O futuro governo Trump e as Relações Internacionais
(Arquivo) O então presidente Donald Trump dá as boas-vindas ao ministro russo das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, em reunião no Salão Oval da Casa Branca, em 10 dez. 2019 (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead)
Possíveis políticas de Trump para diferentes setores contrariam princípios da histórica estratégia de manutenção da hegemonia dos EUA
Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU] [Governo Trump] [Política Externa EUA]
A vitória eleitoral de Donald Trump suscita a certeza de que a política externa dos Estados Unidos mudará. A certeza vem das ideias que ele agitou em sua campanha e da prática de seu governo passado. Quais serão precisamente as mudanças, ainda é muito cedo para saber. As ideias parecem ser as mesmas que conduziram seu governo anterior, mas a conjuntura já não é mais a mesma. Alguns desafios evoluíram, e outros novos apareceram.
Guerra Rússia-Ucrânia
A guerra da Rússia com a Ucrânia e a intensa participação dos Estados Unidos liderando a OTAN em apoio à Ucrânia são um problema novo. Em manifestação de desdém pelo governo de Joe Biden, Trump assegurou que resolverá muito rapidamente esse problema que ele jamais teria permitido que fosse criado. Se ele conseguirá dar um ponto final a essa guerra rapidamente somente o tempo dirá. Mas, seguramente, ele é sincero ao afirmar que não apoiaria essa guerra, pois ela não é compatível com sua visão dos interesses nacionais dos Estados Unidos.
Diferentemente do governo democrata de Biden, que não admite a possibilidade de os Estados Unidos perderem a condição de potência hegemônica do sistema internacional de poder, Trump considera que a onerosa estrutura militar da OTAN interessa mais aos europeus do que propriamente aos Estados Unidos. Por essa razão, em seu primeiro governo pressionou os europeus a aumentarem a participação financeira deles para manter a aliança militar, assim como promete continuar pressionando nesse seu novo governo. De acordo com a concepção estratégica que orienta o comportamento externo do governo Biden, não pode haver uma potência dominando a região eurasiana, da mesma forma que não podem haver acordos que resultem em laços de cooperação entre as potências da área. Por outras palavras, não pode haver dominação russa ou dominação alemã, tampouco pode haver acordo entre Alemanha e Rússia. Os estrategistas norte-americanos consideram que a única possibilidade aceitável de acordo entre Alemanha e Rússia é aquela em que a Rússia esteja sob controle dos Estados Unidos. Esse quadro se configurou, de certo modo, durante o governo de Boris Yeltsin, a seguir ao desmoronamento do Estado soviético, e durante o início do governo de Putin, quando a Rússia foi convidada a integrar o G7 e a OTAN. Porém, uma vez Vladimir Putin havendo revelado seu projeto nacionalista de recuperar a autonomia estratégica da Rússia o comportamento dos Estados Unidos passou de amigável para hostil. Putin logo passou a ser considerado um autocrata inescrupuloso, cuja intenção é recriar o império soviético. Fora do controle dos Estados Unidos, os estrategistas recomendam uma política que provoque tensão permanente, obrigando os russos a desgastarem suas Forças Armadas em atritos limitados e, ao mesmo tempo, ocasionando instabilidade na política doméstica russa.
(Arquivo) O então presidente Donald Trump dá as boas-vindas ao presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, em sua chegada para participar de sua reunião bilateral durante a Cúpula do G20 no Japão, em 28 jun. 2019, em Osaka (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead/Flickr)
Essa concepção estratégica que se mantinha desde a Segunda Guerra Mundial, governo após governo, foi interrompida pelo governo Trump. Ele considera que a ideia de manter posição hegemônica acarreta despesas elevadas e guerras desnecessárias. Segundo ele, é a imposição dos interesses comerciais e financeiros dos Estados Unidos junto aos demais atores internacionais que fará o país voltar a ser o mais rico e o mais respeitado em todo o mundo. Em vista disso, faz todo o sentido ele anunciar que buscará solução imediata para o problema que separa ucranianos de russos. O envolvimento dos Estados Unidos na questão desperdiça recursos que seriam mais bem empregados em conflitos em outras partes do mundo, onde ele julga que o futuro dos Estados Unidos como grande potência está verdadeiramente em jogo.
