As relações entre EUA e Cuba sob a lente de Jon Alpert
‘Cuba e o Cameraman’ (Crédito: Netflix)
Por José Eduardo Milheirão* [Resenha OPEU] [Cuba] [Netflix]
Em 1961, o então primeiro-ministro da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Nikita Khrushchev, descobriu, durante viagem à Bulgária, que os Estados Unidos da América haviam instalado mísseis balísticos de médio alcance na Turquia. Naquele momento, o líder soviético constatou o quão grave era a situação, visto que as armas estavam apontadas para a URSS, e a distância entre os territórios russo e turco era pequena. Nesse cenário, Khrushchev prometeu retaliações aos estadunidenses e, a partir disso, passou a estreitar relações com uma ilha próxima à Flórida e recém-declarada socialista, Cuba.
Assim, a União Soviética adotou uma estratégia similar à dos Estados Unidos e instalou mísseis de curto e médio alcance no local. Como resposta à movimentação, o então presidente dos EUA, John Kennedy, em 22 de outubro de 1962, em um pronunciamento à nação, declarou que: “Qualquer míssil lançado de Cuba contra qualquer nação do Hemisfério Ocidental será considerado um ataque da União Soviética contra os Estados Unidos, exigindo uma resposta retaliatória total contra a União Soviética”. Esse foi um dos momentos mais perigosos da já abalada relação entre os EUA e Cuba. Os impactos desse conturbado passado são retratados em “Cuba e o Cameraman” (2017), disponível na Netflix.
O estadunidense Jon Alpert é o roteirista e produtor do longa. Nascido em Port Chester, Nova York, em 1948, Alpert se formou em jornalismo na Colgate University, em 1970. Em 1972, junto com Keiko Tsuno, fundou o Downtown Community Television Center in New York, um dos mais antigos e reconhecidos centros de mídia comunitária dos EUA. Sua trajetória de vida é marcada pela produção de vários documentários, como “Baghdad ER” (2006), em que mostra a rotina de médicos durante a Guerra do Iraque, e “Seção 60: Cemitério de Arlington” (2008), sobre soldados dos Estados Unidos e suas famílias. Além disso, Jon Alpert venceu 16 Emmys e foi duas vezes indicado ao Oscar: a primeira, por “O desastre inatural da China: as lágrimas da Província de Sichuan” (2009); e a segunda, por “Redenção” (2013). Em 2017, Jon foi premiado no Festival de Veneza pelo documentário “Cuba e o Cameraman”, em que compilou uma série de gravações realizadas ao longo de 40 anos, em suas viagens a Cuba, registrando os impactos das políticas de Fidel Castro.
Alpert inicia o filme abordando os motivos que o levaram a visitar Cuba. Ao contextualizar a Nova York dos anos 1960, o diretor conta que era engajado em apresentar os problemas cotidianos dos nova-iorquinos, citando, principalmente, o acesso à saúde, à moradia e à educação de qualidade. Paralelamente a isso, a Revolução Cubana, de 1959, conseguiu trazer à realidade da ilha a educação universal, um sistema público de saúde e moradias para grande parte da população. Como destaca Alpert, “Fidel Castro implementava programas sociais que combatiam os problemas vistos em NY”.
Assista ao trailer oficial do documentário (Fonte: Canal da Netflix no YouTube)
Contudo, a rivalidade entre soviéticos e estadunidenses ainda se fazia presente nesse período. As superpotências haviam atuado em vários movimentos revolucionários, o que não foi diferente no caso cubano, especialmente dada a participação dos Estados Unidos no processo. Inicialmente, os EUA apoiaram Fulgencio Batista, que governou Cuba de 1930 até 1959, quando foi deposto pela revolução na ilha. Após a chegada de Castro ao poder, e como consequência dos processos de estatização de grandes companhias, muitas de capital estadunidense, como a United Fruit Company e a Texaco, os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Cuba, em 1960. Além disso, houve o início dos embargos econômicos à ilha e o apoio dos EUA à Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, fatores que levaram à maior aproximação com a União Soviética.
Nesse aspecto, Alpert apresenta no documentário um dos discursos de Fidel Castro, que demonstra grande afastamento da potência norte-americana: “Estamos lutando para que os trabalhadores não dependam de norte-americanos milionários […] Não suportam o fato de termos feito uma revolução socialista bem debaixo do nariz dos EUA”. Assim, inicia-se um processo de distanciamento entre Estados Unidos e Cuba. Em resposta às crescentes divergências entre os dois países, a União Soviética passa a estreitar laços com a ilha. Sendo assim, garantiu uma série de subsídios e financiamentos a Cuba, o que possibilitou a Fidel custear tratamentos médicos, educação e moradia da população, mesmo após os embargos econômicos.
Posteriormente, Jon Alpert apresenta os bastidores da primeira viagem oficial de Fidel Castro aos Estados Unidos, para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, em 1960. Após o sucesso da viagem, as relações entre a ilha socialista e os EUA passaram a melhorar. Assim, Havana sediou, em 1975, uma partida de beisebol, marcada pela presença de Fidel. Naquele momento, a Casa Branca havia permitido que times universitários disputassem um jogo na capital de Cuba.
