Trump e trumpismo: uma nova direita nos Estados Unidos?
Crédito: Instagram Joe Biden
Por Camila Vidal* [Informe OPEU] [Trumpismo] [Política Doméstica] [Nova Direita] [Trump 2.0] [Project 2025]
O Projeto 2025, que incorpora a transição da Presidência de Joe Biden para o recém-eleito Donald Trump, trata, já no seu preâmbulo, de uma “promessa conservadora”. Nele, atenta que a “América e o movimento conservador passam por uma era de divisão e de perigo, assim como na década de 1970” (tradução própria). Boa parte da campanha eleitoral de Trump se voltou, justamente, para esse movimento conservador, ainda que com diferenças importantes em relação ao movimento mais antigo e tradicional de direita no país.
O movimento conservador “tradicional” nos Estados Unidos tem suas raízes no contexto do Pós-Segunda Guerra Mundial, em que, no plano doméstico, as políticas do New Deal rooseveltiano reinavam soberanas e, no internacional, a União Soviética passava a ser percebida como uma ameaça. Por óbvio, a agenda não é mais a mesma, tampouco as estratégias e os mecanismos de atuação, o que nos faz pensar que esse “conservadorismo trumpista” é relativamente singular na história recente dos Estados Unidos.
Nesse sentido, buscamos aqui fazer uma reflexão acerca dos encontros e desencontros do movimento conservador da segunda metade do século XX com o movimento conservador trumpista nos Estados Unidos atual, evidenciando suas possíveis similaridades e diferenças.
PRIMEIRA PARTE: O movimento conservador nos EUA em uma perspectiva histórica
O movimento conservador estadunidense da década de 1950 ascende como uma rejeição ao comunismo e a União Soviética (URSS) por um lado; e à Presidência, políticas de bem-estar social e grupos de base do governo Franklin Delano Roosevelt, por outro. Esse movimento nasce com três frentes: uma primeira intelectual; uma segunda que vai atuar diretamente na sociedade civil; e, por fim, uma terceira frente que visa a uma determinada condução de política externa.
1) Frente intelectual
Nesta primeira frente, podemos situar a obra de quatro autores que vão servir de alicerce inicial: Richard Weaver, Robert Nisbet, Russell Kirk e William Buckley Jr. Em apenas cinco anos (entre 1948 e 1953), eles publicaram livros que retratavam o descontentamento com o rumo doméstico que os Estados Unidos tomavam e, em específico, com a ideia de “modernidade” e de progresso científico. Com duas guerras mundiais, armas químicas e nucleares, a entrada das mulheres no mercado de trabalho e as políticas do New Deal representavam, para esses autores, que os valores “tradicionais”, seguros e “morais” estavam sendo abandonados, enquanto o Estado e a ciência tomavam o lugar da fé e da “moralidade”. Assim, tinham uma aversão, no plano político, ao socialismo; no plano econômico, ao keynesianismo e às políticas de bem-estar social; e, no plano social, à primazia da ciência e da modernidade que supostamente rompia com a fé, com a moralidade e com a família tradicional.
No caso de Weaver, sua obra Ideias tem consequências (É Realizações, 2016) critica a “cultura da ciência” e o “homem racional” que estaria preocupado com os seus direitos, mas não com os seus deveres; estaria ainda preocupado com ele próprio, mas não com todo; e, por fim, com o material imediato, mas não com o espiritual de longo prazo. Para o autor, esse homem racional seria um “egoísta materialista cético”. Nesse sentido, defende uma ordem social hierárquica baseada no “conhecimento” e na “virtude”. A obra de Buckley God and Man at Yale (Skyhorse Publishing, 2021) versa sobre a universidade por ele frequentada (que dá título ao livro) e que, naquele período, promovia uma maior abertura e liberdade acadêmica para os seus professores. Para o autor, ao fazer isso, Yale estava priorizando a ciência em detrimento da moralidade e da fé, portanto estava enfraquecendo propositadamente a fé cristã dos seus alunos, ao mesmo tempo em que promovia a “coletivização econômica”. A crítica, bom lembrar, não se restringia a Yale, mas à sociedade em geral – cada vez mais secular, igualitária e “moderna”.
