Segredos dos bastidores nos últimos dias da campanha democrata
Arte do evento oficial do Partido Democrata do Distrito de Colúmbia mostra Kamala Harris ao lado da cantora britânica Charli xcx, no tom de verde ácido da capa do seu álbum mais recente, Brat (Crédito: DC Democratic Party/Mobilize)
Série “Relatos de Washington”
Por Lucas Amorim* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Kamala Harris] [Série] [Relatos de Washington]
Há algumas semanas, um colega soou um alerta falso: havia vários ônibus levando interessados em assistir a um vindouro comício de Kamala Harris na Filadélfia, Pensilvânia. Apesar de, posteriormente, termos tido a oportunidade de assistir ao discurso da vice-presidente em Washington, o ônibus do qual o amigo falara era para levar voluntários para bater de porta em porta, uma atividade comum nas campanhas estadunidenses, conhecida como canvassing. Ainda que não correspondesse ao originalmente anunciado, pedi que ele me enviasse o link, que deixei salvo em algum lugar no meu celular.
À medida que foi ficando evidente que a campanha rumo à Casa Branca inevitavelmente passaria pela Pensilvânia — e esgotadas outras possibilidades de ir até o estado-pêndulo antes das eleições —, ir a campo com a campanha democrata se tornou a única alternativa.
Inscrevi-me em um dos formulários que encontrei no site da seção do Distrito de Colúmbia do Partido Democrata. Desenhada para atrair jovens da Geração Z, a capa do evento reproduzia o verde-limão e a fonte Arial da capa do álbum Brat da britânica Charli xcx, retratada ao lado de Kamala. Pouco tempo após me cadastrar, recebi um e-mail da campanha democrata me instruindo a fazer um treinamento virtual para me preparar para o contato corpo a corpo com os eleitores. Adicionei a data na agenda e esqueci do assunto por alguns dias.
***
O fim de tarde estava surpreendentemente quente para o final de outubro, afinal o outono já havia começado há um mês. Ebulição global, veio o pensamento sem convite. Passei um café, o medium roast da marca própria do Trader Joe’s, na prensa francesa. Tomei um gole com reprovação. Desde que cheguei a este país, nunca tinha conseguido fazer uma xícara de café que agradasse minhas papilas acostumadas ao cafezinho das Minas Gerais, apesar de tentar diversos métodos e marcas do pó. Calcei o tênis, andei um quarteirão até a estação de aluguel de bicicletas compartilhadas da Capital Bikeshare. Escaneei o QR code para liberar a magrela que iria utilizar aquele dia e pedalei meio sem rumo.
Opções de café da marca Trader Joe’s (Fonte: The Daily Meal)
Algum tempo depois, uma mensagem enviada pelo Partido Democrata no celular me alertou que o treinamento começaria em 15 minutos. Eu tinha esquecido completamente. Ajustei o curso de volta para casa e acelerei para não me atrasar. Após lutar para devolver a bicicleta que teimava em não encaixar no dock, corri para casa e subi os dois lances de escada para chegar ao meu quarto. Como vi que ainda dispunha de alguns minutos, ajeitei o cabelo, caso fosse preciso aparecer com a câmera ligada. Sentei-me, ajeitei o celular apoiado na tela do notebook e cliquei no link do Zoom recebido pela mensagem. Eram exatas 19h30 locais (18h30 em Brasília), hora marcada para o início da chamada.
Àquela altura, 300 pessoas estavam na chamada, mas o número crescia com velocidade surpreendente. 400. 500. 600. O número estabilizou quando alcançou espantosos 730 presentes. A essa altura, o instrutor que conduzia o evento pediu que os presentes indicassem no chat de qual parte dos Estados Unidos estavam conectados. Nova York, disse alguém. Boston, afirmou outro presente. DC. Alexandria. Pululavam as notificações na tela. NoVa, ou seja, a região Norte da Virgínia, acessível de metrô da capital federal. Maryland. A Pensilvânia estava destinada a ser ocupada em um movimento de pinça dos “invasores” amigáveis das regiões mais solidamente democratas ao norte e ao sul.
