Donald Trump e a avalanche republicana
Ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, na Turning Point Action Conference 2023, no Centro de Convenções do Condado de Palm Beach, em West Palm Beach, Flórida (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)
Panorama EUA_Donald Trump e a avalanche republicana_v 15 n 8 out nov 2024
Por Victor Cabral, Tatiana Teixeira, Augusto Scapini, Luísa Barbosa, Eduardo Mangueira, Lucas Machado e Luiza Bueno* [Panorama EUA] [Eleições 2024] [Donald Trump]
A avalanche vermelha foi confirmada. Às 7h35 do horário de Brasília de 6 de novembro de 2024, os principais veículos de imprensa estadunidenses confirmaram a vitória de Donald Trump como o 47º presidente dos Estados Unidos da América. Trump venceu a eleição, após ultrapassar a barreira de 270 delegados necessários para retornar à Casa Branca, ao ganhar o estado de Wisconsin e atingir 276 delegados. Contabilizando os delegados que faltam ser definidos nos estados em que Trump tem maioria de votos até o fechamento deste Panorama EUA, ele terminará essa eleição com 312 delegados, seis a mais do que Joe Biden em 2020, e de seu próprio resultado, na vitória de 2016. Com 78 anos completados em 14 de junho, Trump se torna a pessoa mais velha a chegar à Casa Branca.
Os resultados em números
Vencer nos estados da Carolina do Norte, da Geórgia, da Pensilvânia e de Wisconsin foi decisivo para o resultado republicano, os quais havia conquistado em 2016 e perdido em 2020. Donald Trump também venceu no voto popular, com 51% dos votos, enquanto Kamala Harris obteve 47,4%, sendo a primeira eleição vencida no voto popular por republicanos desde 2004, com a reeleição de George W. Bush. Até o momento da escrita deste Panorama EUA, Trump somou mais de 72 milhões de votos, ultrapassando seus resultados de 2016 e de 2020. A vitória de Trump no voto popular pela primeira vez pode ser explicada pela expansão dos votos em 48 estados americanos. Em relação à eleição de 2020, o presidente-eleito perdeu votos apenas em Washington e Utah, além de ter obtido mais da metade dos votos totais em 31 dos 50 estados americanos, conforme o gráfico abaixo do Financial Times.
A vitória republicana vai além da conquista da Presidência, pois o partido obteve a maioria das cadeiras do Senado, com 52 representantes, ao conseguir virar cadeiras democratas em Montana, Ohio e Virgínia Ocidental. Até hoje, o partido democrata tinha a maioria do Senado, após vencer a disputa para essa casa legislativa nas eleições de meio de mandato (midterms) de 2022. As apurações para a Câmara dos Deputados seguem abertas, sem definição de qual partido terá seu controle. Os republicanos também venceram em oito dos 11 estados que tinham pleito para governadores, sendo eles: Indiana, Missouri, Montana, New Hampshire, Dakota do Norte, Vermont, Virgínia Ocidental e Utah, enquanto os democratas venceram em Delaware, Carolina do Norte e Washington.
Quatro aspectos centrais podem ser elencados como os protagonistas do embate entre Donald Trump e Kamala Harris. Pesquisas de boca de urna indicaram que os eleitores republicanos estavam preocupados com os rumos da economia nacional e com a migração, enquanto os democratas priorizaram proteção da democracia e o aborto. Levantamentos da agência de notícias Associated Press indicam que a economia e a imigração foram os dois assuntos com maior quantidade de respondentes, considerando-os como os temas mais importantes para a escolha do seu candidato. É possível considerar esse resultado como um êxito da campanha republicana, devido ao constante debate sobre os temas nas falas de Trump, especialmente pelo foco nos impactos da inflação e pela construção de um discurso do medo em relação aos migrantes. O uso da migração como ferramenta de campanha não era uma novidade e já havia sido levantado pelo OPEU.
Mudanças e novas tendências eleitorais
A campanha eleitoral de Trump foi bem-sucedida em ampliar sua votação em diferentes estados, entre eles, a Flórida, sendo essa a terceira vitória do presidente-eleito no Sunshine State. O estado, que anteriormente era considerado pêndulo por eleger democratas e republicanos, garantiu a vitória do democrata Barack Obama em 2008 e em 2012, mas se tornou efetivamente republicano a partir de 2016, quando Trump venceu com margem de 1,2% naquele ano. Em 2020, Trump obteve 3,3% de vantagem e, em 2024, quadruplicou sua margem para 13 pontos à frente, atingindo um total de 56% dos votos. A Flórida conta com 30 delegados, um número importante em uma corrida eleitoral acirrada como ocorreu nas últimas três eleições presidenciais.
