Internacional

Inovações tecnológicas e Inteligência Artificial na Guerra da Ucrânia 

(Arquivo) Fuzileiros Navais no comando ciberespacial do Corpo de Fuzileiros Navais de Lasswell Hall, em Fort Meade, Maryland, em 5 fev. 2020 (Crédito: 2o Sgt Jacob Osborne, CFN dos EUA)

Além de drones e IA, Tinder e outros apps têm sido usados em zona de guerra 

Por Gabriela Avila e Júlia Salgueiro* [Informe OPEU] [Ucrânia] [Inteligência Artificial]

O dia 24 de fevereiro de 2022 foi um marco sangrento para a história do Leste Europeu, pois marcou o começo de uma guerra entre Ucrânia e Rússia, que perdura até os dias de hoje. As motivações para tal conflito são diversas. Porém, vale citar que a Rússia justifica a invasão ao território ucraniano por razões como a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), significando uma ampliação da influência dos Estados Unidos, seu antagonista histórico, na região. 

Os EUA têm desempenhado um papel fundamental no conflito até o momento, fornecendo apoio militar, político e econômico à Ucrânia. Estima-se que o poderio bélico oferecido pelos estadunidenses inclui sistemas de defesa aérea, mísseis antitanque Javelin, sistemas de foguetes HIMARS, munições, drones, tanques Abrams e caças F-16, além de bilhões de dólares. Há relatos de que a Ucrânia também tem-se beneficiado, especialmente, do auxílio e do compartilhamento de dados de Inteligência e vigilância dos EUA. 

A manchete de uma notícia recente da CNN chama a atenção: “Rússia pede que moradores da fronteira com a Ucrânia abandonem apps de namoro”. A reportagem informa que o Kremlin tomou a decisão de alertar os russos que residem nas regiões de Kursk, Bryansk e Belgorod para que limitassem o uso das redes sociais e abandonassem aplicativos de namoro. Isso porque, segundo o Ministério do Interior da Rússia, as forças ucranianas utilizam esses serviços digitais para a coleta de informações, principalmente de áreas sensíveis a ataques. As autoridades também alertaram que câmeras de segurança desprotegidas estavam sendo hackeadas de modo remoto pela Ucrânia, concedendo acesso ilegal para visualizarem desde propriedades privadas a autoestradas de importância estratégica. 

A era da Internet na guerra  

Além de ser o mais popular entre os usuários de aplicativos de relacionamento, o Tinder é desenvolvido pela InterActiveCorp (IAC), empresa estadunidense com mais de 50 marcas em 40 países. Sediada em Nova York, seu presidente e executivo sênior é Barry Diller, nascido na Califórnia e ex-chefe da Paramount Pictures, Fox Broadcasting e EUA Broadcasting. Desse modo, é nítido que os Estados Unidos estão intimamente envolvidos com a questão de compartilhamento de informações eletrônicas. 

Tinder | Guia de privacidade e segurança | Mozilla FoundationDiante do avanço das tecnologias digitais, o uso de redes sociais e aplicativos em zonas de guerra não é novidade. O Tinder, por exemplo, tem sido usado para fins de espionagem, sendo uma ferramenta importante de coleta de dados. A empresa que desenvolve o aplicativo mostra a influência dos EUA no mundo digital, refletindo o papel crescente das grandes corporações de tecnologia nos conflitos globais.  

Outro aspecto marcante da era digital nas guerras é o uso de drones e de Inteligência Artificial. Ambos os lados do conflito na Ucrânia vêm utilizando essas tecnologias para realizar ataques e obter vantagem estratégica. De acordo com a BBC News Brasil, drones estão moldando uma “nova era da guerra”, na qual ataques são realizados de forma remota e mais precisa. 

O emprego de drones não é uma novidade dos últimos anos, mas o conflito na Ucrânia mostrou como eles podem ser determinantes no campo de batalha. Tanto a Rússia quanto a Ucrânia têm utilizado drones não apenas para ataques, mas também para vigilância e reconhecimento de terreno. A Ucrânia, por exemplo, adaptou drones comerciais para lançar explosivos contra alvos russos, o que demonstra a flexibilidade dessas aeronaves. A introdução da IA nessas operações é o que realmente está mudando a dinâmica dos conflitos, pois auxilia o processamento de grandes quantidades de dados em tempo real.  