Após esse reconhecimento inicial do público, Ajay (pseudônimo) se apresentou e mencionou seus pronomes — he/him —, indicando preferência pelo tratamento no masculino. Falou um pouco sobre o motivo de apoiar a candidatura, mencionando que era um jovem queer filho de imigrantes sul-asiáticos e considerava os direitos fundamentais as questões mais importantes em jogo na eleição, mencionando especificamente os da população LGBT+ e das mulheres.
Em uma breve introdução, falou de como, a seis dias da eleição, várias pessoas no país já haviam votado. Usou o termo neck-and-neck, recorrendo a uma metáfora das corridas de cavalo, para descrever o quão acirrada estava a corrida na reta final. Para reforçar seu argumento, apresentou um infográfico do site 270towin, que mostrava em azul os estados solidamente democratas; em vermelho, os republicanos; e os battleground states, essenciais para a vitória de qualquer um dos candidatos, em bege.
Mapa do site 270towin com números ainda em curso da eleição presidencial de 2024. Última atualização em 5 nov. (Fonte: 270towin)
Nessa última cor mais neutra, encontravam-se os estados de Geórgia, Carolina do Norte, Arizona, Nevada, Michigan, Minnesota e Pensilvânia. No entanto, reforçou que, de todos, a Pensilvânia, com seus 19 votos no Colégio Eleitoral, era de longe o mais importante. O democrata não poupou palavras: sem o estado do Cinturão da Ferrugem não havia chance de vitória.
“É por isso que esse esforço de bater de porta em porta na Pensilvânia é de suma importância”, explicou. “Conversar diretamente com os eleitores é a forma mais eficaz de influenciar o voto nessas eleições”. Um gráfico foi apresentado, segundo o qual a campanha de porta em porta tinha 10% de chance de influenciar o comportamento do eleitor, enquanto ligações telefônicas e mensagens de texto tinham apenas 4% e 1,4% de ter o mesmo resultado, respectivamente.
A estratégia democrata foi definida, de forma otimista, como dividindo-se em três esforços: garantir que a coalizão que elegeu Biden fosse às urnas; convencer eleitores que não votaram em Biden, mas elegeram democratas desde então a votar em Kamala; e abordar os eleitores indecisos.
Tratou-se de algumas especificidades da Pensilvânia, como a prioridade em manter Bob Casey no Senado; alguns cargos eletivos estaduais, como procurador-geral, tesoureiro e auditor, e outras corridas importantes nos Legislativos estadual e federal. Àquela altura, já não era mais possível solicitar nem enviar uma cédula para voto por correio, mas ainda dava para comparecer a um ponto de votação para entregá-la pessoalmente ou votar no dia da eleição, 5 de novembro.
Montagens com screenshots tirados durante o treinamento oferecido pelo Partido Democrata da Pensilvânia para os interessados em fazer campanha porta a porta no estado, 30 out. 2024 (Créditos: Lucas Amorim/ Arquivo Pessoal)
Após essa exposição inicial, passamos para a segunda etapa do treinamento: roteirizar e ensaiar as interações com os eleitores. Em todas as ocasiões deveríamos nos identificar como membros da campanha de Kamala Harris e logo informar que a conversa era sobre as eleições. Uma questão merecia consideração especial: ter certeza de que estávamos falando com a pessoa correta, visto que a campanha antecipava muitas residências com pessoas com posicionamento político diferente, especialmente tendo em vista a clivagem de gênero.
A primeira situação ensaiada seria com uma pessoa que demonstrasse apoio à candidata democrata. Nesse caso, o esforço deveria ser feito no sentido de garantir que o eleitor tivesse um plano para votar. A ideia era de que, se o eleitor verbalizasse esse plano para alguém, seria mais provável que ele fosse executado. “É uma espécie de minicontrato social”, afirmou o instrutor.
