Securitização das relações econômicas entre EUA e China é tema de livro de pesquisadora do OPEU
(Arquivo) O então presidente Donald Trump e o vice-primeiro-ministro chinês, Liu He, assinam o Acordo Comercial de Fase Um entre os EUA e a China, em 15 jan. 2020, no Salão Leste da Casa Branca (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead/Wikipedia)
Por Matheus de Oliveira Pereira* [Resenha OPEU] [EUA-China] [China]
Nos últimos anos, o caráter crescentemente antagônico das relações entre Estados Unidos e China tem-se consolidado como um aspecto um dos aspectos-chave da Política Internacional Contemporânea. Dadas as dimensões dos atores envolvidos e a centralidade de ambos em diferentes áreas, a rivalidade sino-estadunidense produz ramificações profundas que excedem, em muito, o escopo bilateral. O caso do comércio internacional é particularmente ilustrativo deste quadro. As tensões acumuladas durante anos, e que resultaram na guerra comercial travada durante o primeiro mandato de Donald Trump (2017-2021), tiveram impactos significativos do ponto de vista dos fluxos de trocas, assim como sobre o sistema multilateral de comércio que permanece seriamente fragilizado até hoje. Não surpreende, portanto, que esse cenário tenha estimulado um debate amplo e vigoroso, ao qual Yasmim Reis e Erica Resende se somam com o livro O Processo de Securitização das Relações Econômicas entre EUA e China na Administração Trump (2017–2021): Reflexões sobre a Competição com a China na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos (Editora Appris, 2024).
A obra traz a pesquisa de Yasmin (foto ao lado) desenvolvida no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), sob orientação da profª Erica.
No livro, Reis e Erica analisam a disputa econômica entre Estados Unidos e China sob a ótica da Teoria da Securitização. Desenvolvida por Ole Wæver e Barry Buzan, da Escola de Copenhague, essa teoria ampliou os estudos de segurança internacional ao transcender o foco em Estados e ameaças militares. Surgida nos anos 1990, em um contexto de intensos debates teóricos animados pela crise do paradigma realista, a teoria explora como temas pertencentes a domínios distintos do estratégico-militar são transformados em questões de segurança. De forte inspiração construtivista, a teoria argumenta que a segurança é construída discursivamente, permitindo que atores legitimem medidas excepcionais ao designar algo como ameaça existencial.
Ao longo de cinco capítulos, o livro examina como, durante o governo Trump, foi construída uma narrativa que posicionou a China como uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.
O estudo inicia com uma análise histórica das relações bilaterais sino-americanas desde 1949, destacando marcos emblemáticos como a aproximação promovida por Nixon e Kissinger, parte de uma estratégia para isolar a União Soviética, a “Era de Ouro” dos anos 1980 e os esforços para engajar a China nas instituições de governança da ordem liberal, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse engajamento se baseava na expectativa de que o aprofundamento das relações econômicas e a integração às instituições globais “socializariam” a China, gerando pressões que, eventualmente, conduziriam à mudança de regime no país. Em seguida, o livro explora a deterioração do consenso sobre Pequim nos Estados Unidos, que criou as condições para um endurecimento na postura de Washington, culminando nas transformações implementadas pela administração Trump.
Os capítulos seguintes se dedicam à apresentação dos fundamentos teóricos e metodológicos do trabalho, bem como da análise empírica. A Teoria da Securitização é revisada com destaque para seus conceitos principais e as críticas mais recorrentes. Do ponto de vista metodológico, o texto adota a análise do discurso, conforme proposta por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, com o objetivo de identificar os significantes flutuantes presentes nos discursos de Trump que contribuíram para construir a China como uma ameaça existencial à segurança dos Estados Unidos.
Empiricamente, a análise se concentra no exame de documentos oficiais, como a Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) de 2017, e a Abordagem Estratégica dos Estados Unidos para a República Popular da China (United States Strategic Approach to the People’s Republic of China, de 2020, além de discursos e postagens de Trump em seu perfil na rede social Twitter (agora X). Esses materiais permitem explorar como a narrativa securitizadora da China foi disseminada em diferentes âmbitos, influenciando tanto a formulação de políticas públicas quanto a percepção do país pela opinião pública nos Estados Unidos.
