Seminário internacional INCT-INEU 2024: os jogadores e as regras do jogo
Crédito: Tatiana Carlotti
Por Tatiana Carlotti* [INCT-INEU] [Seminário internacional] [Eleições 2024] [Trump 2.0]
É de praxe. Todos os anos, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) encerra suas atividades com um grande encontro entre os seus pesquisadores e de outras universidades para debater a potência global.
Neste ano, não poderia ser diferente. Em meio à vitória acachapante de Donald Trump e a contundente derrota democrata, as perspectivas das eleições de novembro e o balanço dos quatro anos de Joe Biden estiveram no centro das discussões do seminário internacional “As eleições nos Estados Unidos e as Políticas do Governo Biden: balanço e perspectivas”.
Ocorrido entre os dias 5 e 6 de dezembro, no prédio da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na Praça da Sé, em São Paulo, o encontro também marca a transformação da rede que agrega mais de 100 pesquisadores especializados em Estados Unidos. A partir de 2025, o INCT-INEU entrará em sua terceira fase e disputará, com uma proposta de renovação, um edital em curso.
Na abertura do evento, com o sentimento de tarefa cumprida, o coordenador do INCT INEU, professor Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp), destacou o legado da rede.
“Encerrando esta segunda etapa do INEU, nós deixamos como legado uma reflexão coletiva documentada e expressa em trabalhos que cobrem as transformações da política americana neste período de tanta importância para os Estados Unidos e para o mundo”.
Velasco enfatizou a coleção de livros do INCT-INEU, publicados pela Editora Unesp como síntese das reflexões ocorridas nestes seminários e, de forma mais sistemática, a partir do seminário de 2016, também ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Esses livros reúnem análises dos pesquisadores da Rede e de pesquisadores convidados e trazem, em seu conjunto, um retrato dos Estados Unidos hoje. São eles: Trump: Primeiro Tempo: partidos, políticas, eleições e perspectivas, De Trump a Biden, partidos políticos, eleições e perspectivas e Tempos Difíceis: o primeiro governo Biden e as eleições de meio de mandato.
“Esta reflexão coletiva está expressa aqui – e ele ergueu um dos livros – e neste seminário, novamente, com uma vitória de Trump e com todas as interrogações que este fato suscita. Estamos cientes da importância do momento para o mundo e para a humanidade, mas certos de que, apesar de todas as tensões e problemas, os Estados Unidos continuarão onde estão. Haverá outras eleições e, certamente, numa terceira etapa do INCT INEU, nós teremos outros seminários como este, e a reflexão continuará”, concluiu Velasco.
Além dos livros, as análises e reflexões dos pesquisadores da rede estão disseminadas em uma série de canais de difusão acadêmica do INCT-INEU e parceiros da rede, como os sites Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e Latino Observatory, e o programa de entrevistas Diálogos INEU.
Os jogadores e as regras do jogo
O Partido Democrata
Acesse aqui a íntegra da exposição da professora Camila Vidal
Abrindo os debates do dia, a professora Camila Vidal (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) trouxe a dimensão do revés sofrido pelo Partido Democrata. Além da derrota na eleição presidencial por uma diferença de cinco milhões de votos, os democratas perderam o controle tanto da Câmara dos Representantes (Deputados, 215 contra 220) quanto do Senado (47 contra 53).
Em relação às últimas eleições, eles perderam 12 milhões de votos. A queda se manifesta em todos os segmentos da sociedade. Entre as mulheres, por exemplo, Harris obteve 10% a mais de votos que Trump nas urnas, mas perdeu 3% das urnas em comparação com 2020. Entre as latinas, os republicanos dobraram os votos.
Para entender o fenômeno em sua complexidade, ao recorte de gênero, Vidal acrescentou o de classe: Harris obteve 53,5% dos votos das mulheres com educação universitária, urbanas e pertencentes à classe média alta. Já entre as trabalhadoras sem ensino universitário, a adesão a Trump foi de 64%.
A isso se somam o aumento da pobreza e a elevação dos preços sofrida durante o governo Joe Biden. Ela destaca um aumento de 60% da pobreza no país, devido à inflação, à estagnação dos salários e ao fim dos benefícios associados à pandemia da covid-19.
Atualmente, conta Vidal, cerca de 13,5 % da população dos Estados Unidos se encontra na pobreza, o correspondente a 47 milhões de pessoas, ou um a cada sete lares no país. A inflação acumulada chegou a 17,4%, o que elevou em 25% o valor dos alimentos; em 45%, o da gasolina; em 31%, o da eletricidade; e em 43%, a moradia.
