A derrota do Partido Democrata
Burro, o símbolo do Partido Democrata (Crédito: POLITICO illustration/iStock)
Por Roberto Moll Neto, direto de Denver, CO* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Partido Democrata]
O Partido Democrata sofreu uma derrota amarga na eleição presidencial de 2024. Após a mobilização e, até mesmo, a euforia gerada pela nomeação de Kamala Harris para enfrentar Donald Trump, do Partido Republicano, a legenda democrata, que completará 100 anos na próxima disputa presidencial, perdeu categoricamente a corrida, tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral. Em números, o Partido Democrata, que recebeu 81.283.501 votos em 2020, obteve 67.460.568 votos em 2024, sem contar 35% dos votos do Arizona e 15% dos votos de Nevada. Independentemente do resultado final nesses dois estados, a diferença será significativa, sobretudo, considerando-se que o eleitorado aumentou de aproximadamente 239 milhões, em 2020, para 250 milhões em 2024.
Roberto Moll ao OPEU: ‘Fracasso de Biden pode levar EUA e mundo a cenário ainda mais sombrio’
Saiba mais sobre o autor nesta entrevista ao OPEU
Em 2016, Trump perdeu no voto popular, com 62.984.820 votos, mas venceu no Colégio Eleitoral. Quatro anos depois, obteve 74.223.975 votos, mas perdeu para Biden, tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral. No entanto, mesmo com a eleição ainda incompleta no Arizona e em Nevada, neste pleito de 2024, Trump sai vitorioso com menos votos do que obteve na eleição anterior, quando saiu derrotado (72.226.429 votos). Ainda assim, Trump avançou significativamente em grupos como homens latinos e jovens entre 18 e 29 anos. Também obteve um desempenho ligeiramente melhor entre mulheres, homens negros e homens brancos, principais sustentáculos eleitorais. O mais surpreendente foi que Trump ampliou consideravelmente o número de eleitores com renda familiar anual abaixo de US$ 100.000, enquanto perdeu eleitores com renda acima de US$ 100.000. Em outras palavras, ao contrário de 2020, Trump venceu entre os mais pobres e perdeu entre os mais ricos. O Partido Republicano também saiu das eleições com maioria no Senado e, provavelmente, terá maioria na Câmara dos Representantes nos estados.
Mais do mesmo
Diante desses dados preliminares, a vitória de Trump e do Partido Republicano parece mais uma derrota de Harris e do Partido Democrata, diferentemente de 2016. Naquele ano, o Partido Democrata apostou todas as fichas no velho Clintonismo, epítome do que Nancy Fraser chamou de neoliberalismo progressista, um Frankenstein que combina políticas neoliberais com políticas sociais focais, moderadas e paliativas voltadas para minorias. Esse modelo, desenvolvido gradualmente pelo Partido Democrata desde a derrota para Richard Nixon em 1968, esgotou-se diante do fracasso das políticas econômicas neoliberais, também adotadas pelos republicanos, em responder aos anseios dos trabalhadores, brancos e minorias. A política externa neoliberal, fundamentada na ideia de levar a democracia e a liberdade para o mundo, por meio de armas e acordos de liberalização do comércio, aprofundou o fracasso e a insatisfação popular, à medida que exportou postos de trabalho e destinou recursos para guerras em regiões que a maioria dos estadunidenses (e brasileiros) sequer sabe localizar no mapa.
Mais sobre o tema neste episódio do podcast Chutando a Escada, com participação do prof. Roberto Moll
O Partido Democrata não ofereceu nada novo e substancial para trabalhadores e minorias, no contexto de precarização do trabalho, crescimento das desigualdades, estagnação da mobilidade social, destruição do meio ambiente, imigração e recrudescimento do racismo, machismo e misoginia. Bernie Sanders, pré-candidato democrata, ofereceu um projeto completamente distinto, mas foi afastado pela liderança partidária. O resultado, como sabemos, foi a derrota para Trump, que apresentou nada mais do que demagogia, encapsulada no lema “Fazer a América grande novamente”, sem explicar muito bem como geraria empregos de qualidade, expulsaria imigrantes, moralizaria a nação e diminuiria os gastos com a política externa, incluindo a presença das Forças Armadas no exterior.
Desconexão com o eleitorado e suas demandas
Em 2020, o Partido Democrata parecia ter aprendido a lição. Apresentou um projeto que incluía respostas, inspiradas, inclusive, na ala progressista do partido e na mobilização social. Venceu. Biden, que gozava de excelente reputação entre trabalhadores organizados, apresentou o plano American Jobs Plan, que visava a criar empregos sustentáveis e de longo prazo por meio de investimentos, sobretudo, na infraestrutura verde. Em 2022, com um certo atraso, o governo Biden apresentou um plano para combater a inflação, causada não pelo aumento dos gastos do governo, mas pelos problemas na cadeia global de valor, gerados pela covid-19 e outras instabilidades globais, incluindo a animosidade entre Estados Unidos e China. O resultado desses planos, ao menos no que se refere a diminuir desigualdades e gerar oportunidades de trabalho qualificado, foi tímido, embora tenha gerado empregos em setores com baixa remuneração. Na prática, o Partido Democrata sufocou o Green New Deal, que prometia resolver questões socioambientais, ainda no nascedouro. Passou quatro anos sem apresentar respostas substanciais para imigração, trabalho qualificado e direitos das minorias, incluindo a restauração dos direitos reprodutivos das mulheres, destruídos pelo governo Trump.