Já a obra The Conservative Mind (Regnery, 2001), de Russel Kirk, elenca alguns princípios conservadores. Dentre eles, a) a ideia de que o divino rege a sociedade, b) a convicção de que uma sociedade civilizada requer ordem e classes e que a única igualdade é a igualdade moral; e c) o entendimento de que propriedade e liberdade estão sempre conectadas. De fato, Kirk critica o estado de bem-estar social e o “coletivismo” a partir da religião. Nesse sentido, entende que as pessoas, criadas por Deus, são desiguais em todos os aspectos. Portanto, romper com essa desigualdade feria princípios religiosos. Por fim, a obra Quest for Community (Regnery, 2010), do sociólogo Robert Nisbet, defende um retorno às comunidades e grupos comunais. Por ser social, o indivíduo precisa satisfazer sua necessidade de pertencimento de alguma forma. Até o advento da sociedade moderna, ele satisfazia-as nas escalas locais de associação: família, igreja e vizinhança, por exemplo. Mas, com a “modernidade” e a expansão do estado de bem-estar social, essas instituições teriam perdido espaço para a autoridade no Estado que, com tantos “súditos servis”, tornar-se-ia totalitário. Por trás desse véu virtuoso, entretanto, a preocupação está com a perda dos seus espaços privilegiados, como homens brancos ocidentais de uma classe social elevada.
2) Frente ativista/social
A frente ativista, ou social, desempenhou um papel importante para capturar “corações e mentes” na sociedade estadunidense. A atuação se organizava, sobretudo, em associações locais no âmbito da igreja e, no âmbito trabalhista, nas empresas empregatícias.
No início da década de 1950, o pastor James Fifield e o empresário Howard Pew lançam a Spiritual Mobilization como uma tentativa de frear a ascensão de pastores “liberais” em igrejas evangélicas a partir do “ensino” sobre os “perigos” do estado de bem-estar social – que atrelavam ao comunismo “ateu”. Com recursos financeiros de grandes empresários, cópias de livros de economistas da Escola Austríaca eram enviadas para os pastores junto com doações para suas igrejas. O objetivo da Spiritual Mobilization, assim como de outras organizações com esse perfil, não era necessariamente o de adentrar no aspecto religioso, ou de “salvar almas” efetivamente; mas uma tentativa de revitalizar o capitalismo, a partir da legitimidade da igreja e de princípios religiosos. Ou seja, era uma tentativa de justificar o capitalismo que penalizava, punia e violentava a maior parte da população, a partir da religião. Outros empresários e pastores seguiriam esse mesmo caminho, a exemplo de Jerry Falwell (foto abaixo), na década de 1970, com a criação da Moral Majority, entre outros.
(Arquivo) Reunião do então presidente Ronald Reagan com Jerry Falwell no Salão Oval, na Casa Branca, em Washington, D.C., em 15 mar. 1983 (Fonte: National Archives)
Além da frente religiosa, várias empresas participaram desse movimento conservador que buscava fazer frente a políticas de bem-estar social. O motivo era óbvio: com o aumento e o fortalecimento dos sindicatos, maiores direitos trabalhistas, diminuição do desemprego e aumento do salário médio, os empresários lucravam cada vez menos. Nesse sentido, algumas empresas inovaram. Ao perceberem seus empregados como importante público-eleitor, passaram a oferecer um programa de ensino para “reeducação política”. Esse foi o caso da General Electric (GE) em 1950 – na época, a terceira maior empresa empregatícia dos EUA, com quase 200 mil funcionários. Sob a coordenação de Lemuel Boulware, a empresa passou a separar parte do horário de trabalho para salas de aula improvisadas, onde um coordenador da empresa exercia o papel de professor. Distribuía para seus operários obras de economistas da Escola Austríaca, artigos publicados por membros da Sociedade Mont Pélerin e uma espécie de jornal da empresa que traduzia aspectos mais técnicos de Economia em uma linguagem mais acessível. Como o rosto desse programa, a GE contratou em 1954 um conhecido ator de cinema: Ronald Reagan. Reagan percorria as fábricas da empresa, dando palestras para os funcionários acerca dos benefícios do livre-mercado e do capitalismo e os perigos do comunismo. Foi a partir das constantes palestras em chão de fábrica, que o ator de cinema passou para a política, sendo eleito como representante desse mesmo movimento conservador que ele ajudou a orquestrar.
