Seminário internacional INCT-INEU 2024: as políticas do governo Biden e perspectivas II
Crédito: Tatiana Carlotti
Por Tatiana Carlotti* [INCT-INEU] [Seminário internacional] [Eleições 2024] [Trump 2.0]
A quarta mesa do Seminário Internacional “As eleições nos EUA e as políticas do Governo Biden: balanço e perspectivas”, promovido pelo INCT-INEU, nos dias 5 e 6 de dezembro, deu sequência ao balanço de ponta sobre o governo Joe Biden realizado pelos pesquisadores da Rede.
Se, nas mesas anteriores, a política doméstica estava no foco, agora, a discussão se deslocou para a política externa.
O professor Williams Gonçalves (UERJ) trouxe o debate sobre a Grande Estratégia, evidenciando como os governo de Donald Trump e Joe Biden lidaram com a questão da disputa pela hegemonia dos Estados Unidos. O professor João Estevam (Anhembi Morumbi) focou na rivalidade geopolítica entre EUA e China, mostrando a disputa dos dois países no mundo tecnológico. Por fim, o professor Jaime Cesar Coelho (UFSC) explicitou como se dá a guerra econômica travada pelos americanos contra outras nações, em particular China e Rússia.
Acompanhem o debate que contou com mediação de Neusa Maria Pereira Bojikian (INCT-INEU/ Unicamp)
A Grande Estratégia dos Estados Unidos
As políticas externas de Biden e de Trump devem ser entendidas em um contexto internacional de “contestação e mudança da ordem internacional”, afirma o professor Williams Gonçalves (UERJ).
Desde os anos 2000, a hegemonia dos Estados Unidos vem sendo ameaçada pela ascensão da China, juntamente com a formação do grupo BRICS. “Nós temos a China disputando com os EUA a hegemonia” e, ao mesmo tempo, “com a Rússia sendo um vértice do BRICS”. A partir daí, “a questão da ordem internacional se tornou explícita”.
Gonçalves trabalha com o conceito de Grande Estratégia, “uma política externa que almeja o exercício da hegemonia sobre todos os demais Estados”, reservada às grandes potências que “detêm recursos econômicos, financeiros, tecnológicos, militares, culturais e a pretensão de exercer sobre os demais a sua liderança, impondo os seus interesses como se eles fossem os interesses dos outros”.
Ante a visão “mercantilista das relações internacionais” de Donald Trump, a Grande Estratégia “foi desdenhada” por ele em seu primeiro mandato; e o “esperado é que isso aconteça novamente”. Em sua avaliação, “o sentido do governo Biden foi recolocar a questão do consenso bipartidário na luta pela hegemonia (…) Ele veio, com força, mostrar a disposição de recuperar a posição hegemônica”.
Para tal, foram mobilizados velhos preceitos, dos tempos da Segunda Guerra Mundial, como a ideia de que nenhum Estado pode dominar a Eurásia, ou de que Alemanha e Rússia não podem ter integração com a região. Neste sentido, a Ucrânia serviu como pretexto, e a Europa aceitou a “ideia pueril” de que a Rússia tem um plano para criar um império. “Ideias apresentadas pelos europeus como justificativa para o conflito”, destacou.
Confira a apresentação de Williams Gonçalves (UERJ)
No governo Biden, havia uma ideia de que a guerra mundial contra Rússia e China era iminente. “Tanto no Congresso como nas Forças Armadas se trabalhou com a hipótese da guerra. Um estudo preparado pelo Departamento da Defesa chegou ao ponto de dizer que o momento para fazer a guerra era agora”, destaca. O documento prevê que, a partir de 2030, os Estados Unidos não mais poderão vencer a China militarmente.
O governo Trump não embarcará nessa disputa. “Ele não está preocupado com isso. Seu objetivo é manter os Estados Unidos obtendo vantagens sempre, em todas as negociações”, e minimizar a guerra na Ucrânia, que não faz sentido para ele. Em relação à China, complementa Gonçalves, “o que faz sentido é a intensa competição. Aí “vale tudo”, embora [Trump] não fale em guerra e não mostre disposição para isto. “Para ele, é uma guerra econômica”.
