Política Doméstica

Trump nos ombros de Edmund Burke: o discurso antiglobalista

(Arquivo) Donald Trump discursa na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) de 2014 em National Harbor, Maryland, em 6 mar. 2014 (Crédito: Gage Skidmore/Wikimedia Commons/Flickr)

Por Lucas Barbosa* [Informe OPEU] [CPAC] [Globalismo] 

Desde 1974, acontece anualmente nos Estados Unidos a Conservative Political Action Conference (CPAC). Tradicionalmente, o evento atrai milhares de pessoas associadas ao movimento conservador estadunidense, mais especificamente os membros mais radicais do Partido Republicano. A participação de figuras do conservadorismo estrangeiro, porém, tem-se tornado frequente. Em fevereiro de 2024, quando ocorreu a primeira edição a organizar uma cúpula internacional, estiveram presentes em Washington, D.C., representantes das conferências realizadas na Austrália, na Hungria e no Japão; o deputado federal brasileiro Eduardo Bolsonaro (PL-SP); o presidente de El Salvador, Nayib Bukele (2019-); o presidente da Argentina, Javier Milei (2024-); e o ex-presidente e então candidato republicano à eleição presidencial dos Estados Unidos Donald Trump (2017-2021).  

A despeito da presença significativa de delegados estrangeiros e de que a CPAC tenha sediado eventos em diversos países nos últimos anos, o tema da conferência em 2024 foi “Aonde o globalismo vai para morrer”. Um pronunciamento da própria CPAC a respeito pode explicar a contradição: 

A primeira Cúpula Internacional da CPAC uniu muitos desses representantes em conversas para rejeitar o globalismo e proteger as identidades, necessidades e governos democráticos únicos de cada nação contra Estados tirânico-administrativos de esquerda. 

“Globalismo”, portanto, não tem o mesmo sentido de “globalização”. Ainda que descrito de forma vaga e em tom conspiracionista, aquele seria uma espécie de ameaça encabeçada por supostos Estados autoritários de esquerda. O perigo residiria na imposição de uma agenda política internacional homogeneizante que coloca em xeque características nacionais inerentes às diversas democracias do mundo. O discurso de Trump na 73ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2018, está alinhado com essa definição: 

… os Estados Unidos sempre escolherão a independência e a cooperação em vez da governança, controle e dominação globais. Eu honro o direito de cada nação nesta assembleia de buscar seus próprios costumes, crenças e tradições. […] Os Estados Unidos são governados pelos americanos. Nós rejeitamos a ideologia do globalismo e apoiamos a doutrina do patriotismo. 

Voltemos ao comunicado da CPAC do ano passado: “A esquerda quer destruir a soberania nacional e aniquilar a vontade popular sob entidades burocráticas e não eleitas como a Organização Mundial da Saúde”. Apesar de identificar a esquerda como a entidade que conduz o avanço desse processo (uma esquerda que, na visão da CPAC, aglutina Joe Biden, Lula da Silva, Vladimir Putin e Xi Jinping), o texto também denuncia o “conluio de empresários abastados com burocratas e agentes ideológicos para impor mais tirania”. Se o globalismo tem seu significado usado de forma propositadamente imprecisa, os atores associados a ele parecem igualmente vagos. 

Globalismo: tentativa de definição  

Em sintonia com o que foi exposto até aqui, tentemos sintetizar o conceito de globalismo de acordo com os conservadores contemporâneos. No artigo “’Globalismo’”: o discurso em política internacional sob a ideologia da nova extrema direita brasileira”, Laura Pena indica que, dentre seus significados possíveis, o termo poderia remeter a uma espécie de “sistema político de influência mundial”. Em sentido oposto à globalização econômica liberal, acentuada a partir dos anos 1990, o globalismo seria negativo, constituindo um processo autoritário-burocrático internacional que busca a “harmonização e, consequentemente, apagamento de diversidades existentes em diferentes países”. 