O governo Biden abandonou o compromisso com os trabalhadores, especialmente jovens, negros e imigrantes, em nome de uma política que não interessa mais a ninguém, exceto a uma parte minoritária da elite. O apoio militar e financeiro ao governo israelense na campanha genocida em curso é o símbolo desse processo. Ao contrário do que era óbvio, o Partido Democrata cedeu ao lobby israelense e à indústria bélica, seguida de toda a cadeia produtiva que a envolve, e apoiou a campanha militar do governo de Israel contra Gaza, contrariando jovens e trabalhadores estadunidenses, que, além das razões humanitárias, não suportam mais ver bilhões de dólares indo em direção a Israel e à Ucrânia, caindo no colo da indústria bélica.
O desastre de Biden no primeiro debate presidencial fez o Partido Democrata acreditar que o problema era única e exclusivamente a percepção do eleitorado sobre a capacidade cognitiva do octogenário candidato à reeleição. Mas a substituição de Biden por Harris não significou apenas “sangue novo”. Mulher, negra e filha de imigrantes, o Partido Democrata apresentou Harris como um totem de esperança para a renovação de projetos e ideias, com especial preocupação com a situação dos trabalhadores e minorias. Mas, nos dias que se seguiram à sua ascensão como candidata, Harris repetiu uma versão opaca dos projetos de Trump para imigração e segurança nas fronteiras. O tema interessa profundamente o eleitorado latino, que deseja controle do fluxo migratório, dado o esgotamento causado pelo medo diário de ser abordado pelas forças de segurança como “ilegal” e/ou de perder o emprego para conterrâneos. Todavia, espera políticas humanitárias, um projeto de anistia e garantia dos direitos dos jovens que chegaram ao país como crianças e não têm mais laços com sua terra natal.
Aprofunde: saiba mais sobre a agenda do Partido Democrata nas eleições de 2024 neste episódio do programa Diálogos INEU
Harris trocou a preocupação com o meio ambiente por apoio aos projetos extrativistas de gás e carvão, especialmente na Pensilvânia, contradizendo o que havia dito explicitamente em anos anteriores. As propostas para a economia não trouxeram nenhuma novidade, insistindo em reafirmar o sucesso econômico do governo Biden, baseado em números, mas distante da realidade e das expectativas da vida cotidiana. Harris foi incapaz de tecer críticas contundentes ao governo de Israel. Ao contrário, insistiu no direito de defesa, claramente incongruente com o genocídio em curso. Ou seja, em sua campanha, Harris rapidamente se afastou de qualquer política progressista, exceto pela defesa dos direitos reprodutivos e da democracia. Entretanto, ficou evidente que, mesmo com uma mulher na vice-presidência, o partido dela não fez nada substancial em quatro anos, com maioria no Senado, para garantir os direitos reprodutivos das mulheres.
Oportunidade desperdiçada
E o Partido Democrata não percebeu ou não levou em consideração que Trump, como todo candidato de extrema direita nesses tempos, sequestrou e resignificou a preocupação com a defesa da democracia, apontando imigrantes e “comunistas” como os inimigos da democracia. Ou seja, nem todos os eleitores preocupados com a democracia estavam preocupados com a ameaça vinda de Trump. Muitos estavam preocupados com uma ameaça vinda de Harris, mesmo ela negando qualquer projeto humanitário para lidar com a imigração, imigrantes e trabalhadores. Tim Walz foi o escolhido como vice na chapa de Harris para servir como modelo do trabalhador que faz troça do trumpismo. Teve impacto breve.
O Partido Democrata subestimou a capacidade dos eleitores de perceber suas próprias necessidades materiais. Concentrou-se em conquistar eleitores republicanos mais moderados e anti-trumpistas, mas não conseguiu mais do que 5% deles. Apostou no centrismo possível para manter uma relação com parte da elite política e econômica tradicional. Mesmo com tudo isso, perdeu por uma diferença tão pequena na Muralha Azul que, talvez, se tivesse, ao menos, criticado o governo de Israel de forma mais contundente, poderia ter vencido. Isso mostra a fragilidade do Partido Democrata, mas também evidencia a fragilidade republicana trumpista, da qual Harris e seu partido não conseguiram tirar vantagem, pois não foram capazes de motivar as pessoas a saírem de casa para votar.
Conheça outros textos do autor no OPEU
Informe “Eleições nos Estados Unidos da América: uma perspectiva a partir do Colorado”, 2 nov. 2024
Informe “A Política da Boa Vizinhança nas páginas da revista Foreign Affairs (1941-1946)”, com Beatriz Leal, 14 dez. 2023
Informe “O que esperar das relações Brasil-EUA-AL após as eleições? (II)”, 28 out. 2022
Informe “A disputa pelo voto latino na eleição de 2020”, 12 ago. 2020
Informe “O populismo e Donald Trump”, 4 ago. 2020
* Roberto Moll Neto é professor de História da América na Graduação em História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional e da Pós-Graduação de Estudos da Defesa e da Segurança, ambos na Universidade Federal Fluminense. Também é pesquisador do INCT/INEU. Atualmente está realizando pesquisa de Pós-doutorado como pesquisador visitante na Universidade de Denver e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com apoio do CNPq. Sua pesquisa se concentra na militância dos latinos nos Estados Unidos entre 1960 e 1990, além de explorar políticas imigratórias e a relação entre movimentos sociais latinos e a política americana no período.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 6 nov. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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