Em meio a tensões geopolíticas, como os EUA pensam em conter o fantasma da ameaça militar chinesa
Soldados dos EUA durante exercício no Centro de Treinamento de Prontidão Conjunta, em Fort Johnson, Louisiana (Crédito: Army Spc. Isaiah Mount/Departamento da Defesa dos EUA)
Em mais um artigo da série sobre o Project 2025 — também conhecido como Projeto de Transição Presidencial —, a equipe de pesquisadores do Observatório Político dos EUA (OPEU) aborda os planos do futuro governo conservador norte-americano na área da Defesa, historicamente um dos principais domínios de projeção de poder global dos EUA. Com a transformação geopolítica mundial dos últimos anos, novos atores surgiram nesse cenário e, com eles, novos desafios. Ainda assim, a coalizão conservadora defensora de uma América que não existe mais continua a pensar na sua política externa nos moldes intervencionistas da década de 1970.
Por Yasmin Reis, Vitoria Zambiazzi e Tatiana Teixeira, para The Conversation Brasil* [Republicação] [Project 2025] [Trump 2.0] [Defesa] [China] [Heritage Foundation]
Uma análise do Project 2025 à luz das políticas externa e de defesa por ele propostos identifica um saudosismo frente à derrota da União Soviética e à Guerra Fria da era Ronald Reagan. Isso significa que a luta pelo status quo e pela manutenção da hegemonia dos Estados Unidos se mantém nos planos do futuro governo Trump ante os novos desafios da contemporaneidade, que tem a expansão militar chinesa como principal ameaça para os planos dos EUA.
Apesar de valorizar esse passado, do qual os cidadãos estadunidenses conservadores se orgulham, o Project 2025 já identifica e ressalta que a indústria bélica do país está em declínio constante. Em razão disso, defende o aumento significativo de investimentos no setor, com o objetivo de reduzir a dependência tecnológica da cadeia de suprimentos globais. A execução de uma política como essa significaria reforçar uma realidade que assombra parte da sociedade estadunidense: a de que as despesas militares superam os gastos em bem-estar social no país.
Vale destacar, porém, que publicamente o futuro presidente Trump endossa o argumento contrário ao envolvimento dos EUA em conflitos externos, sob o slogan político America First e, sobretudo, da proteção da economia. Em vista disso, o manual tenta reconquistar o imaginário dos aliados políticos acionando a narrativa dos “Pais Fundadores” do país, como George Washington. O primeiro presidente dos EUA alertava sobre as preocupações que deveriam permear a nação antes de adentrar em uma guerra no exterior: dinheiro e derramamento de sangue de cidadãos estadunidenses.
Nos últimos anos, porém, os EUA foram na contramão dos conselhos de George Washington, com uma longa presença no Afeganistão e uma saída desastrosa do país durante o governo de Joe Biden, por exemplo.
Com o objetivo de resgatar a premissa defendida por George Washington, o manual apresenta como prioridades:
(1) Restabelecer uma cultura de responsabilidade de comando, não politização e foco no combate;
(2) Transformar as forças armadas para obter a máxima eficácia em uma era de competição entre grandes potências;
(3) Fornecer o apoio necessário às operações de proteção de fronteiras do Departamento de Segurança Interna (DHS, sigla em inglês). A proteção das fronteiras é uma questão de segurança nacional, portanto, deve mobilizar esforços conjuntos do Executivo, o que também ajudará a alimentar o complexo industrial-militar; e
(4) Exigir transparência financeira e prestação de contas do Departamento de Defesa, visando a aprimorar as forças armadas e as organizações civis que os apoiam e supervisionam.
A ameaça chinesa
Uma das promessas do projeto se caracteriza como a defesa das fronteiras e a necessidade de adquirir uma postura mais punitivista em relação às ameaças globais, afirmando que o ideal wilsoniano pautado no internacionalismo liberal se espalhou no país “como um câncer que desuniu o povo”. Isso se reflete, como resultado, nas estratégias de política externa do novo mandato de Donald Trump.
Com uma tendência unilateral e isolacionista, o país se afastará de discussões multilaterais, o que afetará sua relação com os países fronteiriços México e Canadá, por exemplo. Além disso, a gestão também adotará uma estratégia central de maior responsabilização de seus países aliados, delegando a estes uma atuação mais assertiva sem tanta dependência estadunidense — como já viu e deve voltar a acontecer no caso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A globalização é citada como também catalisadora do enriquecimento e do fortalecimento da China no cenário internacional, colocando o país em uma posição central de ameaça à segurança, liberdade e prosperidade dos Estados Unidos. Nesse contexto, o conteúdo do documento ressalta que a prioridade da política externa e de defesa estadunidense deve ser impedir o crescimento da China como potência global e manter o status quo hegemônico dos EUA.
Com o objetivo de contrapor a atuação chinesa, o manual defende a urgência de revitalizar, adaptar e aumentar seu arsenal nuclear e expandir investimentos em defesa antimíssil, argumentando que a necessidade de modernização e de expansão desses setores é efeito da exposição estadunidense ante um possível cenário de coerção nuclear e de ameaças de mísseis por parte de Rússia e China.
Outra questão pontuada como crucial para a manutenção da hegemonia estadunidense é a disputa de influência sobre Taiwan. O projeto indica a necessidade do planejamento de defesa com foco em dificultar a subordinação de Taiwan, ou de outros aliados dos EUA na Ásia, à China. Caso contrário, será afetado o acesso do país ao mercado mais importante do mundo.
Mapa de Taiwan e China
Qual o papel da mídia?
Outra estratégia citada como importante no âmbito externo é a reestruturação da Agência dos Estados Unidos para Mídia Global (USAGM). Diferentemente do aspecto prático militar, o papel da Agência é legitimar a agenda de defesa do país, por meio da disseminação de valores e de discursos que relegam aos Estados Unidos o papel de promotor da liberdade e da democracia em nível mundial. Assim, o objetivo da mídia converge com o projeto de reassegurar ao país seu papel de “Arsenal da Democracia”.
A Agência supervisiona duas redes de notícias governamentais: a Voz da América (VOA) e o Gabinete de Radiodifusão de Cuba (OCB), além de constar como financiadora de inúmeras outras organizações de notícia multimídias que vão da Europa ao Oriente Médio e Ásia. De acordo com o manual, o objetivo da Agência é importante, mas a execução precisa de reformas, que dizem respeito a problemas operacionais e ao uso indevido de recursos.
Tais deficiências estariam corroborando e contribuindo diretamente para que as organizações da agência se juntem ao discurso antiestadunidense que o manual afirma existir dentro da mídia mainstream. Na perspectiva dos membros do Project 2025, os veículos da imprensa “liberal”, que seria ligada ao establishment político, difamam a história estadunidense em nome da independência jornalística.
Com efeito, o Project 2025 tem como intenção o resgate da supremacia dos valores estadunidenses em um mundo no qual a ordem liberal inaugurada pelos EUA está em constante declínio.
* Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU nas áreas de Segurança e Defesa, e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
Vitória Moreira Zambiazzi é graduada em Relações Internacionais pela UFSC e vinculada ao grupo de pesquisa da UFSC sobre Coerção e Consenso: a política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Contato: vitoriaazambiazzi@gmail.com.
Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: professoratatianateixeira@outlook.com.
** Publicado originalmente no site The Conversation Brasil, em 20 dez. 2024. Republicado com a autorização das autoras e do referido site. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: professoratatianateixeira@outlook.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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