Os detratores do suposto globalismo seriam as figuras de extrema direita que se multiplicaram nos últimos anos e que, usualmente, opõem-se a políticas progressistas —como o reconhecimento de modelos familiares não tradicionais e a educação sexual em escolas —, tidas como corrosivas para a identidade política, cultural e religiosa do Ocidente. O discurso do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán (2010-), como convidado de honra na CPAC de 2022, exemplifica isso: 

Nós vimos que tipo de futuro a elite globalista tem para oferecer, mas nós temos um futuro diferente em mente. Os globalistas podem todos ir para o inferno. […] Nós devemos tomar de volta as instituições em Washington e Bruxelas. […] Se separarmos a civilização ocidental de sua herança judaico-cristã, as piores coisas na história acontecem. 

Em visita à Heritage Foundation, um dos principais think tanks conservadores estadunidenses, o então ministro das Relações Exteriores do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), Ernesto Araújo, declarou que, para derrotar o globalismo, a administração do ex-presidente estava empenhada em estabelecer “um amálgama liberal-conservador baseado na nação, na família e vínculos tradicionais”.

Contact Heritage | The Heritage FoundationPrédio da Heritage, em Washington, D.C. (Fonte: site institucional)

Ainda segundo Pena, a principal razão do uso desse termo por parte da extrema direita atual é sua maleabilidade. Firmando-se sobre as bases do conspiracionismo, o combate retórico ao globalismo serve, na verdade, para criar um inimigo externo, colocando a extrema direita como a defensora legítima, o “justiceiro combatente” do que se afirma ser o legado ocidental. 

Autor do artigo “Nacional-populismo e antiglobalismo: teorias da conspiração e o reacionário internacional”, Joseph McAuley compara essa estratégia a uma versão mais elástica do “judeu internacional”, figura antissemita disseminada principalmente pelo nazismo. Hoje, o globalista seria uma máscara para as insuficiências estruturais do capitalismo. Os problemas atribuídos a ele são múltiplos e, por isso, sua derrota representaria a purificação da nação e seu retorno a um estado de harmonia. Ao mesmo tempo, essa “nova embalagem” não se despiu do antissemitismo e de outras formas de intolerância, como o racismo e a xenofobia. 

Apesar da contemporaneidade do termo, portanto, a ideia por trás do antiglobalismo não é particularmente inovadora. Uma vez que divergem sobre inúmeros assuntos para audiências diversas e por autores igualmente despreocupados com a precisão discursiva, em linhas gerais, as falas que confirmam a existência e a ameaça de forças globalistas dizem respeito a uma espécie de programa de dominação global da esquerda que teria, entre seus objetivos, a erradicação de diferenças culturais entre os povos. 

Edmund Burke, a origem do conservadorismo e a negação do universalismo 

Postulados pela filosofia iluminista, os direitos individuais inalienáveis seriam a marca predominante no processo de construção da noção moderna de universalismo. No caso específico do inglês John Locke (1632-1704), o universalismo foi articulado como o direito constitucional de todos os indivíduos. Assim como Thomas Hobbes e outros contemporâneos seus, Locke buscava delimitar leis gerais, semelhantes àquelas da natureza, que fossem aplicáveis a toda a humanidade. 

Para Locke, existe uma lei natural, expressão da vontade divina, que antecede a criação do Estado e a vontade humana, um estágio da vida em comunidade identificado por ele como estado de natureza. Por meio da razão, uma vez reconhecida a lei natural, os seres humanos plenamente livres e iguais identificam o direito natural, isto é, o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Esse reconhecimento constitui não apenas o exercício do próprio direito, mas também o respeito ao direito de todos aqueles no estado de natureza. O universalismo, afinal, é a extensão desses direitos a toda a humanidade. Todos têm direito à vida, todos são livres e todos possuem bens. Todos estão sob a tutela do direito natural e, sempre que possível e em nome do bem maior, todos devem agir de maneira a defendê-lo. 

O indivíduo, segundo aquilo que é postulado por Locke, é o começo e o fim do Estado. Tal disposição não é acidental: serviu às aspirações revolucionárias da burguesia no processo de destituição do feudalismo. O liberalismo foi a fundação ideológica sobre a qual se sustentaram as mudanças políticas na Europa dos séculos XVII e XVIII. O discurso universal do direito natural – todos são livres, iguais e possuidores de bens – era diametralmente oposto à lógica absolutista, cuja visão de sociedade envolvia necessariamente a concentração do prestígio, do poder e da riqueza nas mãos da monarquia. 