“Ao aderir ao neoliberalismo, o modelo da sociedade capitalista bem-sucedida [dos Estados Unidos] foi-se desorganizando”, alega o professor Williams, que destaca a corrosão deste modelo a partir da adoção, durante o governo de Bush Filho, das ideias neoliberais abrigadas por Bill Clinton, “que deu fim ao pacto do New Deal”.
Resultado: “A despeito do PIB excepcional, a estrutura de renda hoje dos Estados Unidos é a de um país de Terceiro Mundo. Uma concentração de renda absurda. O mal que a globalização neoliberal fez a todo mundo, ela fez também nos Estados Unidos, e Trump percebe isso com muita clareza”, conclui.
EUA-China: rivalidade geopolítica e tecnológica
Gráfico sobre o domínio da China na venda de smartphones
O professor João Estevam dos Santos Filho (Anhembi Morumbi), doutorando pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), apresentou um estudo em parceria com o professor Marco Cepik (UFRGS), sobre a rivalidade geopolítica e tecnológica entre os Estados Unidos e a China.
Estevam conta que houve um momento de engajamento nas relações entre Estados Unidos e China, nos anos 1990, seguido de uma política de contenção a partir de 2001, em particular no campo da tecnologia. Segundo os pesquisadores, tanto Trump quanto Biden adotaram, na esfera das indústrias de comunicação e informação, uma política de desacoplamento.
Ela consiste em “tornar cada vez mais o setor de tecnologia, informação e comunicação dos Estados Unidos autônomo em relação à China”, sobretudo, nos setores de semicondutores, telecomunicações, Inteligência Artificial (IA) e Tecnologia Quântica (QIT).
Estevam mostrou dados sobre o avanço da China nesses setores e sua ultrapassagem sobre os Estados Unidos na seara das telecomunicações, onde a empresa Huawei lidera na tecnologia do 5G. Já na questão da Inteligência Artificial, apesar de segundo maior investidor de pesquisas na área, o capital injetado nas startups do setor é majoritariamente dos Estados Unidos.
De modo geral, “nos setores de ponta da tecnologia de informação e de comunicação, apesar de haver uma capacidade norte-americana de resposta bastante importante e de mercado, já é possível identificar uma predominância chinesa”, afirma.
A reação dos Estados Unidos
Estevam e Cepik avaliam que, tanto no governo Biden quando no de Trump, houve uma política comum de “limitação de exportações para empresas chinesas, restrição de influxos de tecnologia e capitais chineses, barreiras à entrada de capital humano chinês e aumento de investimentos em tecnologia de ponta” nos Estados Unidos.
Desde Trump, “medidas legislativas têm focado em restringir a possibilidade de exportação de componentes produzidos nos Estados Unidos”, visando a sufocar o setor de semicondutores chineses, “ainda muito dependente da tecnologia norte-americana”, observa.
Confira a apresentação de João Estevam dos Santos Filho (Anhembi Morumbi)
Esse desacoplamento “não é uma questão puramente comercial, mas de capital humano”. Estevam cita a limitação da entrada de pesquisadores e estudantes chineses iniciada em 2018, com Trump, a partir da “Iniciativa Chinesa”. De acordo com o pesquisador, trata-se da “principal iniciativa governamental de restrição ou diminuição de cidadãos chineses que poderiam entrar nos Estados Unidos, supostamente investigados por acusações de espionagem econômica e hacking, sabotagem ou outras acusações”.
Embora Biden tenha extinguido a iniciativa, os vistos continuam sendo negados a estudantes e professores chineses. E as perspectivas pós-eleitorais não são positivas. Ao analisar as indicações já anunciadas para o governo Trump 2.0, Estevam avalia se tratar da “escalação de gabinete mais agressiva em relação à China” [até agora], com Marco Rubio (Departamento de Estado), “um dos maiores opositores à China no Congresso”, Jamieson Greer (USTR, Representante de Comércio) e Michael Waltz (conselheiro de Segurança Nacional).
Guerra econômica e poder financeiro
Em sua exposição, o professor Jaime César Coelho (UFSC) trouxe o contexto de guerras e transição em que vivemos, mostrando como os Estados Unidos usam a economia na competição e na rivalidade interestatais, com ênfase nas sanções financeiras.
