Economia e Finanças

EUA bloqueia aquisição da U.S. Steel pela Nippon: ‘investment screening’ e protecionismo econômico

(Arquivo) U.S. Steel, em Granite City, Illinois, em 17 fev. 2023 (Crédito: Notley Hawkins/Flickr) 

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Por Edna Aparecida da Silva* [Panorama EUA] [Economia]

U. S. Steel (@USS_Investors) / XA Casa Branca publicou, em 3 de janeiro de 2025, a decisão do presidente Joe Biden de bloquear a aquisição da United States Steel (USS), centenária empresa de aço criada por J. P. Morgan e Andrew Carnegie no século XIX e ícone da potência industrial dos Estados Unidos, pela japonesa Nippon Steel Company (NSC), anunciada em dezembro de 2023. Ao longo de 2024, essa decisão foi mantida em suspenso, com declarações enfáticas de Biden sobre o tema e forte oposição de congressistas democratas e republicanos, assim como dos então candidatos Donald Trump e Kamala Harris, contrários à venda da siderúrgica – o que indica um consenso político em favor do bloqueio.

Na declaração de Biden, o principal argumento é que a indústria siderúrgica deve ser mantida como empresa nacional, tanto na propriedade quanto na operação, “para defender a segurança nacional dos EUA, inclusive garantindo que as empresas americanas continuem a desempenhar um papel central em setores que são críticos para nossa segurança nacional”. O texto é bem específico, destacando o objetivo de impedir que um dos maiores produtores de aço dos Estados Unidos fique sob o controle estrangeiro, condição que “criaria riscos para nossa segurança nacional e nossas cadeias de suprimentos críticas”.

A decisão está amparada na análise dos “especialistas de segurança nacional e comércio do poder Executivo” – ou seja, do Comitê de Investimento Estrangeiro dos Estados Unidos (CFIUS, na sigla em inglês), o painel interagências de investigação dos aspectos de segurança nacional implicados em fusões e aquisições de negócios nos Estados Unidos –, para preservar a capacidade da base industrial de defesa e da segurança econômica, aspecto destacado no statement do presidente. Segundo reportagem da agência de notícias Reuters, a Casa Branca não quis comentar a decisão, tampouco o Departamento do Tesouro, agência à frente do CFIUS.

O bloqueio de um investimento estrangeiro pelo Executivo com base na decisão do CFIUS (em outras palavras, com base em segurança nacional) não é uma novidade. Nesse caso, porém, três aspectos são relevantes: i) Não se trata da China, mas de investimento japonês, ou seja, de um aliado estratégico dos EUA na Ásia-Pacífico; ii) Demonstra a natureza de protecionismo econômico das regulações que foram aprovadas no governo Trump, especificamente, a modernização do CFIUS, que adotou critérios de segurança econômica como segurança nacional; e iii) Revela uma mudança importante no funcionamento das revisões de segurança, na ampliação da discrição do Executivo e na politização que se iniciou com Trump.

Conforme matéria da rede NBC, a percepção das empresas é que Biden teria exercido uma “influência inadmissível” sobre o processo de revisão de segurança nacional e que poderiam iniciar uma ação legal para proteger seus direitos. Reagindo à notícia do bloqueio, o CEO da U.S. Steel, David Burrit, classificou a decisão como “vergonhosa e corrupta” e que, para ele, Biden “insultou o Japão, um aliado vital da economia e da segurança nacional, e colocou a competitividade americana em risco. Os líderes do Partido Comunista Chinês em Pequim estão dançando nas ruas. E Biden fez tudo isso enquanto se recusava a se encontrar conosco para saber os fatos”, de acordo com declaração no site da U.S. Steel. 

O prazo final para a entrega do relatório seria 20 de janeiro. Em 24 de dezembro de 2024, buscando obter aprovação, a Nippon ofereceu ao governo dos Estados Unidos o direito de veto, pelo qual poderia impedir a redução de sua capacidade de produção. Esse foi um dos aspectos criticados na proposta de aquisição, pois poderia reduzir o emprego, ao deslocar a produção para outros países com menor custo relativo de produção. 

