sujeita à influência dos EUA por tão longo período como a América Central e o Caribe. Fica claro o elemento da superioridade racial quando esses são locais, aos quais Theodore Roosevelt pronunciadamente acreditava ser necessário levar a “civilização”. Foi neste espírito que William H. Taft, sucessor de Roosevelt, ao empregar a diplomacia do dólar para a América Latina também como uma cruzada civilizatória, asseverou que não estaria muito distante o dia em que “todo o hemisfério será nosso [dos EUA] de fato, pois, em virtude da nossa superioridade racial, já é nosso moralmente”.
Alguns anos mais tarde, a partir do aumento dos fluxos migratórios, fora aprovada a Lei de Imigração de 1924, conhecida como Johnson-Reed Act e que, abertamente racista, foi uma das pedras angulares no que diz respeito à interseção entre política migratória e racismo. Tendo estabelecido um sistema de quotas, a lei limitou severamente a imigração oriunda de países não europeus, incluindo os latino-americanos, baseando-se em políticas de uma suposta preservação racial e garantia da homogeneidade – branca – no país. Após a Lei de Imigração de 1924 e suas respectivas atualizações legislativas, diversos governos realizaram campanhas de deportação em massa no país, processo que agora mais uma vez ocupa o centro da agenda migratória de Washington.
Não é irrelevante, portanto, o histórico de discriminação racial dispensado aos imigrantes nos EUA. Na atual quadra histórica, a retórica de criminalização direcionada às comunidades latinas no país tem como causa e efeito a militarização das fronteiras, e a própria problemática da “guerra às drogas” é um exemplo significativo de como os EUA exportaram para o restante da América Latina o tratamento que dispensa internamente às suas populações marginalizadas não-brancas, sobretudo, a negra – frequentemente associada ao tráfico e ao consumo de drogas.
Considerando-se o modus operandi, com o qual os EUA tratam a população negra e a população pobre em geral, em especial em termos de políticas de segurança pública, com encarceramento em massa e guerra às drogas, é perfeitamente possível traçar um paralelo entre a dinâmica interna do país e as práticas que são por ele estimuladas do México para baixo, na ampla maioria dos países latino-americanos. Há, certamente, um recorte racial na conversão das dinâmicas de opressão domésticas em práticas de política externa, que se faz presente desde as mais variadas formas de racismo institucional nos EUA, e na violência policial característica destes processos, que agora incorpora também as práticas policialescas de deportação.
* Caio Junior Auler é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do grupo de pesquisa O poder das ideias e a manutenção hegemônica através do consenso: Estados Unidos e América Latina. Contato: caiojr99@gmail.com.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 7 fev. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook
e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.