Um condado específico floridiano pode ser destacado na adesão dos eleitores à plataforma trumpista: o de Miami-Dade. Esse condado corresponde a 12% da população do estado, com 2,7 milhões de residentes, em torno de 69% de sua população de origem hispânica. Duas cidades desse condado são mundialmente conhecidas por ser um importante destino turístico: Miami e Miami Beach. O condado de Miami-Dade era considerado um reduto democrata por escolher candidatos desse partido em todas as eleições presidenciais do século XXI. A mudança para o apoio aos republicanos já era ensaiada em 2022, porém, quando o governador republicano Ron DeSantis venceu no condado com 11 pontos de vantagem. Pesquisas já indicavam que Trump teria a maioria dos votos cubano-americanos no condado e, em 2024, Trump se tornou o primeiro republicano a vencer uma eleição presidencial em Miami-Dade neste século, obtendo 55,2% dos votos, com cerca de 127 mil votos de diferença para Kamala Harris. Considera-se que o discurso republicano de que os democratas são “socialistas” teria surtido efeito nos eleitores latinos. A forte presença hispânica, especialmente de cubano-americanos que migraram em fuga do regime socialista vigente em Cuba desde 1959 teria impactado nessa conversão ao republicanismo, assim como a presença crescente de venezuelanos e nicaraguenses que fugiram de autocracias de esquerda na última década.
Miami-Dade é um condado representativo da mudança do voto latino, que amplia seus votos em Trump, em comparação com as últimas eleições. Em 2020, Trump obteve 32% dos votos latinos contra 65% de Joe Biden e, em 2024, conquistou 45% desses eleitores, contra 53% de Kamala Harris. O voto latino ainda é majoritário dos democratas, mas o fortalecimento de seu apoio aos republicanos pode ser uma das chaves da vitória do partido hoje, especialmente em estados como Pensilvânia e Arizona, de onde Trump saiu vitorioso. Segundo a CNN, em nível nacional, os homens latinos inverteram seus apoios. Esses, em 2020, votaram em 59% para Joe Biden contra 36% para Donald Trump, enquanto em 2024 Trump teria obtido 54% dos votos, contra 44% de Kamala Harris. Caso a tendência se confirme nas eleições de meio de mandato de 2026 e o Partido Republicano amplie seu apoio entre latinos, será a confirmação da derrota dos democratas em conseguirem atingir eleitores que antes se acreditava que seriam eleitores pró-democratas, um risco para futuras eleições do partido.
Perfil dos eleitores e pautas fundamentais
O perfil do voto, segundo pesquisa de boca de urna da CNN, se dividiu. Homens votaram em Trump enquanto mulheres votaram em Harris. Já os eleitores de condados rurais em estados decisivos ampliaram as margens de Trump, que também venceu nos subúrbios, enquanto Kamala Harris reduziu os votos democratas em condados de cidades grandes, ainda que tenha vencido nelas. Trump avançou no voto entre jovens (18 a 29 anos), independentemente de gênero, além de ampliar sua liderança entre homens de 30 a 64 anos, tendo perdido votos entre os maiores de 65 anos. Ainda assim, a maioria dos homens jovens segue democrata, mas por uma margem menor em relação a 2020. Entre as mulheres, a maioria é democrata, independentemente da idade, mas o partido de Kamala Harris perdeu eleitoras entre as jovens e as com idade entre 45 e 64 anos. Em relação à renda, Trump venceu entre os grupos de renda inferior a US$ 50 mil anuais e entre US$ 50 mil e US$ 99.999. Kamala teve melhor desempenho, por sua vez, entre os com renda superior a US$ 100 mil anuais, grupo que apoiou Trump em 2020. Ademais, a NBC News também considera que os republicanos tiveram êxito entre eleitores não brancos, enquanto os democratas foram bem-sucedidos entre pessoas brancas, especialmente mulheres.