À luz desse material, as autoras argumentam que essa narrativa securitizadora consolidou um novo paradigma nas relações sino-americanas, rompendo com a política de engajamento e coexistência que prevaleceu desde o governo do democrata Bill Clinton (1993-2001). A redefinição da China como uma ameaça estratégica se materializou não apenas nos discursos, mas também em documentos oficiais, especialmente na Estratégia de Segurança Nacional, configurando uma mudança estrutural nas dinâmicas entre os dois países.
A NSS de 2017 representou uma mudança significativa na política de segurança dos Estados Unidos em relação à China. O documento descreveu o país asiático como um “competidor estratégico” e um “Estado revisionista”, desafiando a ordem internacional estabelecida. Essa visão marcou o abandono da política tradicional de engajamento, substituída por uma narrativa de confrontação que posicionou a China como uma ameaça não apenas à segurança nacional, mas também à economia e à supremacia tecnológica norte-americanas. Nesse contexto, a economia foi elevada ao status de elemento central da segurança nacional, justificando medidas como a imposição de tarifas, restrições comerciais e controles rigorosos sobre tecnologias sensíveis. Além disso, a China foi acusada de práticas predatórias, como o roubo de propriedade intelectual e o uso estratégico de instituições internacionais para expandir sua influência global.
Publicado em 2020, o United States Strategic Approach to the People’s Republic of China aprofundou essa retórica, ampliando a caracterização da China como uma ameaça multifacetada e detalhando estratégias para conter seu crescimento. O documento reforçou a ideia de que a China busca remodelar a ordem internacional para atender a seus interesses autoritários. Entre as iniciativas sugeridas, destacaram-se medidas como restrições econômicas, sanções comerciais e controles sobre tecnologias estratégicas, incluindo 5G e Inteligência Artificial, além de esforços coordenados para limitar a influência chinesa em organismos internacionais. O texto também vinculou a China à desinformação e à falta de transparência durante a pandemia da covid-19, intensificando a percepção de ameaça.
Esses documentos exemplificam como o governo Trump transformou as relações econômicas e comerciais com a China em uma questão de segurança nacional. Na leitura de Reis e Resende, a linguagem foi utilizada estrategicamente para justificar ações práticas e moldar a percepção pública e institucional da China como um risco existencial para os interesses norte-americanos, fortalecendo a retórica de competição estratégica e ameaça global.
Em suma, a obra de Yasmim Reis e Erica Resende oferece uma contribuição relevante e instigante ao debate sobre a crescente rivalidade entre Estados Unidos e China, ao abordar de forma analítica e criteriosa as conexões entre economia política e segurança. A partir da aplicação rigorosa da Teoria da Securitização, as autoras ampliam a compreensão de como as dinâmicas econômicas foram transformadas em questões de segurança nacional no contexto da administração Trump. Essa abordagem se revela não apenas pertinente, mas também necessária, dado o impacto sistêmico dessa rivalidade sobre a política internacional contemporânea.
Além disso, o livro é especialmente valioso para leitores interessados em explorar as complexas relações sino-americanas e seus desdobramentos globais, oferecendo uma análise fundamentada de um tema que continua a moldar o sistema internacional. Com a iminente posse de Donald Trump, a obra adquire ainda maior relevância, ao iluminar as bases discursivas e estratégicas que sustentaram a política externa dos Estados Unidos nesse período.
O processo de securitização das Relações Econômicas entre EUA e China na Administração Trump (2017–2021): Reflexões sobre a Competição com a China na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos
Autoras: Yasmin Reis e Érica Resende
Editora: Appris
Ano de lançamento: 2024
Preço: R$ 52 (150 páginas)
* Matheus de Oliveira Pereira é doutor em Relações Internacionais (PPGRI San Tiago Dantas) e Pesquisador de Pós-Doutorado do INCT-INEU. E-mail: matheus.o.pereira@unesp.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 7 jan. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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