Resenha OPEU

O evangelho d’O Sonho Americano, pela Rede Globo

Fonte: Print do vídeo do segundo episódio do programa (canal do G1 no YouTube)

Por João Gaspar* [Resenha OPEU] [Sonho Americano] [Projeto Escravos Unidos]

Jornal Nacional | O SONHO AMERICANO | Chegou ao fim a viagem especial do #JN, que percorreu 3,8 mil quilômetros de motorhome pelos Estados Unidos na semana... | Instagram

Tratar do “Sonho Americano” sem se achegar à sua materialidade, como fez a Rede Globo, é produzir ideologia. Tendo isso em mente, ainda que se tenha, minimamente que seja, explorado já as contradições e perversidades de tal conceito – o qual remonta à emergência hegemônica dos Estados Unidos – urge que se descontrua, de fato, o mesmo, para além da sua simples reavaliação em sua atualidade e universalidade, de modo a se compreender, assim, as forças em jogo nas eleições deste mês.

Nesse sentido, a série “O Sonho Americano”, constituída de oito episódios de curta duração, transmitidos no meio de edições do Jornal Nacional, de 28 de outubro a 5 de novembro de 2024, ainda que interessante por trazer retratos que se distanciam daquele ideal da sociedade estadunidense, acaba por reproduzir o típico ocultamento das problemáticas internas dos EUA. Além disso, termina por servir ao establishment político desse mesmo país, corporificado politicamente nos partidos Democrata e Republicano, porosos entre si, cujo fim não é outro senão a manutenção do status quo e a continuidade da acumulação capitalista.

Abordando temas que variam de aborto e meio ambiente a empreendedorismo e discriminações sociais, a produção flerta algumas vezes com a crítica, ao problematizar os acessos à moradia e à educação e ao denunciar a quase escravidão a que estão submetidos os presos em certos estados, por exemplo. No entanto, ao não abraçá-la, em respeito àqueles que a apoiam, quiçá, boia sobre as águas menores de análises identitaristas e neoclássicas, magistralmente conciliadas sem Deus saber como. Assim, perde-se, de um lado, no espírito dos Années folles da década de 1960, e, de outro, na racionalidade do tradeoff, não avançando para a análise do que resta abaixo do embate entre a herança de Roe vs. Wade e o pro-life movement e da inflação resultante da impressão de moeda e do entesouramento, quando da pandemia do coronavírus.

Empreendedorismo: a romantização do Sonho Americano. Assista ao 2º episódio do programa (Fonte: canal do G1, YouTube)

Ademais, deve-se destacar, considerando-se que a série foi gravada em diferentes localidades do dito “Cinturão da Ferrugem” (Rust Belt), que a questão industrial-trabalhista apenas superficialmente vem a ser abordada. O declínio do antigo Cinturão da Manufatura e a inviabilização da pequena indústria, ou seja, da produção não monopolista, são postos na conta da deslealdade asiática, em oposição ao gênio estadunidense, que, lançando startups, vem tentando dar a volta por cima, compensando a superexploração da força de trabalho chinesa pela eficiência e/ou pela redução de custos, no melhor espírito de competitividade e de livre-mercado. Ademais, nenhum dos episódios se aproximou, de fato, dos reais dramas dos trabalhadores do Meio-Oeste do país, os quais não parecem querer saber de pôr ambientalismo ou segurança nacional à frente da essência do Sonho Americano, isso é, da oportunidade de se fazer e fazer a própria família pelo trabalho honesto. Vale dizer que essa fórmula, a qual também atrai, pela necessidade pessoal, diversos estrangeiros, em conluio com necessidades produtivas, faz com que a superexploração, em verdade, venha a se encontrar nos EUA, estando a reduzir nacionais e imigrantes à lógica do mínimo salário-mínimo.

Como era de se esperar, enfim, houve a Rede Globo de rezar o evangelho d’O Sonho Americano, tanto positivamente, pela exaltação do espírito democrático estadunidense – como o fez já no primeiro episódio da série, ao contar sobre uma campanha em uma escola de Minnessota em prol da construção de um parque inclusivo, com atrações para pessoas com deficiência –, quanto negativamente, pelo tom esperançoso e superficial com que abordou as problemáticas dos EUA. Nesse viés, ainda que tenha, em um movimento que merece certo aplauso, devido aos constrangimentos da estrutura, trazido à baila diversas questões que deveriam estar sendo debatidas, mas que ainda são tratadas seriamente em poucos espaços, não explorou o American Dream de uma postura crítica verdadeira. Para tanto, recomendo os vídeos produzidos pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA-UFSC) com apoio do INCT-INEU, no âmbito do Projeto “Escravos Unidos”, sob coordenação da profª Camila Vidal, disponíveis no YouTube, que o faz continuamente, de ponta a ponta.

Confira abaixo os episódios do Projeto Escravos Unidos já divulgados:

A saúde nos EUA, ep. 1 (Iela/UFSC, 2/7)

O trabalho nos EUA, ep. 2 (Iela/UFSC, 14/8)

A pobreza nos EUA, ep. 3 (Iela/UFSC, 9/10)

 

* João Gaspar é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto Coerção e Consenso: a Política Externa dos EUA para a América Latina. Contato: joaogkg@hotmail.com.

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 5 nov. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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