O apoio à pauta dos direitos reprodutivos das mulheres e à legalização do aborto em nível nacional também não se converteu em votos para Kamala Harris, ainda que tenha sido uma questão relevante para as eleições de meio de mandato de 2022. Dez estados americanos também foram às urnas para votar se queriam manter o banimento aos abortos após a anulação do caso Roe vs. Wade na Suprema Corte. Dos dez, sete decidiram aprovar emendas nas Constituições estaduais que garantem o direito ao aborto, sendo eles: Arizona, Colorado, Maryland, Missouri, Montana, Nevada e Nova York. Já na Flórida, no Nebraska e na Dakota do Sul, as medidas de acesso ao aborto fracassaram. Todavia, conforme The New York Times, há riscos de Donald Trump recorrer ao poder federal para anular as decisões estaduais sobre o aborto e proibir nacionalmente os procedimentos, sobretudo, se ele obtiver maioria nas duas casas legislativas.
Consideramos incorreto afirmar que uma aposta em um “voto identitário” dos democratas foi totalmente responsável por sua derrota. Afinal, as campanhas seguiram caminhos opostos. A de Trump foi consideravelmente identitária, a exemplo de quando afirmava que iria impedir a mudança de sexo de crianças nas escolas, além de mobilizar discursos de masculinidade e de supremacia branca. Já a de Kamala evitou que discursos identitários em prol de mulheres, negros e LGBTQIA+ se tornassem o centro de sua campanha, inclusive evitando o argumento de que se vencesse ela se tornaria a primeira mulher a presidir os Estados Unidos, preferindo focar em aspectos políticos gerais.
Implicações globais e reações à vitória de Trump
A vitória de Trump significa um fortalecimento da extrema direita global. Alguns dos principais expoentes desse campo político aguardavam ansiosamente pelos celebrados resultados. O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro comemorou publicamente a vitória trumpista, enquanto seu filho Eduardo Bolsonaro acompanhou presencialmente a apuração de votos na mansão de Trump, Mar-a-Lago, na Flórida. Na Europa, a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, foi uma das primeiras a parabenizar o presidente-eleito. Na Espanha, Santiago Abascal, presidente do partido Vox, também congratulou Trump, dizendo que sua vitória representa a importância do voto hispânico e que esse é o momento dos “patriotas” e da “liberdade”. Abascal é uma das principais vozes da extrema direita europeia e um efusivo apoiador de Trump. Outra figura extremista europeia, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, disse que a vitória de Trump é o maior “comeback” da história política estadunidense e que ela era necessária para o mundo. Já o presidente brasileiro, Luís Inácio Lula da Silva, notória liderança da esquerda latino-americana, parabenizou Trump e disse “A democracia é a voz do povo e ela deve ser sempre respeitada. O mundo precisa de diálogo e trabalho conjunto para termos mais paz, desenvolvimento e prosperidade. Desejo sorte e sucesso ao novo governo”. Com pragmatismo, Lula dá um passo atrás, após ter anunciado seu apoio à candidata democrata.
Para a União Europeia, a vitória de Trump é um risco duplo, tanto para sua segurança quanto para sua economia. Trump já ameaçou retirar os Estados Unidos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Ainda que essa perspectiva seja difícil de se materializar, o presidente-eleito pode cortar financiamento para a OTAN, reduzindo a capacidade de segurança da Europa, especialmente em um contexto de fortalecimento do presidente russo, Vladimir Putin, e de sua guerra contra a Ucrânia. Com menos dinheiro estadunidense na OTAN, a União Europeia deverá ampliar seus gastos em defesa, sem que isso se traduza em uma vitória militar ucraniana ante a Rússia. Ademais, a retórica trumpista anti-China reacenderá a guerra comercial entre os dois países, levando à redução da a atenção de Washington para o continente europeu, ao mesmo tempo em que Pequim pode ampliar suas exportações para a Europa, reforçando o desequilíbrio na balança comercial do continente. Bruxelas suspeita de que as ameaças de Trump de taxar entre 10% a 20% as exportações europeias, e em até 60%, as chinesas, poderão se confirmar. No todo, as lideranças europeias parabenizaram a vitória de Trump, reafirmando as relações históricas do país com o continente e o desejo de seguir com uma firme agenda transatlântica.