Nesse contexto, a qualidade revolucionária dos direitos naturais atinge seu ápice com a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O documento foi promulgado em 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária. Com a destituição da monarquia absolutista, o texto jacobino é uma espécie de “receita” para o estabelecimento de uma nova ordem e indica as bases fundamentais da recém-instaurada sociedade burguesa no país e, gradativamente, na Europa.  

Livros encontrados sobre As Classes Populares E Os Direitos Humanos |  Estante VirtualNo livro As classes populares e os direitos humanos (Editora Vozes, 1984), Ivo Lesbaupin argumenta que, embora tenha sucedido a outras declarações semelhantes (como a Declaração da Virgínia, dos Estados Unidos, de 1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é inédita por duas razões: além de ser a primeira a fundamentar uma Constituição, o que lhe garante predominância jurídica, seu conteúdo leva o universalismo a um grau até então sem precedentes. Agora com um novo nome, os direitos do homem revisitam o pensamento e a linguagem de Locke (adjetivando direitos e liberdades como “naturais”, “inalienáveis”, “imprescritíveis”…), mas também são carregados de uma abstração específica, o que permitia uma aplicação crescente de suas normas na vida prática. 

É justamente a abstração dos direitos do homem que sustentará os argumentos do irlandês Edmund Burke (1729-1797) em sua crítica ao universalismo e, por extensão, à Revolução Francesa. O parlamentar britânico escreveu, em 1870, o panfleto Reflexões sobre a revolução na França, uma síntese do seu posicionamento sobre o desenrolar dos acontecimentos no país. Burke e seu pensamento serão a base daquilo a que já nos referenciamos como conservadorismo, uma filosofia que, em linhas gerais, opõe-se aos avanços sociais e políticos inaugurados pela modernidade. 

Em Reflexões, Burke afirma que 

aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades compostas de diferentes classes de cidadãos é necessário que algumas delas se sobreponham às outras. Os niveladores, portanto, apenas mudam e pervertem a ordem natural das coisas; sobrecarregando o edifício social ao colocar no ar o que a solidez do edifício exige [que] seja posto no chão. 

Denota-se que, para o autor, a desigualdade, além de ser uma característica inata da sociedade, deve ser encarada como um elemento positivo e necessário para a manutenção do “edifício”. A centralidade da desigualdade é o ponto de partida para sua visão sobre os direitos do homem; se o corpo social depende dela para seu pleno funcionamento, a universalidade dos direitos como proposto pela Revolução Francesa constituía um perigo. Como um todo, o processo revolucionário comandado pelos jacobinos era visto por Burke como algo destrutivo. Se os revolucionários franceses apelam à insuperabilidade da natureza para sua ascensão política, Burke faz o mesmo para defender o status quo da monarquia britânica: insere a desigualdade na “ordem natural das coisas”. 

Reflexões Sobre a Revolução na França | Amazon.com.br

Nesse sentido, Burke não nega que existam os “verdadeiros” direitos do homem. Segundo ele, todos os indivíduos teriam direitos iguais, mas não às mesmas coisas. A justificativa surge por uma metáfora econômica: investidores recebem uma renda proporcional ao valor subscrito. Da mesma maneira, no mundo político, não são todos os indivíduos que estão aptos para dirigir o Estado. A negação é defendida por Burke ao dizer que, diferentemente dos iluministas, ele se ocupa “do homem social e de nenhum outro. Trata-se de algo a ser regulamentado pela convenção”. O homem repleto de direitos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é, para Burke, inexistente, um mero exercício filosófico incompatível com o mundo concreto. Para o conservadorismo, o universalismo é problemático porque estabelece normas metafísicas sem se preocupar com a viabilidade prática de executá-las: “De que adianta discutir o direito abstrato do homem à alimentação ou aos medicamentos? A questão coloca-se em encontrar o método pelo qual se deve fornecê-la ou ministrá-los”. 

Em substituição à abstração liberal, Burke propõe que a experiência histórica é a única ferramenta verdadeiramente capaz de moldar o funcionamento do Estado. A política, ou, como ele chama, “a ciência de construir, renovar ou reformar o bem-estar da nação”, não pode ser apreendida antes de sua execução. A única fonte de condução legitima da política, para Burke, é a experiência – não a experiência do que seriam, segundo sua compreensão da Revolução Francesa, rompantes de irracionalidade, mas aquela advinda de longos períodos. 