Por fim, a frente ativista e empresarial se funde com a acadêmica no âmbito dos think tanks. Algumas dessas instituições – como o American Enterprise Institute, formado por empresários; a Young Americans for Freedom, criada em 1960 a partir de encontros de jovens estudantes na casa de William Buckley; e a Heritage Foundation, fundada para fazer lobby no Congresso e para a proposição de políticas públicas – se organizam em prol da divulgação de manifestos e de agendas políticas específicas. Nesse sentido, uma terceira frente mais aliada aos neoconservadores toma forma e vai atuar diretamente na condução da política.
3) Frente política a partir dos neoconservadores
Atrelada a esses think tanks, a frente política se funde também com a acadêmica. Os primeiros neoconservadores (Irving Kristol, Daniel Bell, Nathan Glazer, Seymour Lipset, Norman Podhoretz e Daniel Moynihan) eram estudantes e se consideravam trotskistas até a década de 1950. Colocavam-se como “socialistas não comunistas”. Por serem trotskistas, tinham uma profunda aversão pela condução da URSS stalinista – motivo pelo qual passaram a defender políticas anticomunistas. Esse grupo foi responsável pela criação de uma série de revistas acadêmicas e de think tanks, assim como pela atuação direta na política. O movimento cresceu e passou a integrar uma segunda geração que já se percebia dentro do movimento conservador e dentro do Partido Republicano. Na política, conduziam uma agenda que defendia um maior confronto com a URSS e, por conta disso, maior valorização das forças armadas estadunidenses. Passaram a ocupar posições políticas estratégicas nas administrações republicanas, sobretudo, a partir da eleição de Reagan e de George W. Bush – a exemplo de Richard Perle, Jeane Kirkpatrick, Elliott Abrams, Paul Wolfowitz, Richard Allen, Robert Kagan (foto abaixo) e William Kristol.
(Arquivo) Robert Kagan, na Brookings Institution, em Washington, D.C., em 12 mar. 2018 (Crédito: Paul Morigi/Flickr)
Podemos entender que esse movimento conservador atrelado à segunda metade do século XX fora organizado em diversas frentes (como acadêmica, social, trabalhista e política) com temáticas específicas, mas da perspectiva de um inimigo muito claro: a ameaça comunista no âmbito global e, nos Estados Unidos, o estado de bem-estar social. Nesse sentido, podemos sintetizar que o movimento conservador durante a segunda metade do século XX se pautava pela a) retomada de valores tradicionais “morais” e religiosos; b) defesa do capitalismo em contraposição ao comunismo; e c) valorização das forças armadas e de política intervencionista no exterior. Para isso, utilizavam-se de técnicas educativas e acadêmicas – seja pelo envio de livros, pela criação de think tanks ou pelo estabelecimento de programas educacionais tanto nas empresas quanto nas igrejas. Nesse sentido, apresentava um caráter que pode ser considerado elitista e acadêmico e organizado para adentrar nos canais institucionais tradicionais da política estadunidense.
SEGUNDA PARTE: Trump e trumpismo
A partir de 2009 e, em específico em 2016, com a eleição de Donald Trump pelo Partido Republicano, a percepção de um movimento trumpista de direita (ou de extrema direita) ganha força. Representando o movimento, o então candidato à Presidência não fazia parte do quadro da política tradicional. Considerado outsider, averso a questões religiosas, o empresário era figura conhecida de reality show e, como eleitor, chegou a ser registrado no Partido Democrata. Alçou candidatura como independente, mas galvanizou apoio popular para ocupar o cargo de presidente dos EUA pelo Partido Republicano em 2016, 2020 e 2024. Nesse sentido, vejamos alguns fatores importantes para se levar em consideração e entender a vitória do Trump e do trumpismo:
a) O contexto em que disputa a eleição de 2016 contra o governo Obama representava uma crescente polarização social e política;
b) O surgimento de movimentos supostamente populares no âmbito conservador (e, por vezes reacionários) que tomam as ruas, que demandam mudanças e que se organizam localmente. A maior expressão desses movimentos é o Tea Party, a partir de 2009;
c) O uso de Big Data durante as campanhas que, mesmo com menos recurso que o Partido Democrata, galvanizou apoio eleitoral ao focar em determinados setores eleitorais. Assim, direcionou esforços e recursos para setores específicos da população;
e d) O voto de protesto que foi capturado por Trump. Nesse sentido, ganha voto de uma parcela da população que está insatisfeita com a política tradicional – considerada corrupta, elitizada e longe da realidade de grande parte da população.
