Seminário internacional INCT-INEU 2024: as políticas do governo Biden e perspectivas I
Crédito: Tatiana Carlotti
Por Tatiana Carlotti* [INCT-INEU] [Seminário internacional] [Eleições 2024] [Trump 2.0]
O seminário “As eleições nos EUA e as políticas do Governo Biden: balanço e perspectivas”, promovido pelo INCT-INEU, entre 5 e 6 de dezembro, trouxe um panorama da vitória de Donald Trump este ano nos Estados Unidos e um balanço do governo Biden que, se não explica, pelo menos ajuda a entender a vitória do bilionário.
Nos textos anteriores, acompanhamos a reflexão dos pesquisadores do INEU sobre as eleições de novembro, seus jogadores e as regras do jogo. Agora, veremos um balanço dos anos Biden e aspectos das políticas econômica, imigratória e externa voltada para a classe média de seu governo. E, também, um panorama do impacto do trumpismo na desinstitucionalização do Partido Democrata.
Partido Republicano no Congresso
Pesquisador Flávio Contrera (UFGD)
O pesquisador Flávio Contrera (UFGD) apresentou um consolidado da vitória republicana nas eleições de novembro, expondo as principais ideias de um estudo em curso, desenvolvido com a professora Karina Pasquariello Mariano (UNESP) sobre o impacto do trumpismo na radicalização do Partido Republicano.
Eles enxergam o trumpismo não como uma causa da radicalização, mas como uma variável de um processo estrutural de realinhamento ideológico e de polarização que vem acontecendo desde os anos 1980. “Trump não radicalizou sozinho o Partido Republicano”, afirma Contrera, que investiga neste estudo o impacto do trumpismo na desinstitucionalização do partido.
O fato é que Trump não só venceu a eleição presidencial, como ganhou maioria na Câmara de Representantes e no Senado. A margem foi apertada, mas os republicanos terão maioria com 220 assentos ante os 215 dos democratas.
“Vai ter uma maioria estreita para governar”, diz, acrescentando que 2/3 dos congressistas republicanos eleitos neste ano chegaram ao Congresso depois de 2016, ou seja, “2/3 dos novos congressistas só conhecem o Partido Republicano sob a liderança de Trump”.
Uma liderança que vem provocando mudanças. Contrera e Mariano destacam um processo de desinstitucionalização do Partido Republicano. Nele, “a lealdade migra da organização para o líder (Trump)”, sendo “cobrada em vários aspectos da esfera partidária”.
Entre as causas desse processo, Contrera cita o deslocamento de políticas e valores históricos do partido, a ausência de uma avaliação crítica após a derrota em 2020, assim como de uma plataforma naquelas eleições, entre outros.
Confira a apresentação de Flávio Contrera (UFGD)
No Senado, ao contrário da Câmara, a maioria foi eleita antes de 2016. Trata-se, portanto, de parlamentares que “guardam uma institucionalidade maior do que a da Câmara dos Representantes”.
Os republicanos detêm maioria no Senado: 53 a 47. “Os membros eleitos não necessariamente estão alinhados com Trump numa composição que lhe garanta a maioria. Pelo menos quatro senadores não compõem o alinhamento”, avalia.
Entre os críticos do bilionário eleitos pelo Partido Republicano para o Senado, estão Bill Cassidy (Louisiana), Susan Collins (Maine), Todd Young (Indiana) e Lisa Murkowski (Alasca) e, entre os apoiadores, Rick Scott (Flórida) e Ted Cruz (Texas).
Na Câmara de Representantes, entre os críticos, constam David Valado (Califórnia) e Dan Newthouse (Washington). Entre os apoiadores, estão Matt Gaetz (Flórida), Lauren Boebert (Colorado) e Marjorie T. Greene (Geórgia).
Política econômica – a grande desconexão
Professor Leonardo Ramos explica o gráfico da geração de empregos nos Estados Unidos durante o governo Biden
Com gráficos e uma hipótese, que defende em conjunto com o professor Filipe Mendonça (UFU), o professor Leonardo Ramos (PUC-Minas) trouxe à tona a desconexão da subjetividade da população estadunidense em relação à economia e os dados e análises da realidade econômica.
Foram bilhões de dólares investidos em infraestrutura, ciência, transição energética e medidas contra a pandemia no governo Biden. De infraestrutura, por exemplo, foram US$ 550 bilhões investidos em estradas, transporte público, aeroportos, portos, Internet, energia… No caso da mitigação dos efeitos da pandemia da covid-19, o valor chegou a US$ 1,9 trilhão. E essas políticas começaram a apresentar dados positivos.
“Você tem um mercado de ações estadunidense em alta, o dólar forte nos mercados de câmbio, a economia em termos de PIB real crescendo a uma taxa mais ou menos de 2,5%, o desemprego em torno de 4,1%”, relata. Esses dados, no entanto, não foram percebidos pela população, sobretudo, na economia do dia a dia. Nesse sentido, Ramos mencionou uma pesquisa do Wall Street Journal, segundo a qual 62% do eleitorado considerava a economia “não muito boa” ou “ruim”.