Para a América Latina, o retorno de Trump à Casa Branca implica cenários conflitantes. O primeio fortalecimento de figuras de extrema direita ou direita radical que tratam Trump como uma liderança a ser seguida, como Javier Milei (Argentina), família Bolsonaro (Brasil), José Antonio Kast (Chile), Keiko Fujimori (Peru) e Nayib Bukele (El Salvador). Também é um desafio para lideranças progressistas que buscarão se reeleger ou eleger sucessores ao longo do mandato de Trump (2025–2029), como Luís Inácio Lula da Silva (Brasil), Gustavo Petro (Colômbia), Gabriel Boric (Chile), Bernardo Arévalo (Guatemala), Xiomara Castro (Honduras), que preferiam um governo democrata com Kamala Harris por ser considerada “progressista”.
Trump trata a América Latina como uma ameaça à segurança estadunidense quando o assunto é migração. O mandatário afirma, historicamente, que migrantes latino-americanos são criminosos e que roubam empregos estadunidenses. Em seu primeiro mandato (2017–2021), ameaçou taxar as exportações mexicanas, caso o país não contivesse a chegada de migrantes na fronteira terrestre sudoeste dos Estados Unidos e implementou dois importantes programas que reforçaram a externalização das fronteiras estadunidenses para o México, o Remain in Mexico e o Frontera Sur. A ameaça foi renovada. Em 4 de novembro, Trump prometeu impor 25% de taxas às importações mexicanas, se o governo recém-empossado de Claudia Sheinbaum não frear a entrada de “drogas e criminosos” aos Estados Unidos. Tal ameaça é um perigo para a continuidade do acordo de livre-comércio entre Canadá, Estados Unidos e México (USMCA, na sigla em inglês). Ressalta-se que, caso efetivada, a medida colocará o México em uma imediata crise econômica e ampliará o fluxo migratório de mexicanos para os Estados Unidos, surtindo efeito contrário ao desejado por Trump. Ademais, sua vitória reforça discursos antimigrante e de controle fronteiriço na República Dominicana (que lida há anos com intenso fluxo migratório de haitianos) e no Panamá (cuja fronteira com a Colômbia na região da Selva de Dárien é um dos principais focos de crise humanitária, envolvendo migrantes nas Américas atualmente).
Quanto ao Oriente Médio, ainda na madrugada desta quarta-feira (6), o primeiro-ministro de Israel parabenizou a vitória de Donald Trump. Benjamin Netanyahu escreveu que o retorno de Trump à Casa Branca oferece “um poderoso compromisso com a grande aliança entre Israel e a América”. A proximidade entre Netanyahu e Trump representa um dos mais óbvios impactos dessa eleição para o Oriente Médio. Em seu primeiro governo, o presidente eleito já demonstrava grande apoio a Israel, transferindo a embaixada dos EUA para Jerusalém e reconhecendo a soberania israelense sobre as Colinas de Golã.
Vale lembrar, no entanto, que Trump tem fortes relações com a Arábia Saudita. A primeira viagem internacional de seu primeiro governo foi, justamente, para esse país. Em 2018, o membro do Partido Republicano defendeu a monarquia saudita, depois que a Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) indicou que o príncipe Mohammed bin Salman teria mandado assassinar brutalmente o jornalista Jamal Khashoggi, no consulado em Istambul, na Turquia. Em 2023, a monarquia saudita endureceu as relações com Israel e suspendeu as negociações com os EUA que incluíam a normalização das relações com o país governado por Netanyahu. É provável, então, que Trump tente uma aproximação entre os dois países, assim como fez com Israel e Emirados Árabes Unidos durante os Acordos de Abraão.
É possível que as outras nações do Oriente Médio não tenham papel central na política externa do governo Trump. Em uma ligação entre Donald Trump e Netanyahu na tarde desta quarta-feira (6), eles discutiram a “ameaça iraniana”, enquanto o Irã minimiza as eleições norte-americanas e se diz pronto para um confronto com Israel. Ou seja, as relações entre Washington e Teerã devem continuar hostis e, com a recente aproximação entre Irã e China, as sanções dos EUA sobre o país devem aumentar e impactar o comércio global de petróleo. Durante a campanha, Trump afirmou que Joe Biden não aplicou sanções rígidas o suficiente, o que encorajou o Irã a vender mais petróleo e a financiar atividades nucleares.