A possibilidade do espírito revolucionário dos jacobinos se alastrar pela Europa, o que era muitas vezes bem-visto por parte da população inglesa, acendia a preocupação de Burke com a tradição. O autor de Reflexões salienta que a desigualdade não é apenas interna ao Estado. Seu temor não reside isoladamente na integridade da herança ideológica britânica, mas também no fato de que homens de nações diferentes são, pela essência de suas trajetórias históricas, distintos. A “ignorância” do universalismo em face de qualquer categoria com a qual se possa distinguir o ser humano é aterradora para Burke. Alarmado que seus adversários intelectuais possam simpatizar com a chegada dos ideais franceses em seu país, ele replica: 

Confundir todas as ordens, classes e distinções, de modo a transformar, através da anarquia universal aliada à falência nacional, três ou quatro mil democracias em oitenta e três, e organizá-las todas em uma única por meio de um poder de abstração desconhecido? 

A vida política que temos hoje, segundo Burke, é a melhor que se poderia alcançar, porque foi aquela que sobreviveu ao teste do tempo e, por isso, modificações nessa estrutura devem ser feitas de maneira cuidadosa e gradual. Para ele, a sociedade que se tem no presente é um frágil produto de um longo e tortuoso refino histórico. Tendo de ser manipulado com cuidado, o fato de que liberais radicais se propunham a remodelar o Estado em nome de teorias metafísicas inéditas o deixava espantado. As demandas burguesas soavam para ele como ataques à tradição, que entendia ser a única prova real de eficiência e virtude na organização social. 

As formulações burkeanas são, claramente, nas palavras de Jamerson Souza, “síntese dos interesses contrarrevolucionários de uma aristocracia golpeada”, determinando que a política válida é aquela feita “pelo alto”, isto é, pelas elites dominantes constituídas historicamente, sem a interferência de setores alternativos e fora de qualquer modelo democrático. Isso não significa dizer, contudo, que sua crítica ao universalismo do liberalismo clássico deva ser inteiramente descartada. Como vimos na seção anterior, os direitos naturais, embora aspirando à generalização na linguagem, foram um instrumento político de um grupo particular: a burguesia em ascensão. Não se atentando às particularidades sociais de um determinado conjunto social, o direito abstrato, quando aplicado à materialidade, acabou preconizando aqueles que já se encontravam integrados à ordem liberal – excluindo, no contexto europeu, os homens não proprietários e as mulheres. 

O universalismo se limitou à igualdade perante a lei. Esse é um dos diagnósticos principais de A questão judaica, ensaio escrito por Karl Marx mais de 50 anos depois das Reflexões de Burke. Marx compreende que a emancipação política liberal instaura uma espécie de “vida dupla”: os indivíduos são formalmente iguais perante o Estado, mas a desigualdade na sociedade civil concreta permanece intacta. 

… nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. 

Sobre a Questão Judaica: Inclui as Cartas de Marx a Ruge Publicadas nos  Anais Franco-alemães | Amazon.com.brO filósofo alemão, contudo, toma um rumo teórico completamente diferente do que o de Burke, que defende a contenção da revolução liberal e a manutenção da sociedade monárquica. Segundo Bruno Elias, Marx não rejeita completamente os direitos humanos, reconhecendo seu avanço emancipatório em comparação às condições feudais, mas também está ciente de suas limitações na sociedade capitalista, sendo preciso ir além. No momento de escrita do ensaio, Marx ainda não adota a agenda comunista, mas dá indícios do seu futuro amadurecimento ideológico: o texto indica que a emancipação humana plena se daria na cisão do indivíduo abstrato da lei, cujas liberdades no ambiente público só são verdadeiramente acessadas pelos burgueses, e do indivíduo social. 

Uma possível ponte entre o antiuniversalismo e o antiglobalismo 

Apesar de sua atualidade, as semelhanças entre a ideia antiglobalista dos conservadores de hoje e as formulações de Edmund Burke são inevitáveis. Como seus sucessores, o pai fundador do conservadorismo estava profundamente ligado à preservação da tradição e temia que a ideologia emancipatória dos jacobinos (a “esquerda estrangeira” de seu tempo) fosse responsável pela desestabilização da harmonia social, das fundações políticas e culturais europeias e das distinções entre pessoas. 