Para entender essa desconexão, Mendonça e Ramos propõem três chaves. A primeira é o que a literatura chama de vibecession, “um declínio na sensação mesmo quando os dados econômicos das atividades comerciais e industriais estão relativamente ok”, descreve o professor.
Mas não é apenas isso. Apesar de Biden investir US$ 4 trilhões em energia limpa, por exemplo, “o setor produtivo equivale a 8% da força de trabalho nos Estados Unidos”, ou seja, “você não tem parte significativa da população americana tendo clareza dos impactos desses investimentos em sua vida diária”.
Outra chave é a inflação. Ramos explica que, “mesmo com o PIB real crescendo e os ativos financeiros em alta, o Índice de Preços dos Consumidores aumentou significativamente de Trump para Biden, desde a pandemia, em cerca de 20%. Em contraposição, o aumento médio dos salários não acompanhou a inflação até cerca de seis meses atrás. Os preços ainda estão 20% acima do nível pré-pandemia”.
Confira a apresentação de Leonardo Ramos (PUC-Minas)
Gás, energia, gasolina, compras de mercado, tudo aumentou. Com isso, a população que volta agora a ter renda, uma renda em 2024 mais ou menos equiparada com a renda de 2020, tem “a percepção do aumento dos preços”. Ramos também observa que estão fora do índice oficial de preços itens fundamentais, como os seguros e as taxas de hipotecas que “atingiram seu nível mais alto nos últimos 20 anos”.
“A própria desigualdade de renda aumentou, então, os ativos estão bem, o mercado de ações também, mas o dia a dia das pessoas, não”, salientou.
“Empregos que pagam melhor não têm crescido suficientemente”
A última chave trazida por Ramos e Mendonça é o desemprego. Embora baixo durante o governo Biden – estava em 3,4% (2023), e hoje, em 4,3% –, “parte fundamental do aumento líquido de empregos vem de trabalhos de meio período ou de serviços governamentais”.
Ramos explica que “o emprego em tempo integral, em setores produtivos que pagam melhor e oferecem algum tipo de carreira não tem crescido suficientemente”. Soma-se a isso a tendência de queda da geração de empregos. Outubro registrou a criação de apenas 12 mil vagas. Entre 2021 e 2024, houve queda do número de empregos e da qualidade dos novos postos.
Esses aspectos, segundo Ramos, evidenciam o “esgotamento de uma ordem política neoliberal, inclusive do neoliberalismo progressista do governo Biden”.
“Vê-se um esgotamento das condições de construção de hegemonia e de convencimento de que este modelo [Biden] estava criando formas distintas e superiores do que havia sido o governo anterior [Trump] para setor da classe trabalhadora, setor médio da sociedade americana”, aponta.
Ele conclui, lançando outro paradoxo: “Pode ser que, daqui a alguns anos, essas políticas, essas intervenções em infraestrutura comecem a dar resultados que poderão ser capitaneados pelo próprio Trump, como fruto de sua ação e intervenção econômica”.
Política externa de Biden e classe média: industrialização e competição com a China
Professora Neusa Maria Bojikian (Unicamp/INCT-INEU)
Na sequência, Neusa Maria Pereira Bojikian (Unicamp/INCT-INEU) trouxe um conceito norteador do governo Biden: o de política externa para a classe média, desenvolvido pelo conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan.
Classe média nos Estados Unidos é um conceito amplo. Inclui os mais pobres, a classe trabalhadora e o cidadão de baixíssima renda. Essa classe média abrangente, segundo Sullivan e os adeptos deste conceito, “teria sido abandonada nos processos de globalização e de internacionalização da década de 1990, inclusive pelo Partido Democrata”.
“Todas as iniciativas do governo Biden no âmbito externo seriam para trazer recursos para dentro e alívio para essa classe média esquecida no processo de globalização e de internacionalização”, afirma Bojikian, ao citar exemplos concretos como a Lei de Chips, voltada para garantir subsídios e aumentar a produção de semicondutores dentro do país; os investimentos e leis voltadas às energias renováveis.
Bojikian também menciona que, embora os Estados Unidos critiquem as nossas políticas de proteção do conteúdo nacional, eles priorizam os produtos e os fornecedores norte-americanos nos contratos federais do governo, fortalecendo a demanda doméstica. “É muita injeção de recursos”, observa.
Outro exemplo é a lei relacionada com as infraestruturas que obriga que o material usado nessas obras seja nacional, “gerando um alto índice de produção nacional”, reforça.
O fato é que a política comercial voltada para a classe média não foi sentida pela população, por vários motivos. “Primeiro, porque seu impacto é efetivamente demorado. Os resultados são de longo prazo, e os democratas não atenderam às expectativas da classe média. Questões geopolíticas, inflação, Guerra na Ucrânia, uma série de fatores criou condições adversas”, explicou Neusa.
Os chineses
Agora, com Trump, a expectativa é de uma revisão das barreiras tarifárias, que as relações sejam bilaterais e que se expandam as sanções tecnológicas contra a China. “Entre continuidade ou mudança, será um contínuo na política externa. Talvez mude a forma do discurso e do ataque, mas não a substância”, prospecta Bojikian.