Desde que a USS comunicou a proposta de aquisição à Security Exchange Commission (SEC, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários no Brasil), em 18 de dezembro de 2023, as reações de oposição abriram uma discussão sobre seu significado para a indústria siderúrgica dos Estados Unidos, e os impactos sobre os empregos geraram dúvida sobre sua aprovação por parte das autoridades regulatórias. O negócio já tem autorização dos acionistas, e também das autoridades regulatórias de outros países com subsidiárias da Nippon e da USS, como México, Eslováquia, Turquia, Reino Unido, Canadá e Sérvia, além da Comissão Europeia

Reações políticas à aquisição da U.S. Steel

As eleições afetaram o timing da decisão do Executivo sobre a proposta de aquisição. Para compreender o significado político da venda da USS no cenário eleitoral, é importante lembrar que Pittsburgh foi a maior cidade produtora de aço do mundo. Embora tenha representado a era da potência industrial dos EUA, atualmente é um símbolo da perda de competitividade do país. Desde os anos 1970, com o esgotamento do modelo fordista e o novo processo de ciclo de acumulação, com avanços tecnológicos e automação, a região enfrenta a desindustrialização, com perda de emprego e redução da população. O então Manufacturing Belt (Cinturão das Indústrias) passou a ser chamado de Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), área que reúne os estados do Centro-Oeste e do Nordeste do país, como Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa, Pensilvânia e Wisconsin, atingidos pelas mudanças na economia global. Como mostrou a análise de Layne Newman e Theda Skocpol, no livro Rust Belt Union Blues: Why Working-Class Voters Are Turning Away from the Democratic Party (Columbia University Press, 2023), a aliança entre a classe trabalhadora e o Partido Democrata, importante na política norte-americana, foi sendo afetada pelas transformações do trabalho industrial e do emprego na região.

As reações políticas à aquisição da USS foram imediatas. Políticos democratas e republicanos se mobilizaram contra a aquisição. Em 19 de dezembro de 2023, foram enviadas duas cartas, de democratas e de republicanos, à secretária Janet Yellen, do Departamento do Tesouro, solicitando a abertura de investigação sobre a aquisição CFIUS. O painel interagências, liderado pelo Tesouro, analisa potenciais riscos à segurança nacional, quando se trata de fusões e aquisições de ativos estadunidenses por estrangeiros, e pode exigir alterações que mitiguem os riscos identificados, recomendar o veto presidencial ou até a dissolução do negócio, quando já tiver sido concluído.

A proteção do setor industrial, com aumento das tarifas para as importações chinesas de aço nos governos Trump e Biden amparado pelo consenso bipartidário em relação à China na política norte-americana, está relacionada com esse quadro mais amplo, mas que, no contexto eleitoral, colocou em xeque a posição dos candidatos diante da aquisição da siderúrgica norte-americana.

Esse movimento indicava um consenso de que a venda da USS deveria ser bloqueada por razões de segurança nacional. Isso é o que está posto nas novas regulações de segurança aprovadas com apoio bipartidário, bem como na política protecionista de comércio e investimento contra a China do governo Trump, continuadas por Biden. Pressões para que o CFIUS revise, reformule ou recomende o bloqueio de fusões e aquisições de empresas estadunidenses nos setores sensíveis para a segurança nacional foram e continuaram sendo constantes nos governos de Trump e Biden. Isso demonstra a politização da atuação do CFIUS, que se aprofundou com a reforma e com a modernização dos processos de revisão de segurança nacional aprovados em 2018. Desde então, essas regulações também se aplicam nos casos de investimentos de empresas estatais com participação de investidores de países “autocráticos”, como China, Rússia e Coreia do Norte, segundo as regulações e Ordens Executivas.

É exatamente esse ponto que chama a atenção nessa aquisição da USS. Neste caso, não se trata da China, mas do Japão, um país que tem investimentos nos EUA há mais de 40 anos, e é um aliado histórico dos Estados Unidos na região da Ásia-Pacífico. O país é membro do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad, na sigla em inglês), junto com Índia e Austrália, além de participar dos arranjos de cooperação regional para os objetivos da política externa dos EUA na região. 

Entre 2014-2023, os bloqueios de aquisições com base em decisões presidenciais foram apenas cinco, estando relacionados com operações que envolviam a China e por razões de segurança nacional. Um bloqueio ao investimento estrangeiro motivado por segurança econômica, como sugeriram as cartas enviadas ao Departamento do Tesouro no caso da USS, é algo inédito. Segundo investidores e a opinião pública, uma recomendação do CFIUS para o bloqueio deveria ocorrer apenas quando houvesse “evidência crível” de risco potencial à segurança nacional. Muitas vozes têm criticado a visão de que uma aquisição japonesa de uma empresa estadunidense envolveria algum risco para a segurança nacional. 