Burke alegava que o percurso histórico traçado pela sociedade humana (isto é, a sociedade humana ocidental) havia permitido um aprimoramento da organização política e, por isso, ela deveria ser protegida da influência externa e potencialmente destrutiva da equivocada Revolução Francesa. As Reflexões, porém, assim como a cruzada conservadora contra os globalistas no presente, são espantalhos argumentativos que escondem a verdadeira intenção de seus autores: a manutenção de uma sociedade desigual na qual eles detêm privilégios. 

Se a bandeira do liberalismo clássico era a racionalidade, pela qual seriam acessados e compreendidos os direitos naturais universais, Burke é afeto à irracionalidade, como analisa Souza. Essa desvalorização da ciência, da lógica e da razão resultará, nos conservadores contemporâneos, na supervalorização dos sentimentos e dos impulsos. Da mesma forma, os antiglobalistas fundam suas observações em argumentos vazios e informações distorcidas: seja sobre campanhas de vacinação, políticas migratórias, programas de distribuição de renda, dentre outros tópicos polêmicos. Não à toa, o preconceito é um elemento significativo do conservadorismo, no qual se inserem, citando novamente Souza, 

… perseguições políticas, ideológicas, xenofóbicas e religiosas […] subsidiadas pelo discurso do “interesse nacional” e em defesa da “limpeza” e do “expurgo” desses elementos “nocivos” à sociedade. Indivíduos ou grupos dissidentes ou discordantes tendem a ser qualificados como “traidores” da “nação”. 

Como expôs Aidan Beatty para a revista Jacobin, vale notar que, inúmeras vezes ao longo das Reflexões, Burke se refere, direta e indiretamente, aos jacobinos e seus simpatizantes como “judeus”, associando-os à usura e ao desrespeito à autoridade dos proprietários. Da mesma forma, Burke também compara a revolução à barbárie na figura dos nativos americanos e dos africanos escravizados. 

Os capitalistas de hoje – e as lideranças, partidos e movimentos à direita do espectro ideológico – devem sua posição no Estado moderno ao liberalismo clássico que Burke tanto atacou. Mesmo assim, isso não impediu que a consumação do liberalismo como filosofia política dominante levasse ao conservadorismo de pelo menos parte de seus setores. Ao longo do século XIX, o conservadorismo deixa de ser um pensamento fundamentalmente antiburguês e passa a ser instrumentalizado pela própria burguesia como maneira de enfrentar qualquer manifestação de progressismo moderno que possa contestá-la. 

Observamos que, tanto em sua origem quanto em seu momento contemporâneo, o conservadorismo se vê atravessado por um medo oriundo do ambiente internacional. Se na época de Burke ele existia de fato – concentrado no perigo que a Revolução Francesa e os ideais liberais de universalismo representavam para a aristocracia europeia –, ele se manifesta no presente com as denúncias da extrema direita sobre um suposto movimento globalista: uma ameaça conspiratória amorfa que se adequa às necessidades discursivas dos conservadores. O globalismo não existe realmente, mas a caracterização de Burke do avanço revolucionário liberal, um fenômeno concreto, ainda é emulada pela extrema direita, mesmo que, intencionalmente ou não, afirme teorias controversas. 

Se essa filosofia hoje se confunde com os elementos mais extremados do liberalismo, seria contraditório atacar flagrantemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, produto dos direitos naturais de Locke e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa. Isso também não significa dizer que a extrema direita não tenha um relacionamento no mínimo conflituoso com os direitos humanos, como aqui evidenciado pelo desprezo aos parâmetros políticos, sociais e culturais alheios ao modelo branco, cristão e europeu das elites econômicas. Contudo, o desentendimento recorrente de Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e seus seguidores com o direito internacional têm, crescentemente, se disfarçado sob o manto do confuso antiglobalismo.

 

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Informe O internacionalismo de Malcolm X, 22 fev. 2024 

 

* Lucas Barbosa é mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGCP-UNIRIO) e graduado em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ). Contato: lucasmbar@gmail.com. 

 

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