Política Doméstica

Posse presidencial: um ritual de sacralização do ordinário marcado por opulência e poder 

Foto da transmissão da cerimônia ao vivo pela CNN, em 20 jan. 2025 (Crédito: Tatiana Teixeira)

Por Tatiana Teixeira* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [Posse presidencial] 

Este ano, pela primeira vez desde 1985, época de Ronald Reagan, a posse do novo (mas nem tanto) presidente dos Estados Unidos aconteceu na Rotunda do Capitólio, um espaço de estilo neoclássico dos séculos XVIII e XIX, inspirado no Panteão. Diferentemente do que se fosse realizada ao ar livre, na frente oeste do prédio do Congresso, a menor capacidade de lotação deu ao evento ares ainda mais exclusivos 

Under the United States Capitol Rotunda | Last winter we spe… | Flickr(Arquivo) Rotunda do Capitólio, em 26 jan. 203 (Crédito: Tom B./Flickr)

Os símbolos e os elementos ritualísticos estavam todos lá, ornando a pompa e a circunstância de uma cerimônia longa e autocongratulatória, sempre cuidadosamente organizada para expor e corroborar a narrativa histórica e mitológica de grandeza da nação e de excepcionalidade do bem-sucedido experimento republicano. Transmitindo o evento ao vivo e durante horas, a mídia faz sua parte na manutenção dessa narrativa fundacional e nacional. E, em relação ao presidente Donald Trump em específico, o que se observou nos comentários de jornalistas e analistas de diferentes veículos e tendências políticas foi a naturalização e a assimilação completa desta figura outrora considerada um tanto histriônica, anedótica, fanfarrona e totalmente despreparada para o cargo.  

Guardas de uniforme cerimonial, coristas impecáveis, convidados ostentando status e capital social, político e econômico em trajes e acessórios cuidadosamente escolhidos, e milhares de policiais e militares (cerca de 25.000 ao todo) espalhados por Washington, D.C., para proteger autoridades e familiares em suas limusines e SVUs e monitorar os acessos de vias públicas e as entradas dos prédios incluídos na programação de posse. Uma Capital One Arena lotada, com telões, eufóricos devotos do MAGA e de Trump e muitas bandeiras americanas. Sermões e orações compondo a liturgia de uma laicidade à la EUA, palmas e salvas, “O, America”, “America the Beautiful” e “The Star-Spangled Banner” cantados para unir e aquecer corações e mentes em um dia de temperaturas tão baixas que teria forçado a reacomodação logística da solenidade e de seus protocolos. 

O frio poupou Donald Trump da possibilidade de multitudinárias manifestações, como aconteceu em 2017, mas não sufocou o ímpeto de seus opositores. Em D.C. e em outras cidades do país, como Nova York e Chicago, milhares foram às ruas protestar contra o republicano, sua agenda, o Project 2025 e o que mais ele representa. Isso é desejável e necessário, afinal, uma democracia deve comportar consenso e dissenso e preservar o espaço do contraditório. Digna de nota é a inocorrência de invasões ou tumultos, por parte desse novo grupo de insatisfeitos, em lugar algum do país. 

Defesa da democracia 

Ausente há quatro anos, a tradição prevaleceu desta vez, graças a Joe Biden e a sua preocupação com seu legado e com o julgamento da História. Nesse sentido, tivemos um dia de “transição pacífica do poder”, em que se buscou reafirmar a democracia estadunidense e seu papel como farol do mundo. Ao mesmo tempo, lembrou-se de sua perene situação de estágio probatório, fragilidade e condicionalidade. Foi o que advertiu, a seu modo, a senadora Amy Klobuchar (D-MN), presidente do Comitê Conjunto do Congresso sobre Cerimônias Inaugurais (JCCIC, na sigla em inglês) e responsável pela abertura dos trabalhos da 60ª posse presidencial nos Estados Unidos. Ao enaltecer essa “democracia duradoura”, ela deixou alguns lembretes para seu desafeto político, inclusive defendendo o Capitólio, ou a “Casa do Povo”, invadido por simpatizantes de Trump no tenebroso 6 de Janeiro. 

Discurso de Amy Klobuchar na posse (Fonte: CBS News/YouTube)

A posse, afirmou a senadora, “é o momento em que os líderes elevados pela vontade do povo prometem ser fiéis à nossa Constituição, valorizando-a e defendendo-a” e em que os líderes se tornam “guardiães do nosso país”. A data da solenidade, no feriado pelo Dia de Martin Luther King, também traz a lembrança de que “devemos nos esforçar para defender os valores consagrados em nossa Constituição – as liberdades e, como está inscrito na entrada da Suprema Corte dos Estados Unidos, justiça igual perante a lei”. Por último, Amy Klobuchar destacou “o sistema de freios e contrapesos que é a base do nosso governo. Três Poderes iguais do governo. É assim que, por quase 250 anos, nosso grande experimento americano, fundamentado no Estado de Direito, tem resistido”. 

O custo do encantamento e do poder 

Os números cada vez mais astronômicos da cerimônia mostram que a magia tem seu preço e que o mercado e a América corporativa abraçaram Trump completamente. Parte dos eventos da programação de posse é paga com doações privadas e venda de ingressos, enquanto os impostos dos contribuintes respondem pela segurança e manutenção. Não há limites para as doações ao comitê responsável pela organização da solenidade, mas cidadãos estrangeiros são proibidos de fazê-las.  

A posse para o segundo mandato de Trump foi a mais cara da História, arrecadando em torno de US$ 200 milhões. O recorde anterior, de US$ 107 milhões em 2017, era do próprio. Entre as comemorações, estão bailes e jantares com o vice-presidente J.D. Vance e com Trump. Este ano, apesar dos valores, em pouco tempo alguns eventos não tinham mais lugares disponíveis.  

Com contribuições de mais de US$ 1 milhão cada, líderes das grandes empresas de tecnologia do país – como Elon Musk (Tesla, X e SpaceX), Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Tim Cook (Apple) e Sam Altman (OpenAI) – ficaram na área reservada à família Trump e aos prováveis membros do novo gabinete, durante a cerimônia no Capitólio. Não é novidade, mas cabe lembrar. Quem paga mais tem as melhores mesas e cadeiras, mais privilégios e mais acesso direto ao poder, pavimentando um caminho mais macio e menos acidentado para futuro lobby – e ele virá.

 

Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU

Informe “Criador das ‘13 Keys’, Nostradamus das eleições nos EUA prevê vitória de Kamala Harris”, 7 set. 2024

Informe “Impacto da saída de RFK Jr. é pequeno, mas pode ser chave em eleição apertada”, 30 ago. 2024

Informe “Think tanks, lobbies e política nos EUA”, 6 jun. 2024

Informe “Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste à mudança dos tempos e da sociedade”, 28 de maio de 2024

Informe “Lula e Biden: uma relação com ganhos e (novos) limites para Brasil e EUA”, 11 fev. 2023

Informe “A carta de Biden”, 21 mar. 2021

Informe “O legado do senador republicano Mitch McConnell”, 30 out. 2020

Informe “Think tanks e política nas eleições de 2020 nos EUA”, 15 dez. 2019

Informe “A bilionária e feroz propaganda eleitoral nos EUA”, 17 nov. 2019

Informe “Think tanks americanos e a desigualdade de gênero”, 29 out. 2019

 

Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: professoratatianateixeira@outlook.com.

** Primeira revisão: Lucas Amorim. Contato: amorimlucas@usp.br. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailprofessoratatianateixeira@outlook.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

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