De modo bem enfático, a presidente e CEO da Global Business Alliance (GBA), Nancy McLernon, criticou a politização no caso da U.S. Steel. Para ela, se Biden usasse sua caneta para proibir a aquisição no contexto das pressões eleitorais, seria Trump forçando a mão do rival democrata. Em entrevista ao programa “Wall Street Week” da Bloomberg, o ex-secretário do Tesouro Lawrence H. Summers disse não haver nada de plausível ou genuíno, em termos de segurança nacional, que justificasse o questionamento da transação. Ele destacou, ainda, a contribuição do negócio para a economia dos Estados Unidos. 

Neste texto, buscamos olhar para os aspectos da competição EUA-China envolvidos na fusão entre a USS e a Nippon. Sua aprovação indicaria a primazia de questões de competição global; de Grande Estratégia, no contexto da estratégia de contenção chinesa; e da formulação de respostas que articulam o setor privado e a competição no mercado global, para além da dimensão doméstica, ou do espaço econômico nacional. Já a proibição da operação – em defesa de medidas protecionistas como resposta às preocupações com competitividade e preservação da indústria norte-americana – sinaliza uma mudança importante na natureza das medidas de triagem investimento estrangeiro com base em segurança nacional (investment screening).

Segurança nacional ou segurança econômica: o debate nos EUA

Na carta dos democratas da Pensilvânia, na qual se vocalizava a posição dos sindicatos com críticas aos executivos da USS, os senadores Robert Casey Jr. e John Fetterman, bem como o representante Chris Deluzio, pediram a abertura de uma revisão da aquisição, devido às implicações para a segurança nacional e a econômica, além de atuarem junto ao presidente Biden para bloquear o acordo. A carta ressaltou, ainda, que a aprovação da Inflation Reduction Act, da Infrastructure Investment and Jobs Act e da CHIPS and Science Act tinha os objetivos de recuperar a competitividade da economia dos EUA e a modernização tecnológica e, igualmente, restabelecer a cadeia de suprimentos críticos. Logo, permitir que estrangeiros adquiram propriedade de setores priorizados pela política de investimento seria, segundo os senadores, um “passo para trás”.

Em entrevista ao jornal britânico The Independent, o senador John Fetterman chamou a aquisição de “ultrajante”, lembrando a devastação econômica na região abandonada pelas indústrias, ilustrada pela experiência do Rust Belt. Para o senador, “… aço é sempre sobre segurança – tanto nossa segurança nacional quanto a segurança econômica de nossas comunidades siderúrgicas. Estou comprometido a fazer tudo o que puder, usando minha plataforma e minha posição, para bloquear essa venda estrangeira”.

Na mesma linha, a carta dos republicanos – assinada pelos senadores Josh Hawley (MO), J. D. Vance (OH), então candidato a vice de Trump e agora vice eleito, e Marco Rubio (FL) – argumenta que o bloqueio é urgente. Na missiva, eles pedem a abertura de investigação por parte da SEC, questionando a recusa da proposta de aquisição da U.S. Steel por uma empresa nacional, a Cleveland Cliffs, em favor da Nippon. Os republicanos sublinharam sua preocupação com a manutenção dos empregos e da produção nacional do aço, e consideram que a USS deve continuar a ser uma empresa nacional. Nos argumentos, enfatizaram que a produção de aço é “vital para a segurança nacional dos Estados Unidos”, como está na Seção 232, quando Trump endureceu as tarifas para proteção da produção doméstica. Segundo eles, o objetivo é que o investimento estrangeiro expanda a produção doméstica e crie empregos, e não permitir que estrangeiros comprem empresas para produzir no país. Isso seria, insistem, uma inversão do propósito da proteção tarifária.