Oriente Médio
O envolvimento dos Estados Unidos na guerra que Israel move no Oriente Médio contra os aliados do Irã e defensores dos palestinos é um problema que evoluiu. Esse é um caso em que não se espera que haja mudança significativa de comportamento na passagem do atual governo para o governo Trump. Do mesmo modo que, para todos os setores influentes norte-americanos, há uma incondicional identificação dos Estados Unidos com Israel — sendo este percebido como um país ocidental, democrático, moderno e desenvolvido em meio a um ambiente árabe-muçulmano, bárbaro e atrasado —, há, na mesma proporção, uma aversão ao Irã. Essa aversão, que se desenvolveu a seguir à queda do aliado xá Reza Pahlevi, derrubado pela Revolução que instalou no poder o clero xiita (1979), só fez aumentar com a pretensão dos governantes iranianos de alcançar posição hegemônica na região, legitimando-se na defesa do povo palestino, e de dotar o país de capacidade nuclear.
Nesse caso do Oriente Médio, é difícil prever que mudança de rumo Trump pode promover, caso entenda necessário. O apoio que declara a Israel e a aversão que dispensa ao Irã é igual ou mais forte do que do governo Biden. Considerando-se o menosprezo que costuma manifestar em relação aos órgãos da ONU — neste caso, em perfeita sintonia com os governantes de Israel —, é de se prever que Benjamin Netanyahu se sinta ainda mais à vontade para levar adiante sua pretensão de, enfim, concretizar a ideia do grande Israel.
China
Outro problema que não para de evoluir e que constitui, por assim dizer, o problema central para o governo Trump, chama-se competição com a China. Este é, seguramente, o problema que mais desafia os norte-americanos, seja na ótica dos que lutam pela hegemonia no sistema internacional, como é o caso do governo Biden, seja na ótica de Trump, que não aceita a ideia de ver os Estados Unidos sobrepujados econômica, tecnológica e militarmente pela China.
Ainda que a ideia de que se faz necessária uma guerra contra a China tenha amplo trânsito nos meios políticos e militares dos Estados Unidos, como assim revelam os diversos relatórios produzidos por comissões especializadas do governo, até agora Trump não se manifestou endossando essa ideia. O ponto de vista, a partir do qual ele enquadra, a questão não é o militar, mas o econômico-comercial. O que ele não cansa de prometer é a adoção de uma política econômica protecionista de expressiva elevação das tarifas de importação, o que, segundo ele, constituirá uma justa contrapartida às práticas chinesas de dumping, espionagem industrial, roubo de propriedade intelectual, enormes subsídios e diferentes práticas comerciais desleais. Segundo ele, foram essas práticas abusivas que permitiram aos chineses avançarem tanto em tecnologias críticas como em veículos elétricos, energia solar, Inteligência Artificial e computação quântica.
Essa é uma promessa de campanha que causa grande apreensão em toda parte. Tendo em vista a centralidade da economia dos Estados Unidos na economia mundial e a segmentação das cadeias produtivas resultantes da globalização neoliberal, a adoção de medidas protecionistas pelo governo norte-americano afetará o conjunto da economia mundial. Evidentemente que a confirmação dessa intenção atingirá com mais intensidade os países de economia mais frágil.
Além dessa meta, Trump acena também com a possibilidade de intervir no equivalente ao banco central norte-americano (Federal Reserve), com vistas a adequar a política monetária à sua política econômica externa. Esta é outra possibilidade que gera muita preocupação, e que contraria a estratégia de manutenção da hegemonia.