Para a África, a vitória de Trump é a retomada para um não-lugar, pois o primeiro mandato do republicano não definiu uma política externa para o continente. Espera-se que Washington passe a pressionar pelas negociações no conflito interno no Sudão, ademais de se afastar de uma intervenção na Somália — o que favoreceria imbróglios regionais da Etiópia. Atualmente, os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial da África e devem ampliar sua participação, com foco nos minerais críticos, cruciais para o fortalecimento da indústria dos EUA. Com a retomada de eventuais disputas econômicas com a China, o interesse geoestratégico pode ser acirrado no continente. O retorno de Trump à Casa Branca também pode significar uma paralisação nas sanções por violações de direitos humanos, devido à postura isolacionista do republicano. Uma dúvida é a renovação da Lei de Crescimento e Oportunidades para a África (AGOA, na sigla em inglês), mecanismo que facilita a comercialização de produtos dos países africanos para os Estados Unidos, cuja renegociação para uma potencial expansão se dará em 2025. Pode-se também prospectar uma administração Trump que opte por acordos bilaterais, em vez de seguir no atual formato multilateral da AGOA.
Em relação à Ásia, a presença dos Estados Unidos se define em termos de impedir o crescimento da influência chinesa na região. Sua abordagem se concentra na manutenção e no aprofundamento de alianças e fóruns multilaterais para exercer a influência dos Estados Unidos, como o Diálogo Quadrilateral de Segurança. A postura protecionista na economia de Trump pode entender o balanceamento entre Estados Unidos e China com maus olhos, o que prejudicaria esse tipo de política, ampliando a influência chinesa na região. Há de se considerar a relação com Taiwan, sendo um dos principais pontos de tensão com a China. Existem dúvidas sobre se Trump aprofundará o reconhecimento de Taiwan e de como isso se refletirá nas relações com Pequim. Além disso, as relações com a Índia devem continuar próximas, podendo ser aprofundadas, tendo em vista os laços pessoais de amizade que existem entre Trump e o premiê Narendra Modi. Como Trump gosta de ter em seu entorno político pessoas, com as quais possui boa relação pessoal, a possibilidade de aprofundamento bilateral com a Índia não pode ser descartada.
O segundo mandato de Trump e os desafios internos
Conhecido por promover grandes mentiras, desinformação e teorias da conspiração, Trump ensaiou durante a campanha eleitoral seus argumentos de que a eleição seria fraudada para beneficiar os democratas, tentando renovar sua “Grande Mentira” perpetuada após sua derrota em 2020. Todavia, nenhum tipo de fraude foi denunciado até o momento, especialmente pela avalanche de votos dos republicanos. É comum que a extrema direita alegue fraude quando é derrotada e esqueça esse discurso quando sai vencedora. Nem mesmo as acusações judiciais e sentenças criminais recentes de Trump foram suficientes para frear sua grande força política, o que indica que a extrema direita que defende a bandeira de ser a verdadeira combatente da criminalidade pode, sim, cometer crimes e obter apoio popular para atingir o poder. Sob o discurso de que os migrantes estariam invadindo os Estados Unidos e que os democratas estavam falhando na economia com o aumento da inflação, Trump obteve êxito em convencer os eleitores de que ele poderia solucionar os problemas do país.
Durante a corrida presidencial de 2016, e mesmo ao longo dos quatro anos de seu primeiro mandato, Donald Trump não era unanimidade no Partido Republicano. Muitas vezes, o establishment republicano condenou a falta de experiência política de Trump, seu temperamento impulsivo e até mesmo um alegado descompromisso com os princípios conservadores. Hoje, porém, o cenário é diferente: o trumpismo e seus símbolos, como o inescapável slogan “Make America Great Again”, tornaram-se praticamente sinônimos do partido e, em sentido mais amplo, do conservadorismo estadunidense. Espera-se que, com a renovação republicana à imagem e semelhança de Trump nos últimos anos, o novo governo e sua base de apoio sejam compostos por seguidores ainda mais leais do que da primeira vez, garantindo uma nova camada de legitimidade às falas e ações mais controversas do presidente. Ainda, a CNN considera que o segundo mandato de Trump não contará com assessores, conselheiros e secretários que atuem como forças estabilizadoras do governo. Afinal, o presidente-eleito se cercou de apoiadores fiéis que querem que Trump cumpra suas promessas, mesmo as mais radicais, e que demandem amplo esforço jurídico para não serem derrubadas.