Apesar da diferença no tom, há dois pontos em comum nas cartas. Um, a posição contrária à aquisição com base em segurança nacional, justificada pela necessidade de a indústria de base se manter sob o controle nacional, enfatizando, portanto, argumentos de segurança econômica. Outro ponto foi o destaque de que há outras propostas competitivas de compra por companhias nacionais, o que manteria segura a base industrial estadunidense. A crítica era que os executivos teriam preferido a proposta que valoriza os ganhos financeiros, em detrimento dos trabalhadores ou do interesse nacional.

O presidente Biden, segundo reportagem do jornal Financial Times, declarou seu apoio à investigação da aquisição. Como explicou Lael Brainard, do Conselho Econômico Nacional, Biden vê a Steel como componente crítico da produção de aço doméstica e da segurança nacional. Ela acrescentou que, mesmo que para Biden o investimento estrangeiro seja bem-vindo, a compra da USS, ainda que por um país aliado, exigiria um escrutínio para avaliar seu impacto potencial para a “segurança nacional e confiabilidade da cadeia de suprimentos”. Trump declarou, por sua vez, que, se fosse presidente, bloquearia a venda instantaneamente.

Reagindo às declarações, em 9 de maio de 2024, os republicanos J. D. Vance, Marco Rubio e Josh Hawley enviaram uma carta, questionando o presidente Biden sobre sua atitude no caso. No texto, sugeriram que, assim como Trump, que forçou desinvestimentos para proteger a indústria de semicondutores e dados de estadunidenses das empresas ligadas a adversários estrangeiros, ele deveria usar a autoridade presidencial para proibir ou suspender a venda da U.S. Steel. Esse trecho do documento é um exemplo da posição dos republicanos: “Por lei, você tem a autoridade para bloquear a venda da U.S. Steel unilateralmente sob a Defense Production Act, 50 U.S.C. § 4565(d), ou a International Emergency Economic Powers Act, 50 U.S.C. § 1702(a), quando uma emergência nacional é declarada. Você pode exercer esses poderes agora. Pronunciamentos sobre o que você considera ‘vital’ ou o que você acha que ‘deveria’ acontecer com a U.S. Steel são inúteis, a menos que você aja para manter a U.S. Steel sob o controle estadunidense”.

Em face desses movimentos, foram abertas duas investigações: uma, do CFIUS, que deveria se estender ao longo de 2024, sobre os riscos à segurança nacional; e outra, do Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) ꟷ mas, nesse caso, trata-se de escrutínio antitruste, não se refere à propriedade estrangeira. Segundo reportagem do site POLITICO, a Nippon e a ArcelorMittal, com sede em Luxemburgo, são proprietárias em conjunto de uma fábrica em Calvert, no estado do Alabama, concorrente direta da U.S. Steel no setor automotivo.

No entanto, embora inicialmente as declarações sugerissem um consenso sobre a necessidade do bloqueio pelo Executivo, a aquisição foi tensionada pela lógica do cálculo eleitoral, pelas pressões domésticas de políticos e de concorrentes nacionais, e pela competição global com a China no mercado do aço. Se tivesse sido aprovada, a empresa passaria a ocupar a segunda posição no ranking mundial de produção de aço, atrás do China Bawou Group, que, junto de outras corporações chinesas, domina o mercado global de aço. 

Fonte: VisualCapitalist.com

Pittsburgh, indústria siderúrgica e empregos: as eleições

A preocupação com o eleitorado da Pensilvânia colocou o presidente Biden e sua vice, a candidata democrata Kamala Harris, em uma posição delicada em relação aos trabalhadores em Pittsburgh, a chamada Cidade do Aço, onde está localizada a sede da U.S. Steel.

Em meio à intensa disputa entre Donald Trump e Kamala Harris pelos votos dos swing states – “estados-pêndulo”, como se chamam nos EUA aqueles em que os candidatos democratas e republicanos não têm maioria definida nas intenções de voto –, destaca-se a corrida pelos eleitores do estado da Pensilvânia, considerado crucial para a definição da eleição, com 19 delegados no Colégio Eleitoral. Por isso, a Pensilvânia foi considerada a joia da coroa, levando os candidatos a concentrarem suas atividades nos últimos dias da campanha. Explica, também, a preocupação dos democratas em reiterar sua posição contrária à aquisição.