A aplicação crescente dessas tecnologias tem alterado significativamente a rotina dos soldados nos campos de batalha. Quando pensamos em guerras tradicionais do século XX, logo vem à tona a forma tradicional, em que os soldados dependiam de vigilância direta e de relatórios de Inteligência para a tomada de decisões, tanto na linha de ataque quanto na defesa militar. Atualmente, porém, os soldados enfrentam um cenário no qual ataques podem ocorrer de forma remota e precisa, de modo que a rápida análise de dados realizada por esses instrumentos faz a nova rotina dos soldados se voltar para a verificação de informações e para uma coordenação mais concisa com sistemas autônomos. 

Conexão 5G  

A invasão russa à Ucrânia levantou a questão da liderança chinesa em tecnologia e a preocupação dos Estados Unidos em serem deixados para trás na indústria digital. O 5G é um recurso tecnológico que funciona em frequências mais altas do espectro de rádio, o que permite que mais dispositivos se conectem simultaneamente à rede. Além disso, apresenta uma velocidade impressionante na transmissão de informações em tempo real, podendo ser utilizado em combinação com o controle de um drone a distância, por exemplo, ou até mesmo localizar um aparelho celular rastreado pela Inteligência de algum dos Estados envolvidos no conflito.

José Niemeyer, que é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), acredita que o “mundo não será mais o mesmo com relação a pactos de segurança”, após o redesenho que será causado pela guerra na Ucrânia. Niemeyer afirma que o país pode ser um laboratório para tratativas de pactos de segurança e que o mundo pode passar por uma “Guerra Fria 5G” – dessa vez, com Estados Unidos e Ucrânia em um polo, e Rússia e China, em outro. No contexto global atual, porém, é nítido que a China apresenta grandes chances de superar os Estados Unidos como a maior economia do mundo, e a sua velha rival, a Rússia, mesmo decadente em comparação à extinta União Soviética, apresenta-se assertiva e autônoma no campo militar. 

Impactos éticos 

Apesar das vantagens, o uso de recursos como Inteligência Artificial, dados privados e drones em conflitos levanta questões éticas. A capacidade de uma IA decidir automaticamente sobre o ataque a um alvo específico traz riscos. Contudo, é fundamental destacar que a IA não é autônoma em suas decisões. Embora possa processar informações de forma mais agilizada, ainda assim humanos são necessários, pois ela opera dentro dos parâmetros estabelecidos por programadores e militares. A IA depende inteiramente, portanto, dos algoritmos criados por especialistas, que definem suas funções e limitam seu escopo de atuação. Além disso, mesmo nos sistemas avançados de machine learning, sua capacidade de aprendizado está condicionada aos dados, com os quais foi treinada, e às diretrizes inseridas por seus programadores. Dessa forma, toda e qualquer decisão tomada por uma IA reflete as intenções, valores e limitações humanas embutidas no código de programação que a rege.  

Milhares de pessoas estão presas em combates intensos em Al Fasher no Sudão, diz Comitê Internacional da Cruz Vermelha | Agência de Notícias dos EmiradosEm uma reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, a Cruz Vermelha Internacional alertou sobre os perigos dessa tecnologia, destacando que “decidir alvos em conflito é difícil para a IA”, pois a tecnologia ainda tem limitações para distinguir entre civis e soldados. Isso aumenta o risco de mortes de civis, especialmente em lugares densamente povoados. Outro ponto é que o uso de drones autônomos, de certa forma, diminui a responsabilidade humana por erros cometidos em ataques. Quando uma máquina toma a decisão de disparar contra um alvo, quem deve ser responsabilizado por danos colaterais? Os desenvolvedores do software, os militares que operam os drones ou os comandantes que autorizam as missões? 