Tal prospecto é especialmente preocupante, ao considerarmos que o Senado é agora majoritariamente republicano e que a disputa pela Câmara ainda é acirrada, o que pode acabar resultando em uma composição favorável aos assentos vermelhos. O artigo nº 51 (cuja autoria varia entre Alexander Hamilton e James Madison) dos Artigos Federalistas já ressaltava o medo da predominância do Legislativo em administrações republicanas, observação que justificou, entre outras razões, a criação do sistema estadunidense de freios e contrapesos. Para Orlando Samões (IEP-UCP), contudo, os “freios e contrapesos da democracia americana podem não funcionar tão bem desta vez”. Donald Trump é o primeiro réu criminal eleito para a Presidência dos Estados Unidos: em maio de 2024, um júri popular declarou o republicano culpado em um processo que o acusa de encobrimento por suborno de um escândalo sexual. Enquanto aguarda a sentença do caso, agendada para 26 de novembro, Trump enfrenta outros casos em âmbitos estaduais e federais — estes últimos sob a responsabilidade do procurador independente Jack Smith, que o magnata já prometeu demitir, caso vencesse a corrida eleitoral. Com o Departamento de Justiça já se mobilizando para encerrar os processos contra o republicano, é provável, portanto, que o presidente-eleito escape de todos seus apuros jurídicos. Considerando-se que a Suprema Corte tem maioria conservadora e que Trump indicou três ministros, a tendência é que o mesmo encontre resguardo jurídico para as suas decisões, inclusive as consideradas ilegais.
Em relação à imigração, espera-se que Trump implemente políticas ainda mais radicais do que as do seu primeiro mandato. O presidente-eleito prometeu, durante sua campanha, impor um plano de deportação em massa e uma proibição da entrada de estrangeiros vindos de certos países, sobretudo os de maioria muçulmana, como já havia feito no passado. Já sobre os direitos reprodutivos, incluindo o direito ao aborto, Trump não foi tão firme, mudando de posição ao longo da campanha e evitando detalhar seus planos. Apesar de se vangloriar por ter “matado Roe vs. Wade”, deixou claro que não assinaria um banimento federal do aborto, decisão que, segundo ele, cabe a cada estado tomar. Mesmo assim, é improvável que o presidente-eleito aprove políticas públicas para assegurar esse direito – como a oferta de medicamentos anticoncepcionais pelo governo –, uma vez que sua base eleitoral conservadora é veementemente contrária ao aborto.
De maneira similar, a posição de Trump sobre os direitos LGBTQ+ é inconsistente. No passado, declarou ser completamente contra o casamento homoafetivo. Em 2016, porém, após assumir a Presidência, afirmou que estava “tudo bem” com esse tipo de união, mas hoje, ainda assim, opõe-se a programas de inclusão e diversidade em instituições governamentais. Em relação aos direitos das pessoas trans, a situação é diferente. O republicano, assim como a maioria de seus apoiadores, nega a proclamada “ideologia de gênero”, prometendo, diversas vezes, acabar, por exemplo, com a suposta entrada de “homens em esportes femininos”. Espera-se, que, assim que assumir o cargo, Trump reverta as atualizações do Título IX – lei de 1972 que proibia a discriminação de gênero nas escolas – aprovadas por Biden a fim de contemplar, também, os estudantes trans.
Na economia, Trump buscará expandir sua reforma tributária de 2017 – cujas práticas expirariam em 2025 –, visando a reduzir a taxa de imposto de renda corporativo, elevar as tarifas internacionais e as taxas de importação (principalmente sobre os produtos chineses) e isentar beneficiários da Previdência Social e os cidadãos mais ricos de tributos. O republicano também já havia dado indícios, no passado, de que pretendia cortar benefícios do Medicaid (programa de saúde social dos Estados Unidos para famílias e indivíduos de baixa renda e recursos limitados), do Obamacare e do Affordable Care Act, mas foi criticado por não detalhar seus projetos, afirmando, apenas, que tinha “conceitos de um plano” durante o debate presidencial com Kamala Harris. Apesar de prometer “acabar com a inflação”, diversos especialistas afirmam que essas medidas poderão, na realidade, dispará-la.
Rumo ao Estado Pós-Democrático?
Os Estados Unidos ainda mantêm um obsoleto sistema eleitoral, instituído em fins do século XVIII, e que recebeu, desde então, a inclusão de apenas duas emendas. Trata-se de um sistema de eleição indireta, de voto facultativo, em que cada um dos 50 estados estabelece suas regras. Cada estado indica um determinado número de delegados, proporcional ao tamanho de sua população. No Colégio Eleitoral de 538 delegados, o candidato que atingir o mínimo de 270 é declarado vencedor, independentemente do voto popular. Trump, como vimos neste Panorama EUA, teve um desempenho incontestável.