Ajay chamou uma colega vinculada à campanha para simular a conversa como eleitora democrata. Passaram por uma breve introdução, na qual ele se apresentou como membro da campanha democrata para eleger Kamala Harris e perguntou em quem ela pretendia votar. Após a resposta — Kamala — a conversa seguiu o roteiro descrito anteriormente:
— Você já votou de forma antecipada ou por correio? — perguntou ele.
— Ainda não. Vou votar no dia da eleição mesmo.
— O dia da eleição pode ser conturbado e ter muitas filas, você já planejou o horário de votação e sabe qual é sua seção eleitoral?
— Sim, vou de carro mesmo. O local de votação é aqui perto, na escola ao lado do parque. Pretendo votar por volta das 16h, quando termina meu turno no trabalho — respondeu a “eleitora”.
— Ótimo! Talvez seja uma boa ideia levar um grupo de amigos para votar junto com você. O que acha?
— Excelente ideia, vou ver se alguém precisa de uma carona para votar. Muito obrigado!
Satisfeito com a performance da colega, Ajay pediu uma salva de aplausos e seguiu para a próxima e mais temida situação pelos canvassers: o eleitor indeciso. Nesse caso, disse ele, a melhor opção era manter uma “conversa genuína” com o eleitor, buscando ouvir suas preocupações sem o objetivo de “vencer o debate”.
Dessa vez, Ajay pediu para que ouvintes se voluntariassem para interpretar o eleitor indeciso. Antecipando que não seria chamado, haja vista o número de pessoas na chamada, cliquei no botão para levantar a mão virtualmente.
— Lucas! Você pode ligar sua câmera para participar? – disse o instrutor.
Surpreso, e agradecido por ter penteado o cabelo antes da chamada, liguei a câmera e cumprimentei todos.
— Então, você vai interpretar nosso eleitor indeciso, tudo certo?
— Entendido — afirmei.
Ajay começou como na conversa anterior, se apresentando e perguntando em quem eu pretendia votar.
— Olha, parece loucura a apenas alguns dias da eleição, mas eu ainda não estou com a cabeça feita… Eu sei que o Trump não é a melhor opção, mas também não estou convencido em votar nos democratas de novo… — decidi interpretar o típico eleitor indeciso desinformado, e pensei comigo se, a essa altura, ainda havia pessoas nessa situação.
— Qual é sua principal preocupação enquanto eleitor? — rebateu Ajay.
Pensei alguns instantes se devia tocar em um assunto mais polêmico e polarizador, como genocídio na Faixa de Gaza, aborto e direitos LGBT+, mas, em se tratando de um eleitor indeciso, achei que talvez fosse mais realista falar da economia:
— Olha, uma coisa que me preocupa é a inflação. As coisas estão realmente muito caras no mercado, e eu não sei se Kamala e os democratas têm um plano convincente para lidar com isso — imaginei ter dado trabalho para o angariador de votos de mentirinha.
— Então, eu também fico bastante preocupado com essa questão. O que me convenceu a apoiar o lado democrata é a proposta da vice-presidente Kamala Harris de promover uma “economia de oportunidade” — reproduziu um dos lemas da campanha —, a lei de redução de inflação investiu na geração de empregos e na indústria americana e reduziu a inflação no curto prazo. Kamala também vai trabalhar com o setor privado para promover um plano de habitação para reduzir os preços e oferecer ajuda para aqueles que querem comprar sua casa própria.
— Certo… Então, essas ideias soam muito bem, mas eu vou precisar de um tempo para pensar. Tudo bem? — me mantive firme no meu papel de indecisão.
— Muito obrigado, Lucas. Eu vou deixar o nosso material de campanha para você refletir mais sobre esse ponto. Tenha um ótimo dia!