Portanto, tal indefinição sobre a responsabilização revela um problema ainda maior sobre a construção de uma narrativa que transfere a culpa para a tecnologia, como se as máquinas fossem autônomas em suas decisões. No entanto, a IA apenas segue comandos programados pelos seres humanos, o que torna fundamental questionar quem realmente deve responder por seus impactos. 

A responsabilização pelo uso da Inteligência Artificial em conflitos bélicos é frequentemente obscurecida por discursos que atribuem a decisão às máquinas, quando, na verdade, elas apenas executam comandos programados por humanos, tal narrativa acaba criando uma “zona cinzenta” que exime Estados e indivíduos das consequências de suas decisões. Isso enfraquece mecanismos de controle internacional e permite que a tecnologia sirva como escudo para evitar acusações diretas de crimes de guerra.  

Esse fenômeno é particularmente preocupante em conflitos assimétricos, onde atores não estatais também podem se aproveitar dessa falta de clareza para justificar ações questionáveis. Diante disso, a responsabilidade por atos cometidos com o uso de sistemas autônomos deve recair sobre aqueles que os projetam, programam, autorizam seu desempenho em combate. Se um drone lançar um ataque equivocado, cabe investigar quem programou seus parâmetros.  

Como argumentado até aqui, máquinas não têm consciência ou julgamento próprio. Elas apenas refletem as intenções e decisões humanas que estão programadas em seus sistemas. Ignorar tais fatores acaba comprometendo a transparência dos conflitos e abre precedentes perigosos para o uso indiscriminado da Inteligência Artificial.  

Mudança do cenário global  

O uso dessas novas tecnologias também está mudando o cenário global, colocando a comunidade internacional diante de um novo desafio: como regular o uso dessas tecnologias em conformidade com as leis internacionais? Especialistas em Direito Internacional têm-se preocupado com a aplicação das Convenções de Genebra em cenários de guerra com alta tecnologia. As convenções foram escritas antes do surgimento dessas tecnologias e precisam ser adaptadas para garantir que os direitos humanos sejam respeitados em conflitos, nos quais elas sejam empregadas.  

Um exemplo das preocupações geradas por esse novo contexto foi destacado por especialistas das Nações Unidas em relação ao uso de IA em ataques israelenses na Faixa de Gaza. A ONU mencionou o aumento do risco para a população civil quando drones são usados em zonas densamente habitadas, e a urgência de novas normas internacionais para regulamentar o uso dessas tecnologias. 

A redução da participação humana direta no campo de batalha promete diminuir o número de baixas entre os soldados. No entanto, o uso crescente de máquinas para tomar decisões de vida ou morte pode criar uma era de desumanização dos conflitos. Isso abre margem para uma possível nova corrida armamentista. O acesso a essas tecnologias pode redefinir as dinâmicas de poder globais, pois países com maior capacidade de inovação tecnologia terão uma vantagem significativa no campo militar.  

Portanto, o uso de inovações tecnológicas na Guerra da Ucrânia reflete uma nova fase nos conflitos armados, demonstrando a urgência de sua regulamentação em conflitos. A medida é fundamental para garantir que as tragédias humanitárias sejam minimizadas e que as leis de combate sejam adaptadas para enfrentar os desafios do século XXI.  

O futuro das batalhas tecnológicas depende de como a sociedade global vai lidar com esses avanços e de como os tratados internacionais serão ajustados para acompanhar o ritmo dessas inovações, principalmente em relação à proteção de civis. Em uma sociedade, na qual estar inserido no meio digital é uma questão de dignidade da pessoa humana, até onde o direito fundamental à privacidade e à proteção de dados pessoais está sendo devidamente cumprido e respeitado pelos Estados? 

 

* Gabriela Avila é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: gabigabiavila0815@gmail.com. 

Júlia Salgueiro é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: juliasalgueiro.n@gmail.com. 

** Revisão de conteúdo realizada por Tito Lívio Barcellos Pereira (doutorando no PPGRI San Tiago Dantas) e Isabela Agostinelli (pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU/CNPq). Revisão de texto: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em: 3 nov. 2o24. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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