Segundo dados divulgados pela revista Forbes, a maioria dos eleitores da Pensilvânia é composta por trabalhadores – 75% se declaram como não hispânicos, ou seja, o público-alvo da campanha de Trump. Desde 1945, os candidatos democratas que ganharam as eleições venceram na Pensilvânia. Em 2016, Trump foi o primeiro republicano a sair vitorioso no estado desde 1980, mas Biden conseguiu retomar os votos para os democratas, vencendo em 2020. Em 2024, porém, os democratas perderam em todos os swing states, incluindo os do chamado Blue Wall (“Paredão Azul”): Pensilvânia, Wisconsin e Michigan.

Desde a campanha de Trump de 2016, as promessas para trazer as indústrias e os empregos de volta para os EUA têm sido um dos vetores do discurso do republicano, no movimento “Make America Great Again”, que lhe deu a vitória em vários estados dessa região. A proteção do setor industrial, com aumento das tarifas para as importações chinesas de aço nos governos Trump e Biden, está relacionada com esse quadro mais amplo e que, no contexto eleitoral, exigia uma posição clara dos candidatos diante da aquisição da U.S. Steel. Ou seja, de defesa da proteção da indústria nacional.

Os democratas, assim como Trump, declararam que a empresa deveria permanecer nos EUA e operar sob o controle nacional. A indústria do aço ocupa um lugar simbólico nos discursos e nas políticas protecionistas de Trump e Biden. Logo, a venda da U.S. Steel, um símbolo do desenvolvimento industrial no imaginário estadunidense, poderia ser percebida como um sinal contrário quanto às propostas de recuperação do emprego e um sinal de fragilidade da economia do país. Claro que a preocupação, no calor da disputa presidencial, é com a percepção dos eleitores, e como isso poderia afetar os votos. 

Se a aquisição se concretizasse, a Nippon Steel declarou que investiria na Mon Valley Works, da U.S. Steel, no estado da Pensilvânia, e na Gary Works, em Indiana, além do investimento de US$ 1,4 bilhão até 2026, prometido pela empresa ao sindicato United Steelworkers (USW). Isso incluiria investimentos para substituir ou atualizar laminadores de tiras a quente, na Mon Valley Works, e no alto-forno nº 14, na Gary Works, para estender sua vida operacional em até 20 anos. Ou seja, a promessa era que essa operação modernizaria e fortaleceria a competitividade da siderúrgica.

Em 2 de setembro de 2024, em evento pela comemoração do Dia do Trabalho em Pittsburgh, na Pensilvânia, Kamala Harris, afirmou que a U.S. Steel deveria permanecer “de propriedade e operada pelos estadunidenses”, reiterando, assim, a posição de Biden e de Trump de que o governo federal deveria impedir a compra pela japonesa Nippon Steel. No dia seguinte, uma fonte anônima da Casa Branca informou ao jornal The Washington Post que o presidente Biden iria pronunciar o veto do Executivo à aquisição nos próximos dias. O bloqueio da aquisição parecia ser consensual e iminente.

Em 4 de setembro, a Nippon Steel publicou em seu site institucional a política de governança para a USS, destacando que “continua acreditando que a Transação aumentará a segurança nacional americana, ao reforçar a U. S. Steel e suas capacidades de produção doméstica, trazendo tecnologias de ponta para os Estados Unidos e, finalmente, tornando a base industrial e a cadeia de suprimentos estadunidense mais resiliente e mais bem posicionada para competir contra futuras pressões de concorrentes chineses apoiados pelo Estado”.

Nippon e as objeções do CFIUS 

Em 5 de setembro, porém, a Reuters divulgou a carta de 17 páginas enviada pelos EUA às empresas, obtida com exclusividade, cujo conteúdo revelava os pontos sensíveis identificados na aquisição pelo CFIUS. A preocupação com a fusão era que poderia reduzir a capacidade de produção do aço nacional, com potencial prejuízo no fornecimento de aço para projetos críticos nas áreas de transporte, construção e agricultura, dificuldades para exportação em razão do excesso global de aço barato chinês e redução na capacidade de produção de aço nacional. Isso porque a Nippon tem presença na Índia, país com menores custos de produção. Assim, a carta sintetizou a percepção do CFIUS sobre os aspectos ligados à segurança nacional que poderiam fundamentar uma recomendação de bloqueio. A Reuters destacou a opinião de uma especialista do setor, para quem esses aspectos não constituem objeções de segurança nacional, mas sim protecionismo comercial e política eleitoral.