Parece paradoxal que alguém que ponha o processo eleitoral em xeque reiterada e efusivamente seja a mesma pessoa que se regozija com (e faz questão de) uma vitória esmagadora sobre a rival – sobretudo, no voto popular. Em que pesem traços egoicos observáveis no indivíduo em questão, há, aqui, pelo menos dois aspectos que merecem ser mencionados para serem deixados como trilhas para futuras reflexões. O primeiro ponto é que manter a suspeição sobre o processo (eleitoral e também político) evoca, permanentemente, uma situação de crise. Crises podem significar e resultar em muitas coisas, a depender de quem comanda a orquestra. Como afirma Rubens Casara, no livro Estado Pós-Democrático (Civilização Brasileira, 2019), crises pode ser usadas (e fabricadas) para “permitir ações excepcionais”, a serviço de uns e outros e de suas agendas. Agora, crises que são evocadas de modo recorrente, ou seja, que são “permanentes”, não são mais crises, e sim a realidade, ou ainda, o novo modo de governar pessoas.
Essa condição designa o conceito que dá nome à obra de Casara e que apresenta algumas características, ou melhor, sintomas “pós-democráticos” (p. 22) presentes na sociedade: “da mercantilização do mundo à sociedade do espetáculo, do despotismo de mercado ao narcisismo extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico ao crescimento do pensamento autoritário, sempre a apontar na direção do desaparecimento dos valores democráticos e dos correlatos limites rígidos ao exercício do poder …”. Para conectar melhor essa ideia com o processo eleitoral que entra em sua última etapa neste ciclo, lembramos da advertência que Steven Levitsky e Lucas Way nos fazem sobre uma era de instabilidade endêmica na América. Em tal contexto, crises institucionais serão frequentes, com conflitos entre os Poderes Legislativo e Executivo, assim entre o Poder Judiciário e os Estados; eleições, contestadas; e instituições democráticas formais, o principal meio de obter e exercer autoridade política.
Com isso, retomamos o segundo ponto do argumento do Casara. Na democracia, baseamo-nos em um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e por meio de quais procedimentos; cuja legitimidade depende do consenso verificado periodicamente por eleições livres por sufrágio universal que tenham participação mais ampla possível; em que há o respeito às instituições, direito à liberdade de expressão, de reunião e afins; a possibilidade de existência do contraditório (com a liberdade de consenso e de dissenso); e, acima de tudo, o direito à liberdade de expressão, reunião e afins. Na pós-democracia, “em nome da democracia, rompe-se com os princípios democráticos”, e a própria “retórica democrática” é usada “contra valores democráticos”. Após o exposto, deixamos a pergunta: Para onde caminharão os Estados Unidos a partir de 2025?
[Correção em 11 nov. 2024, com inclusão de Lucas Barbosa como um dos autores]
* Victor Cabral é colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando em Relações Internacionais pelo IRI PUC-Rio e pesquisador visitante na Universidad Complutense de Madrid. Cobre a área de questões fronteiriças e migratórias dos EUA. Contato: victor.cabral97@gmail.com.
Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: tatianat19@hotmail.com.
Augusto Scapini é bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador colaborador do OPEU. Foi bolsista de iniciação científica (PIBIC/INCT-INEU/CNPq) de novembro de 2021 a fevereiro de 2024. Contato: augusto.scapini@ufrj.br.
Luísa Barbosa Azevedo, mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UERJ, bacharel em Relações Internacionais (IRID/UFRJ) e colaboradora do OPEU. Contato: luisabarbosazevedo@gmail.com.
Eduardo Mangueira é colaborador do OPEU, mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio) e bacharel em Relações Internacionais pelo IRID/UFRJ. Pesquisa as relações dos EUA com o Indo-Pacífico. Contato: eduardo.a.mangueira@gmail.com.
Lucas Machado é mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGCP-UNIRIO) e graduado em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ). Contato: lucasmbar@gmail.com.
Luiza Bueno Martins de Assis é graduanda do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), colaboradora do OPEU e pesquisadora do Latino Observatory. Contato: luiza.bueno653@gmail.com.
* Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 6 nov. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook
e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.