Nesse cenário de distensão entre os dois países, Cuba flexibilizou a entrada de exilados para que pudessem visitar suas famílias. Contudo, o regresso dos familiares trouxe à ilha o desejo por bens de consumo, itens que a revolução não conseguia abranger. Assim, Jon Alpert mostra como a necessidade de consumir impulsionou a emigração cubana. Nesse aspecto, o filme passa a registrar o Êxodo de Mariel, de 1980, uma das maiores migrações na história dos países. Isso aconteceu porque Fidel havia declarado que aqueles que eram contra a revolução podiam deixar Cuba. Assim, abriu o Porto de Mariel para embarcações estadunidenses, com o propósito de recolher os cubanos que queriam deixar o país. Desse modo, a medida obteve como resultado a saída de 125 mil cidadãos do país.
Após registrar tais acontecimentos, Alpert retorna à ilha em 1989, durante a Queda do Muro de Berlim e a dissolução do bloco socialista. A marca do fim da Guerra Fria também trouxe a Cuba o fim de um importante motor econômico: a ajuda soviética. Alpert relata que o subsídio de US$ 8 milhões à economia cubana acabou logo após o fim dos Estados socialistas. Nesse contexto, em discurso, Fidel declarou: “enfrentamos um período difícil […] Temos uma missão extraordinária: Salvar a revolução em Cuba! Salvar o socialismo em Cuba”.
Já no pós-Guerra Fria, em 1992, em mais uma de suas visitas à ilha, Alpert mostra que o país passa por momentos difíceis, especialmente no âmbito econômico. Ao entrevistar algumas pessoas, constata-se que o setor de construção civil estava estagnado, assim como o automobilístico. Entretanto, a situação mais perceptível era a do setor de alimentação, marcado pela escassez de alimentos. Quando encontra com Fidel Castro, Alpert o questiona sobre a crise econômica, e obtém como resposta: “Nosso problema é, fundamentalmente, o bloqueio e o fim do bloco socialista. Porque negociávamos 85% dos bens com os países socialistas, principalmente com a União Soviética, que garantia nosso suprimento de combustível por meio desse intercâmbio”.
Ainda nesse aspecto, uma das histórias que mais chamam a atenção no documentário é a dos irmãos Borrego. Ao longo de suas visitas, Alpert apresenta a família em diferentes décadas, oferecendo um panorama da situação em Cuba. Em 1992, quando retorna para a propriedade da família, o diretor registra a insegurança vivida por eles. Nesse contexto, os irmãos relatam que seus animais, como bois, vacas e bezerros, assim como suas plantações de milho e mandioca, são alvo de furtos constantes. Em um dos diálogos, Gregório, um dos irmãos, afirma: “É horrível. Você trabalha sem parar, e eles [outros cidadãos] roubam tudo”. Entretanto, o que mais chama a atenção é a justificativa dada aos furtos. Cristóbal expõe que “Eles nos roubam para comer […] Matam as vacas e as levam para casa, para comer …”. Assim, revela o caos da crise econômica vivenciada pelos cubanos após o término da Guerra Fria.
Irmãos Borrego e Jon Alpert, no centro (Crédito: Nagamitsu Endo. Fonte: NBC News)
Por fim, o documentário apresenta o plano de reestruturação econômica proposto por Fidel Castro, com enfoque no turismo. Alpert registra as melhorias nas condições de vida que o impulsionamento ao setor trouxe aos cubanos. Como exemplo, mostra a revitalização do centro de Havana e o aumento da circulação de dólares no país. Apesar disso, o documentário mostra como Cuba perdeu mão de obra qualificada para o setor de turismo, relatando a história de vida de um casal de engenheiros que, após o reordenamento econômico, passou a trabalhar com a venda de artesanato.
Embora seja de 2017, o longa traz uma reflexão pertinente sobre a manutenção das sanções econômicas estadunidenses. Em 2023, por exemplo, a Assembleia Geral da ONU (AGNU) aprovou uma resolução solicitando o fim dos embargos a Cuba, presentes desde 1962. Nessa linha, o presidente Lula, em seu discurso na AGNU, em setembro de 2024, defendeu o término dos embargos promovidos pelos EUA.
Trinta anos de crise: o embargo dos EUA a Cuba na Assembleia Geral da ONU
Saiba mais sobre o tema neste Informe OPEU, de Lucas Barbosa
Portanto, nota-se como o filme dialoga com um dos aspectos menos visíveis da Guerra Fria: o abandono, por parte das potências, de seus Estados clientes. O documentário consegue evidenciar como as medidas tomadas por Fidel Castro foram sentidas pela população cubana, ressaltando os impactos do fim da União Soviética e dos embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos.
* José Eduardo Milheirão é graduando em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: edumilheirao@gmail.com. Texto elaborado para a avaliação da disciplina obrigatória de Política Internacional Contemporânea, ministrada em 2024 pelo professor David Magalhães, do curso de Relações Internacionais da PUC-SP.
** Primeira revisão: Isabela Agostinelli (pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU/CNPq). Contato: isagostinellis@gmail.com. Revisão de texto: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira.
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