Logo em seguida, em 9 de setembro 2024, a Nippon respondeu aos questionamentos do CFIUS, em um texto de 100 páginas, comentado em artigo publicado pela Reuters. Entre os principais pontos destacados, que foram entendidos pelos trabalhadores como compromisso, estão o investimento em manter e impulsionar as instalações da U.S. Steel para aumentar a capacidade doméstica de produção de aço nos Estados Unidos e não transferir nenhuma capacidade de produção ou empregos da U.S. Steel para fora dos EUA. Também foi sublinhado que a fusão fortaleceria a concorrência global com a China e aproximaria EUA e Japão.

Em relação aos aspectos de segurança nacional, para responder às preocupações do CFIUS, a Nippon assinaria um acordo para que a maioria do conselho de diretores da U.S. Steel fosse de cidadãos estadunidenses, com três diretores independentes aprovados pelo CFIUS para supervisionar o cumprimento do acordo, a fim de mitigar riscos. Em termos comerciais, não importaria aço de origem indiana, país em que, como dissemos, a Nippon também está operando.

Então, o CFIUS decidiu estender o prazo de análise por mais 90 dias, o que deslocou a decisão sobre o caso do contexto eleitoral.

Essa discussão entre CFIUS e Nippon teve impacto na posição dos trabalhadores, que passaram a apoiar a fusão. Em reportagem da revista The Economist sobre o caso, o vice-presidente do sindicato USW, Jason Zugai, explicou que os trabalhadores estavam a favor da venda da USS. Isso porque, em resposta às preocupações do CFIUS, a Nippon assumiu compromissos como investimento para modernização tecnológica; preservação da marca; manutenção dos acordos com o sindicato; manter a produção no estado, ou seja, não deslocar a produção para fora do país e não reduzir empregos, bem como manter a sede em Pittsburgh. A U.S. Steel disse, por sua vez, que o fracasso da aquisição poderia provocar o fechamento da sede e a redução dos empregos. Assim, os trabalhadores fizeram manifestação em favor da operação.

Nesse cenário, Biden resolveu protelar a decisão sobre a aquisição para depois das eleições, aguardando o relatório do CFIUS. Durante esse intervalo, o CFIUS se manifestou, indicando os aspectos sensíveis na operação, o que abriu um processo de negociação com as corporações. Embora detalhes não sejam divulgados, já que essas análises envolvem informações confidenciais, o que tem sido prática comum do CFIUS é modelar a aquisição, por meio dos acordos de mitigação de riscos, para que a operação esteja adequada aos critérios de segurança. Por isso, desde sua criação, em 1975, o CFIUS tem recomendado bloqueios pelo presidente apenas em casos muito específicos, especialmente naqueles que envolvem investimento chinês.

A fusão da USS/Nippon no cenário da competição EUA-China

Além do cálculo eleitoral, a aquisição envolvia também a lógica da competição global. Ao lado das pressões da concorrência no plano doméstico, como as tensões com a Cleveland-Clifs, a polêmica sobre a aquisição se relaciona com uma importante questão no contexto internacional: a estratégia de competição global dos EUA com a China, que envolve compromissos com os aliados, Estados e corporações privadas, como é o caso da Nippon. Ou seja, trata-se da concorrência no mercado global do aço com a China, foco dessa estratégia de aquisição da USS pelos japoneses.

Um aspecto importante traduz a tensão no plano da concorrência doméstica. Ao longo do processo, a Nippon buscou dialogar para superar as resistências ao movimento para o mercado doméstico. Para isso, uma das iniciativas foi a indicação de Mike Pompeo, um dos secretários de Estado de Trump, como consultor. Sobre isso, a Nippon declarou: “Estamos ansiosos para trabalhar com ele para enfatizar ainda mais as maneiras pelas quais a aquisição da U.S. Steel pela Nippon Steel reforça a segurança econômica e nacional do país”. Já o vice-presidente-executivo da Nippon, Takahiro Mori, disse que também estava dialogando com o governador de Minnesota, Tim Walz, antes de ser indicado para vice na chapa de Kamala Harris, e que o democrata era “muito favorável” ao investimento na U.S. Steel.