Confira a apresentação de Neusa Maria Pereira Bojikian (Unicamp/INCT-INEU)
Ela lembra que Elon Musk, à frente do futuro Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês), tem como meta cortar US$ 2 trilhões do orçamento. “Diz que vai deixar o essencial, vai trabalhar com Inteligência Artificial. Limpar o Deep State”.
“A promessa é de uma grande desregulamentação na economia. E os agentes econômicos estão apoiando em massa. Eu pude sentir isso, falando com alguns economistas e representantes de institutos importantes durante meu período recente de pesquisa em Washington. A impressão é que eles ficaram felizes com os resultados – inclusive democratas de carteirinha disseram estar tranquilos”.
Enquanto isso, as pessoas acumulam três empregos. “Esse é o grau de precariedade”, conclui.
Cosmopolitismo cristão e política migratória
Professor Felipe Filomenos (Universidade de Maryland)
“Os Estados Unidos talvez sejam o país central em que a religião exerce mais influência sobre a política e a política sobre a religião”, afirma Felipe Filomeno, diretamente de Baltimore, onde leciona na Universidade de Maryland.
Segundo ele, 56% da população acredita em Deus tal como descrito na Bíblia, e 41% participam de solenidades religiosas (como ir à missa) pelo menos uma vez por mês. Na opinião pública, quando religião e política são discutidas, o foco é no cristianismo (religião majoritária) e no alinhamento de líderes de organizações e de movimentos cristãos conservadores com o Partido Republicano, sintetiza Filomeno.
“A ideologia desse alinhamento é a do nacionalismo cristão estadunidense que defende que as leis e políticas do país devem se basear na moral cristã, branca e conservadora”, descreve. Ele estima que 54% dos americanos que se identificam com os republicanos acreditam no nacionalismo cristão. “É uma força política significativa” e um dos indicadores mais fortes do sentimento nativista e xenofóbico.
Filomeno, no entanto, aponta a existência de uma outra vertente, a do cristianismo cosmopolita. “Muito pouco se conhece sobre a atuação de líderes, movimentos a favor de uma política de imigração mais permissiva no controle da imigração e mais generosa nos direitos concedidos por imigrantes”, observa.
Não faltam, porém, exemplos dessa atuação, e ele apresentou dois deles. O primeiro é a ação de entidades religiosas, como a da Confederação dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, que se levantaram contra a manutenção, durante o início do governo Biden, da restrição da admissão de refugiados implementada na gestão de Donald Trump. De seu antecessor, Biden havia mantido a restrição de entrada de até 15 mil refugiados por ano. Com a reação dessas entidades e a pressão da mídia, o governo Biden aumentou o teto para 62,5 mil pessoas e, nos anos seguintes, para 125 mil por ano.
No segundo exemplo, o pesquisador lembra que o presidente também restaurou uma política de apoio ao desenvolvimento da América Central como uma estratégia de contenção da imigração no longo prazo, especialmente de El Salvador, Honduras e Guatemala, executada por sua vice, Kamala Harris. Os investimentos giraram em torno de US$ 1 bilhão por ano, distribuídos no decorrer de quatro anos, para apoiar geração de emprego, melhorar a educação, a capacidade das indústrias locais de enfrentamento da mudança climática, entre outras medidas.
Confira a apresentação de Felipe Filomeno (University of Maryland-Baltimore)
A proposta, relata Filomeno, “foi muito bem recebida por organizações cristãs”, e as igrejas pediram atuação nestes esforços. Nestes dois casos, “as organizações cristãs participam tanto da formulação como da implementação de políticas de imigração do governo nos Estados Unidos”.
Perspectivas com Trump
“Propostas de deportação em massa, redução do número de vistos de trabalho, encolhimento drástico do Programa Federal de Refugiados, que significa a redução dos canais legais para a imigração do país, revisão da naturalização sob suspeita de fraudes, proposta de fim de aquisição da cidadania por nascimento nos EUA, recusa de concessão de green card para imigrantes considerados ônus por terem baixa renda…”.
As medidas acima, citadas por Filomeno, são aguardadas com o retorno de Trump. Em 6 de novembro, um dia após as eleições, a luterana Global Refuge e a anglicana World Relief circularam pedidos de doação para impedir o desmantelamento do programa de refugiados por parte de Trump. Dias depois, a Confederação dos Bispos Católicos dos Estados Unidos emitiu uma nota pública, defendendo a concessão de cidadania para os imigrantes que vivem no país há muito tempo, a legalização dos imigrantes levados ainda crianças para os Estados Unidos e o acolhimento dos refugiados.
“Os próximos quatro anos serão de muita tensão para os que estão no exterior ou sonham com um visto para migrar, mas eles terão como aliados os líderes do cristianismo cosmopolita nos Estados Unidos”, ressalta.
(A cobertura continua…)
* Clique aqui e assista ao seminário na íntegra *
* Tatiana Carlotti é repórter e atua na Comunicação do INCT-INEU. Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 16 dez. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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