(Arquivo) O então presidente Donald Trump acompanhado do representante comercial dos Estados Unidos, embaixador Robert Lighthizer; do secretário do Tesouro, Steven Mnuchin; por membros do gabinete e assessores sênior da Casa Branca, em reunião com o então vice-primeiro-ministro chinês, Liu He, em 4 abr. 2019, no Salão Oval da Casa Branca (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead/Flickr)
Embora estejam em curso negociações conduzidas pelo BRICS com a finalidade de desdolarizar as trocas internacionais, o papel da moeda norte-americana como meio de troca, unidade de conta e reserva de valor ainda vai durar por algum tempo. Quer venha a ser a moeda chinesa, quer venha a ser uma cesta de moedas a substituir o dólar nas transações internacionais, o fato é que enquanto não for instituída uma nova estrutura financeira internacional, o dólar continuará desempenhando a função de moeda internacional. Por isso, se o governo Trump tratar o dólar como uma moeda igual a todas as demais e manipulá-la para atender necessidades pontuais de sua política econômica, ele precipitará a desdolarização da economia mundial.
Considerando-se que a moeda tem papel fundamental para o exercício da hegemonia, e que se exige do Estado hegemônico a capacidade de assimilar perdas para manter o equilíbrio do sistema, como defendem estudiosos das relações internacionais como Stephen Krasner e Robert Gilpin, essa forma de administrar o dólar pode se interpretar como autêntica renúncia à hegemonia. Nas palavras de William Pesek, em artigo publicado hoje no jornal Asia Times: “O dólar é o eixo das finanças e do comércio globais. Trump falou frequentemente durante seu primeiro mandato sobre a engenharia de um dólar mais fraco para obter vantagem comercial. Qualquer mudança de política que mine a confiança no dólar e na dívida do governo dos Estados Unidos torna todo o sistema global mais instável”.
Por fim, em consonância com sua orientação política antichinesa é de se prever que ele dê continuidade aos acordos militares que o governo Biden promoveu na Ásia. Entretanto, mesmo nesse caso, não haveria uma simples continuidade de Biden para ele. Isto porque, enquanto o governo Biden se apresenta como incondicional defensor de Taiwan – inclusive levantando a hipótese de guerra, caso a China se decida por uma incorporação de Taiwan mediante o uso da força –, Trump percebe Taiwan como uma economia concorrente no domínio da tecnologia, em especial na tecnologia dos chips. Além dessa variação importante, a confirmação das intenções protecionistas pode atingir, seriamente, os aliados asiáticos na política antichinesa. Uma consequência possível dessa situação seria um realinhamento asiático em torno da China.
Tudo, porém, são especulações, que não deixam de ser necessárias.
Conheça os textos mais recentes do autor publicados no OPEU
Informe “Os Estados Unidos e a Cúpula do BRICS, em Kazan”, 1º nov. 2024
Informe “Congresso: Partido Comunista Chinês se infiltra e influencia os norte-americanos”, 29 out. 2024
Informe “O Partido da Guerra”, 11 out. 2024
Informe “Relatório sobre Estratégia de Defesa Nacional 2024 adverte sobre grandes ameaças aos EUA”, 25 set. 2024
Informe “A tensa relação de Estados Unidos e China no Mar da China Meridional”, 13 jun. 2024
Informe “Rotas de colisão”, 18 de maio de 2024
Informe “Encontro de Xi Jinping e Joe Biden na Apec”, 15 nov. 2023
Informe “Repensar a Estratégia dos Estados Unidos”, 2 ago. 2023
Informe “Desglobalização, guerra e a tentativa dos EUA de Biden de conter a China”, 4 jun. 2023
Informe “O G7 de Hiroshima”, 19 de maio de 2023
Informe “Grande Estratégia dos EUA: continuidade, ou mudança?”, 2 mar. 2023
Informe “O que o Brasil faz no Mar Negro aliado à OTAN?”, 27 jul. 2021
* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023) e O realismo da fraternidade: as relações Brasil-Portugal no governo Kubitschek (Funag, 2024).
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 7 nov. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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