Foi este o cenário dos eleitores estadunidenses naquele 5 de novembro. Pelo menos 45% afirmaram estar em piores condições hoje do que estavam em 2020; e 70% da população dizia não estar satisfeita com os Estados Unidos, detalha a pesquisadora.
Camila Vidal destrincha a composição ideológica do Partido Democrata. Progressistas representam 101 ante 112 do establishment que manda no partido
Enquanto isso, nas entranhas do Partido Democrata, o establishment continua vencendo os progressistas.
A ala progressista da legenda é composta por 101 congressistas. Eles pertencem ao Congressional Progressive Caucus, que abriga dois grupos mais à esquerda: o Squad e os parlamentares democratas ligados a Bernie Sanders, senador independente por Vermont (I-VT), detalha Vidal.
Já as forças do establishment “pró-mercado” do Partido Democrata contam com 112 congressistas: 100 da New Democrat Coalition, e 12, da Blue Dog Coalition. A pesquisadora, que em 2020 antecipava a derrota democrata, acredita ser pouco provável uma guinada progressista entre os Democratas.
Este é o cenário em que se deram as eleições de novembro. Enquanto os democratas responderam a sociedade americana com temas como direitos reprodutivos, imigração, racismo, com pautas dirigidas em busca do voto das mulheres, dos latinos e dos negros, observa Vidal, os republicanos ser concentraram na questão econômica e conversaram com a classe trabalhadora.
Make America Great Again
Assista à integra da exposição do professor André Kaysel
“Camila mostrou como o Partido Democrata é um partido que vai da esquerda ao centro direita. Agora, nós vamos concluir que o outro partido do sistema político norte-americano [o Republicano] é de extrema direita”, afirmou o professor André Kaysel (Unicamp) em sua exposição sobre o MAGA.
MAGA (Make American Great Again) não é um slogan, ele “veio para ficar”. “É um movimento de massas, com organização de base difusa e muita capilaridade. Nós temos uma extrema direita com base de massas e capacidade de disputa pela hegemonia na sociedade norte-americana. É um fenômeno resiliente que agora retoma o poder”, sintetizou.
Na tela, André Kaysel (Unicamp) e Camila Vidal (UFSC)
Em artigo com Álvaro Bianchi, ele vem trabalhando a noção da extrema direita como uma coalizão discursiva de extrema direita, uma família de diferenças que permanece unida em torno de um objetivo comum e de um discurso “anti”: anticomunismo, antifeminismo, antidemocracia, anti-imigrantes, exemplificou.
Em relação às eleições, ele avalia que, enquanto os democratas foram capturados pela lógica das diferenças, respondendo às demandas dos segmentos populacionais; os republicanos trabalham “com a lógica da equivalência”, a partir de um “nós” e um “eles”, “insiders e outsiders, o que é América, e o que não é”.
Essa família de diferenças reúne as mais variadas tradições, como o ultraliberalismo, no plano econômico, e o fundamentalismo cristão e judaico, no religioso. Esse “conjunto de correntes ideológicas estabelecem outras coalizões, e assim eles organizam o campo da extrema direita”.
Kaysel analisa a vitória da extrema direita trumpista e a débâcle do centrismo democrata como evidências de que “a democracia liberal hoje não é a solução para o problema da ascensão da extrema direita, ela é parte do problema”.
“São os limites deste sistema político, em suas articulações com o capitalismo contemporâneo, inclusive para prover um horizonte de futuros para as maiorias sociais, que está alimentando a extrema direita e corroendo este sistema por dentro”, alerta o professor .
EUA: Cultura política em transição
Confira a íntegra da exposição do professor Wayne Selcher
Cultura política não é o mesmo que opinião pública. Opinião pública está relacionada com a “atualidade mais palpitante” e os “atores políticos”. Já cultura política se refere às nossas “percepções, normas, entendimentos, identidades e padrões mais arraigados, amplos e profundos”.
E esta cultura política está mudando nos Estados Unidos, “para uma direção nada positiva”, avalia o professor Wayne A. Selcher (Elizabethtown College, PA, EUA). Enfatizando as transformações em curso na potência mundial, ele abordou os principais pontos de seu artigo “American Political Culture in Transition: The Erosion of Consensus and Democratic Norms”, publicado no OPEU.
Professor Wayne Selcher (Elizabethtown College, Pensilvânia, EUA)
Ainda que em transformação, a cultura política estadunidense é “bem mais conservadora do que a cultura política de outras democracias ocidentais”, afirma o professor Wayne. “É marcada por um forte individualismo, e sua defesa das liberdades se restringe às liberdades individuais, há pouco apoio ao socialismo em geral”.