Em relação ao mercado do aço, é importante destacar que, devido ao enafraquecimento da demanda doméstica, a China tem elevado suas exportações de aço. A maior oferta e a redução dos preços têm feito aumentar as proteções tarifárias e as investigações antidumping. Nos EUA, as medidas de proteção comercial estão mantendo os preços mais altos, como mostram os dados do Ficht Wire. Nesse sentido, pode-se afirmar que o investimento da Nippon favoreceria a corporação com o mercado norte-americano protegido por altas tarifas contra os competidores chineses, além do acesso às políticas de subsídios adotadas pelos EUA.

Em 2024, a Nippon encerrou sua joint venture com a Baoshan Irons & Steel (Baosteel) na China. Garantiu que isso não tinha relação com a aquisição da USS, pois vinham conversando desde 2022. O fato é que, segundo os dados da Reuters, a Nippon reduziu 70% de sua produção na China, embora ainda mantenha a produção com a Wuhan Iron and Steel, uma unidade da Baoshan. Também no ano passado, a Nippon buscou compensações por infração de direitos de patente pela Toyota Motor e seu fornecedor, a Baoshan Iron & Steel. Agora, a Nippon está apostando (ou tentando apostar) nos EUA e na Índia.

A partir de 1972, quando os então primeiros-ministros Kukei Tanaka e Zhou Enlai normalizaram as relações diplomáticas sino-japonesas, o Japão, aliado dos EUA na Ásia, teve importante papel geopolítico, cooperando com o processo de modernização econômica chinesa. Hoje, a China ocupa o lugar do Japão na produção mundial de aço. Nesse contexto, de operações desvantajosas e de competição na China, a Nippon mudou sua estratégia, focalizando, segundo matéria do Business Times, em mercados com maior demanda de aço de qualidade, como os Estados Unidos, a Índia e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). E esse movimento não é exclusivo da Nippon. Outras empresas japonesas estão fazendo o mesmo, como Honda, Hino Motors, Bridgestone e Teijin: reduzindo seu tamanho, ou saindo da China. Fica evidente a convergência da estratégia de concorrência corporativa entre a Nippon e corporações chinesas no mercado global do aço, com interesses geopolíticos da competição sino-americana.

Já a estratégia friend-shoring, termo usado por Janet Yellen em 2022 para descrever o engajamento econômico dos EUA com o mundo, é vista como fundamental para garantir matérias-primas, tecnologias e produtos essenciais, como argumenta o relatório “The U.S. Wants Manufacturing to Drive Growth Foreign”, publicado em setembro de 2024, pelo think tank Progressive Policy Institute, mais alinhado com o Partido Democrata. O investimento de aliados e parceiros, as transferências de tecnologia e o aprofundamento da cooperação em torno da estratégia dos EUA são elementos geopolíticos fundamentais para observar a dinâmica das resistências na política doméstica.

Em síntese, a análise dos aspectos geopolíticos, dos compromissos com o Japão e da política externa para a Ásia-Pacífico, bem como o significado da fusão da USS/Nippon para a concorrência no mercado global do aço, expõe a complexidade das questões envolvidas na aquisição. No plano doméstico, a vitória do protecionismo econômico traduz uma mudança importante nos mecanismos de análise de segurança nacional. Com a derrota dos democratas, a decisão de Biden de bloquear um investimento dessa natureza transfere para os republicanos a tarefa de lidar com as repercussões entre os investidores e aliados estratégicos, as implicações no campo geopolítico e os desdobramentos na política doméstica, sobretudo, para trabalhadores e sindicatos. 

 

* Edna Aparecida da Silva é doutora em Ciência Política pela UNICAMP. É pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), assim como no projeto “Dinâmica Competitiva e Interações Estratégicas: os impactos da competição tecnológica entre EUA-China sobre o Brasil” (CNPq/UFPB). Estuda investimento e segurança, investment screening e a atuação doméstica e internacional do CFIUS na dinâmica de competição com a China. É autora do capítulo “CFIUS tailored to the US-China strategic rivalry: investment screening and regulatory convergence in the shadow of the liberal international order”, a ser publicado no livro China’s Globalisation and the New World Order (Palgrave MacMillan, 2025), organizado pelos profs. Bakare Najimdeen e Adam Saud. Contato: ednasilva@uol.com.br.

** Primeira revisão de conteúdo realizada pelo prof. Henrique Zeferino Menezes (UFPB). Revisão de texto: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 5 nov. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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