Ajay pediu uma nova salva de palmas para mim e desliguei imediatamente minha câmera. Ele reforçou a mensagem de que, quando não fôssemos persuadir o eleitor, deveríamos deixar o material de campanha para que ele tivesse a chance de pensar por si mesmo antes de votar. Interpretei como uma confirmação que tinha jogado duro com ele.
A seguir, passou a expor brevemente qual seria a estratégia quando encontrássemos um eleitor decidido a votar em Trump ou nos republicanos: agradecer o tempo da pessoa e seguir em frente. Segundo Ajay, àquela altura do campeonato não valia a pena tentar virar voto de pessoas já decididas. O foco deveria ser os indecisos e estimular os eleitores democratas a comparecerem — Get out the vote, que dá origem à sigla GOTV, vista nos materiais de divulgação.
Material GOTV da League of Women Voters of Texas (Fonte: site institucional)
Por fim, uma das últimas lições foi sobre o aplicativo utilizado para fazer a campanha, chamado MiniVan. Nele, teríamos a informação dos trechos que iríamos percorrer na reta final de campanha, informações sobre os eleitores e até mesmo sugestões de roteiros que poderíamos utilizar para conduzir a conversa. Fomos instruídos a instalar o app nos nossos smartphones, pois, segundo Ajay, o tempo do papel e das pranchetas chegou ao fim.
Ajay agradeceu a todos pela presença e encerrou sua participação dizendo que, embora a campanha democrata fosse o “azarão” (underdog, em inglês), ela tinha a vantagem de fazer esse trabalho de campo e contar com o entusiasmo de milhares de voluntários, que, segundo ele, tinham batido em mais de 500 mil portas na última semana. Reparei na afirmação de que a campanha estava em desvantagem, que contrastava de alguma forma com as pesquisas que, até então, ou davam vantagem estreita para Kamala ou indicavam uma corrida muito parelha para a Presidência.
Às 20h30, o evento se encerrou e recebi instruções por SMS, segundo as quais deveria agora me juntar ao evento específico da região da capital, referida como DMV, iniciais para Distrito de Colúmbia, Maryland e Virgínia. O encontro na outra sala foi muito breve e focou nas dúvidas dos presentes. De onde partem os ônibus? “Da sede da campanha no prédio do Comitê das Mulheres Democratas, na Avenida New Hampshire”, afirmou a facilitadora. Há destinos definidos? “Não, haverá vários ônibus no local de partida. O foco no fim da campanha será o centro e o oeste da Pensilvânia”.
A última participação, inesperada, foi de Paulette Aniskoff (foto ao lado), ex-diretora do Escritório de Engajamento Público da Casa Branca no governo Barack Obama (2009-2017), que parecia estar coordenando os esforços democratas na capital. Apesar do alto perfil, sua fala foi genérica e reforçou muito do que já havia sido dito, com nova menção ao fato de que a campanha estava lutando uma “uphill battle”, ou seja, uma batalha difícil.
Após desligar a chamada, me levantei e andei pelo quarto, pensativo. Até então não havia decidido se iria realmente gastar meu domingo sabe-se lá onde na Pensilvânia, com uma campanha para uma eleição que nem era na minha terra.
Recorrendo a uma heurística que sempre uso frente a uma decisão difícil, me perguntei: “por que não?”. Após alguns minutos tentando buscar motivos realmente sólidos que impediriam minha ida, concluí que a oportunidade de conhecer uma outra parte do país e conversar face a face com eleitores no estado decisivo de uma das eleições mais disputadas dos últimos anos não aconteceria de novo. Preenchi o formulário para o ônibus das 8h30 no domingo, apertei enter, fechei o notebook e desci as escadas para esquentar o jantar.
* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) em período sanduíche (2024-2025) na Georgetown University financiado pela Fulbright Brasil. Contato: amorimlucas@usp.br.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 8 nov. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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