A ameaça de Trump ao BRICS
Postagem de Trump sobre BRICS (Fonte: Poder360)
Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU] [BRICS] [Dólar] [Trump 2.0]
O presidente eleito Donald Trump proferiu uma espalhafatosa sentença na rede social Truth Social, no último 30/11, bem ao seu estilo: “Exigimos que esses países se comprometam a não criar uma nova moeda do BRICS nem apoiar qualquer outra moeda que substitua o poderoso dólar americano, caso contrário, eles sofrerão 100% de tarifas e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia norte-americana”.
É difícil saber o que Trump realmente pretendeu com essa altissonante advertência, pois é evidente que o BRICS não fará o que ele exige. A corrosão do prestígio do dólar como moeda internacional resulta de um processo, e esse processo não será interrompido à base de berros.
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Ao longo da história, o povo dos Estados Unidos foi formando uma determinada imagem de seu país, que o coloca como diferente de todos os demais. Primeiramente, foi a ideia de Destino Manifesto. Depois, veio a ideia de Excepcionalismo Americano, até chegar à de “nação indispensável”. Inicialmente, os ideólogos norte-americanos glorificavam a obra da construção da sociedade e da expansão territorial. Exaltava-se as virtudes do povo e a boa vontade de Deus para com ele. Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, a ideia sofreu importante transformação. A partir de então, os norte-americanos se convenceram de que estavam destinados a governar o mundo, impondo seus valores e suas instituições. Caso não realizassem essa tarefa, o mundo continuaria caótico e envolto em guerras intermináveis.
A Conferência de Bretton Woods se constituiu como mecanismo-chave para a realização da ideia de os Estados Unidos dirigirem o mundo. Para Franklin D. Roosevelt, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial foram consequências previsíveis da omissão norte-americana em relação ao destino do mundo. Fazia-se necessária, portanto, a liquidação do Império Britânico e a subjugação econômica da Grã-Bretanha. O projeto se consumou com a criação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e com a substituição da libra esterlina pelo dólar norte-americano como moeda das instituições internacionais. Estabeleceu-se a paridade dólar-ouro e as demais moedas fixaram seu valor em relação ao dólar. Enfim, o dólar não se tornou moeda internacional por qualidades intrínsecas, mas sim por ser o mais importante instrumento da hegemonia dos EUA. Porém, como afirmou o historiador britânico Paul Kennedy, ,as hegemonias não são eternas. Elas têm início e fim.
O questionamento da hegemonia dos Estados Unidos não é coisa recente. Foi com a formação do BRICS, em 2006, que esse questionamento assumiu contornos bem definidos. Visto inicialmente como criação do economista britânico da empresa financeira Goldman Sachs Jim O Neill, o BRICS, além do grupo fundador formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, reúne mais cinco países fixos e 13 países associados. Essa reunião representa 45,2% da população mundial e 31,5% da produção mundial de riquezas.
Esse questionamento da hegemonia dos Estados Unidos não se apresenta como afronta nem como desafio. Os Estados Unidos não estão sendo convidados para travar uma guerra. O questionamento deve ser entendido como consequência do desenvolvimento dos grandes países periféricos que, por assim dizer, alimentam a mesma expectativa de verem reconhecidos seus valores, suas crenças, suas culturas, sua capacidade de contribuir para o bem-estar da humanidade e suas formas específicas de organização política.
Em virtude do fundamental papel que exerce como instrumento da hegemonia, a corrosão do poder da moeda corresponde à corrosão do poder político da potência hegemônica. Por isso, os berros de Trump não serão capazes de evitar esse declínio. O uso de outras moedas nas transações econômicas internacionais, especialmente as transações comerciais, não apenas vão continuar a ocorrer, como deverão mesmo se intensificar. E Trump sabe muito bem disso. Moedas como o iene japonês, a libra inglesa e o euro europeu são correntemente usados, e os governantes norte-americanos nunca ameaçaram seus aliados por usarem essas moedas. O que está em jogo, Trump e seus sócios sabem muito bem disso, é que as transações em outras moedas feitas pelos países do BRICS e a ideia de criação de uma moeda própria por esse grupo adquirem sentido muito diferente.
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Como já foi observado acima, trata-se de um processo. No interior do BRICS mesmo há divergências. É possível identificar um núcleo duro, formado por Rússia e China, que alimentam objetivos nacionais bem objetivos, e um trio, formado por Brasil, Índia e África do Sul, que abrigam elites que resistem muito a assumirem medidas que, de alguma forma, possam contrariar os interesses dos Estados Unidos. Esse trio usufrui dos benefícios obtidos pela sua vinculação ao Sul Global, porém temem uma ordem internacional em que os Estados Unidos deixarão de estar em uma posição central e passarão à condição de uma potência atlântica, obrigada a negociar seus interesses com todos os demais seus interesses.
Posto isso, é fácil concluir que os berros de Trump são muito mais dirigidos às elites pró-norte-americanas dos países que compõem o BRICS, do que ao núcleo duro do grupo. É aos hesitantes que ele faz sua ameaça. Ainda assim, uma ameaça, essa de elevar a 100% as tarifas comerciais a todos os que deixarem de usar o dólar em suas transações comerciais, que somente acelerará o declínio, jamais reverterá o processo.
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* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023) e O realismo da fraternidade: as relações Brasil-Portugal no governo Kubitschek (Funag, 2024).
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 2 dez. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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