Estados como Flórida, Texas e Geórgia estão ficando mais conservadores e, de modo geral, os republicanos estão crescendo mais, e os democratas, menos, tanto “em termos de identificação, quanto em números no registro eleitoral”, detalha.
Em meio a isso, a população se encontra sob forte polarização política e sob crescente desconfiança das instituições. O sentimento geral é que “não existe um Estado de Direito objetivo ou isento, mas que tudo é partidário, incluindo os tribunais”, conta.
Para Selcher, “Trump está empurrando muito a ideia de que tudo é político e partidário (…) Ele sentiu essa desconfiança e a usou como motor gerador das suas campanhas políticas”.
“Trump se diz conservador, mas é autoritário, populista, disruptor, altamente narcisista e antiliberal, demagogo, direitista, mas ele se faz passar por e é aceito pelos republicanos como se fosse conservador. Não é”, ressalta.
E sintetiza: “para entender Trump, você precisa entender o narcisismo. O dele vai muito além do egoísmo. É tão forte que rege quase tudo o que ele faz. Os dirigentes no exterior sabiam que era preciso lisonjeá-lo, agradecer pela presença de seu país, louvar e tal… para conseguir o que quisessem dele”.
Suprema Corte Conservadora: proteção judicial e perspectivas para o novo governo Trump
Em meio a tantos processos e a uma condenação, Donald Trump encontrou nas urnas a legitimação popular, mas isso não ocorreria se o presidente eleito dos Estados Unidos não tivesse obtido imunidade na Suprema Corte, órgão que vem promovendo um esvaziamento da Lei de Direitos de Voto no país, conforme observa a professora Celly Cook (Unicamp).
“Alguns estados se precaveram e reforçaram suas leis de direitos de voto”, outros fortaleceram ‘regras superdraconianas’ que impediam ou dificultavam as pessoas de se cadastrarem para votar. Desde 2010, diz Cook, a Suprema Corte vem esvaziando a Lei de Direitos de Votos no país.
Durante a pandemia, ela conta, a Suprema Corte chegou a negar a mudança de uma regra eleitoral, pedida pela Corte estadual, para aumentar os dias de votação e, assim, garantir a participação das pessoas. Foi negado. No Arizona, aconteceram 40 mil “des” registros de eleitores, ela detalha.
Segundo vários artigos na imprensa estadunidense, comenta Celly, “o grande escândalo dessa eleição foi ele ter podido concorrer. Ele sofria quatro processos, dois estaduais, dois federais, tinha condenação inclusive”. A Suprema Corte, no entanto, garantiu a Trump “uma imunidade que é até assustadora”. A decisão “tem mais de 100 páginas, e a imunidade não teria um limite, independentemente do crime que ele cometesse. É o fim das proteções federais”, analisa.
Pesquisadora Celly Cook (Unicamp)
Em sua avaliação, “essa Suprema Corte e as decisões eleitorais de deixar os estados fazerem o que quiserem são consequência de uma mudança profunda ocasionada por Trump no Judiciário Federal durante seu primeiro mandato”.
Trump “ocupou muito as cortes de apelação” e cortes de tradicional maioria democrata. Ele conseguiu reverter e “mudou o caráter da Suprema Corte, inserindo três juízes. Foi essa Suprema Corte que garantiu o esvaziamento da Lei de Direitos de Votos e derrubou jurisprudências importantes”, aponta.
Cook também destacou o legado do governo Biden no Judiciário. Apesar de chegar na Presidência pressionando por mudanças na Corte, Biden foi mais modesto do que Trump: foram 200 nomeações para cortes distritais, 40 para as de apelação e 160 nas distritais. Ele também “seguiu à risca a ideia de diversidade”, observa Cook, escolhendo pessoas relacionadas aos movimentos e organizações da sociedade civil.
A partir de agora, prospecta, o futuro não será fácil, e ela cita o exemplo de um projeto em curso: o Article III Project (A3P), fundado por Mike Davis, com foco no Judiciário Federal.
O projeto tem como missão impedir qualquer tentativa judicial que venha dos democratas. Não importa se a lei for razoável ou de interesse nacional. A linguagem desse grupo é a da guerra jurídica, embora eles usem as ideias da Constituição, do Estado de Direito e da separação de poderes.
(A cobertura continua…)
* Clique aqui e assista ao seminário na íntegra *
* Tatiana Carlotti é repórter e atua na Comunicação do INCT-INEU. Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 11 dez. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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