Uma rivalidade, explica, que se acirra quando a China deixa de ser um país meramente exportador e passa a ser exportador de capital, a partir de “uma estratégia política e geopolítica pensada pelo Partido Comunista, em termos de desenho e orientação do movimento do capital”, assim como “de investimentos e ajuda financeira internacional”.
Além da China, outro país na fila das sanções é a Rússia. Coelho avalia que a Guerra na Ucrânia representou “um ponto de intensificação na utilização de determinados instrumentos econômicos de guerra”, em particular as sanções financeiras, o que colocou “em teste, de modo mais intenso, a governança financeira internacional”.
“Houve um crescimento progressivo da utilização de sanções econômicas vis-à-vis outros tipos de sanções não econômicas. Em termos estatísticos, sanções financeiras e econômicas estão crescendo, como o uso conjunto de sanções econômicas e não econômicas”, observa.
Na utilização dessas medidas, o padrão vem sendo o de aplicar sanções a terceiros, como empresas que prestam serviços a governos incluídos em listas negativas. Com isso, observa-se uma “colateralização crescente” do processo de sanções que, em geral, “têm-se concentrado nas restrições de acesso à infraestrutura dos pagamentos internacionais e aos ativos”.
Ele chama essa infraestrutura comunicacional de sistemas de pagamentos de “infoestrutura”. As sanções impedem o acesso a ela, e Coelho conta como esse processo funciona.
SWIFT
Em 1973, para escapar de uma alteração técnica no sistema econômico que daria ao City Bank o monopólio sobre os pagamentos internacionais, entidades e países criaram o chamado sistema SWIFT, um sistema internacional de registro de pagamentos que detém uma organização internacional, de fins não lucrativos, explica o professor da UFSC.
Composto por entidades e diversos países, o Swift “não obedece a um governo internacional. É um sistema de governança que surge como uma resposta do mercado e que tem uma interrelação com o conjunto das entidades soberanas”, porém, “se esse sistema colapsar, o sistema inteiro colapsa”.
Confira a apresentação de Jaime Cesar Coelho (UFSC)
Para evitar isso, 15 bancos centrais se articulam na supervisão e padronização desse sistema. Ser retirado dele gera enormes dificuldades, e é o que provocam as sanções financeiras que “vêm recaindo sobre a gestão dos ativos e sistemas de pagamento e de registros”.
“O SWIFT sempre foi resistente à aplicação das sanções”, diz Coelho. Tanto que o sistema que concentrava as informações nos Estados Unidos criou outro centro na Europa, e se dividiu em dois.
Ele menciona o 11 de Setembro como um período de intensificação das sanções, quando as leis sobre lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo criaram “uma forma de governança capaz de capturar esses sistemas de pagamentos e de fazê-los trabalhar para os interesses americanos” –, mas “essas ações têm reações”, ressalta.
A Rússia criou um sistema próprio de transmissão de informações; França, Alemanha e Reino Unido fizeram o mesmo, em 2019, para facilitar as negociações com o Irã; em 2015, a China lançou seu próprio sistema de registro de informações; e a Índia também criou um sistema, porém interno. “Você tem Índia, Rússia e China, três países do BRICS que desenvolvem sistemas próprios, dois cross borders [russo e chinês] e um intra, o indiano, que pode ser ligado aos sistemas cross borders de outros países”, aponta.
Com a ressalva sobre a precocidade dos dados – que compõe o estudo em curso –, Coelho apresentou o volume de sanções sob Trump e sob Biden: enquanto durante a gestão republicana 216 chineses e 259 entidades chinesas foram afetados, na democrata, atingiu-se mais de 432 indivíduos e 412 entidades chineses. Em relação aos russos, sob Trump, foram 100 pessoas, e sob Biden, 171.
No governo Biden, também cresceram as pressões sobre pessoas ou entidades com relações com os países sancionados, em especial, Rússia e China. Coelho conta que em torno de 29% dos chineses foram incluídos na lista de sanções por terem realizado alguma operação com a Rússia. Também houve aumento expressivo de sanções contra empresas que atuam na área de semicondutores, supercomputadores e equipamentos para o complexo militar chinês.
(A cobertura segue em um próximo informe…)
* Clique aqui e assista ao seminário na íntegra *
* Tatiana Carlotti é repórter e atua na Comunicação do INCT-INEU. Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 19 dez. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook
e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.