Trump fez um movimento distinto dos candidatos tradicionais na política estadunidense. Seu discurso tratava dos anseios de parte importante da população dos EUA atrelado, sobretudo, à classe trabalhadora e pobre; e de uma maneira que chamava a atenção. O uso dos escândalos, dos palavrões e das teorias da conspiração dava publicidade e servia de chamariz para sua candidatura, mobilizavando o clima de insatisfação dessa parcela da população com a política. De fato, a mensagem era uma que dialogava fortemente com a classe trabalhadora e pobre que não se sentia representada nem pelos democratas nem pelos republicanos, tampouco pelo movimento conservador tradicional.
Um exemplo é o Cinturão da Ferrugem (Rust Belt) – local que compreende os Grandes Lagos e que foi o berço da manufatura pesada nos EUA. Base industrial e motivo de orgulho dos estadunidenses que viveram o “Sonho Americano” durante boa parte da segunda metade do século passado, seus eleitores tradicionalmente votavam nos democratas. Com a saída das indústrias que ali operavam para a Ásia e mesmo para o México e, portanto, com o aumento do desemprego, da decadência econômica e da criminalidade, essa parcela da população, tradicionalmente operariada, sem educação superior e que se viu desempregada, passa a votar no Partido Republicano por conta da candidatura de Donald Trump. Na eleição de 2024, à exceção de Illinois, todos os outros estados do Rust Belt escolheram Trump.
(Arquivo) Rust Belt: um registro de Ohio, em 25 de maio de 2020 (Crédito: tmac_ohio/Flickr)
A figura de Trump traz uma espécie de atualização conservadora, não à toa chamada de trumpismo. Tratando diretamente com essa parcela da população que está ressentida e desesperançosa em relação à política e aos partidos políticos tradicionais, Trump se coloca como algo distinto que rompe com uma estrutura considerada elitizada e oferece o retorno do Sonho Americano – o Make America Great Again. Nesse sentido, seu discurso busca a retomada dos empregos nacionais, a volta das empresas e indústrias estadunidenses e mesmo o fim de acordos multilaterais. Por um lado, temos um discurso baseado na valorização da indústria nacional com empregos locais, portanto um certo protecionismo; ao mesmo tempo que um certo isolacionismo no exterior. O foco passa a ser mais material e menos abstrato e mais centrado no doméstico e menos no exterior. Ele fala diretamente com os anseios dessa classe social. Trump é, assim, o grande responsável por retirar do Partido Democrata a base trabalhadora operariada.
Trump e o trumpismo representam profundas diferenças em comparação com o movimento conservador tradicional nos EUA. No âmbito da agenda política, ainda que mantenha a busca pela retomada de valores “morais”, há menos apelo à religião. Diferentemente do movimento conservador que ascendia na década de 1950, o discurso não se pauta pela defesa do capitalismo, ou do livre-mercado, em oposição ao comunismo. A ênfase agora passa a ser a retomada de investimentos para o retorno de empresas e indústrias nacionais em um estado relativamente protecionista. Tampouco se mantém a defesa do complexo industrial-militar, a partir da contenção de ameaças externas. Pelo contrário, a política externa trumpista é bastante seletiva no seu engajamento internacional.
Assim como a agenda, as técnicas usadas também diferem do movimento conservador tradicional. Faz-se uso agora de ferramentas informacionais (ainda que não seja passível de comparação, visto que não havia esse recurso na época) que se dirigem a determinados setores sociais específicos; e de um discurso simplista com bordões, falas curtas e teorias da conspiração. Pouco se assemelha e se relaciona com um discurso acadêmico ou elitizado. Por fim, atua não a partir dos canais institucionais, como foi o caso do movimento conservador do século XX. O trumpismo se assenta na ideia de ruptura com a política e com os canais institucionais, entendendo-os como corruptos e elitizados.
Dito isso, fica claro que são importantes as diferenças entre o movimento conservador do século XX e o trumpismo do século XXI. E, se vamos tratar Trump e seu movimento como conservador, é preciso, primeiramente, qualificar melhor o termo. Ao fim, Trump ocupa um vácuo deixado pela falta de uma esquerda politicamente competitiva nos EUA e nos faz refletir acerca dos nossos desafios no Brasil.
* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 23 dez. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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