Público recorde assiste ao discurso de Kamala Harris em Washington, DC
Kamala Harris é ovacionada por apoiadores em sua chegada ao comício na Praça da Elipse, ao sul da Casa Branca, em 29 out. 2024 (Crédito: Kamala Harris/Facebook)
Série “Relatos de Washington”
Por Lucas Amorim* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Kamala Harris] [Série] [Relatos de Washington]
Estar em Washington implica a dicotomia entre se encontrar fisicamente próximo dos espaços de poder mais importantes do mundo, como a Casa Branca, o Capitólio e o Pentágono, e, ao mesmo tempo, não ter um contato direto com aqueles que os ocupam ou, em se tratando de um período eleitoral, pretende ocupá-los. Com a exceção dos voos do helicóptero presidencial Marine One e da eventual coluna de automóveis que indica a passagem de uma alta autoridade, são raras as aparições públicas do presidente e de altas lideranças, ou de eventos de campanha dos candidatos à Presidência.
Afinal, o sistema do Colégio Eleitoral privilegia os “estados-pêndulo”, categoria da qual a capital não poderia estar mais distante — nem é um estado e nem de longe é competitiva. O Distrito de Colúmbia é, com folga, a jurisdição com o resultado mais definido para a eleição. Os três eleitores de Washington, D.C. no Colégio Eleitoral jamais deram seus votos para um republicano, nem mesmo na acachapante vitória de Richard Nixon, que em 1972 ganhou com o apoio de 49 estados, algo impensável na atualidade. No nível do governo local, D.C. nunca elegeu um prefeito republicano, e a composição do Conselho do Distrito de Colúmbia (análogo à Câmara Legislativa de Brasília, com atribuições de assembleia estadual e câmara municipal) não conta com nenhum representante do GOP desde 2009, primeiro ano do governo democrata de Barack Obama.
Quando vi a primeira notícia de que Kamala Harris planejava fazer um comício na cidade em breve, compartilhei com o grupo de colegas pesquisadores visitantes em Georgetown, que provêm de áreas afins à minha como direito, ciência política e economia. Esse tem sido o principal grupo de contato que tenho na cidade. Todos se interessaram pela possibilidade de ver a vice-presidente na rara aparição de um candidato presidencial em um ato de campanha na sede do poder estadunidense.
Os jornais noticiaram que, inicialmente, a campanha de Harris esperava 8 mil pessoas na Praça da Elipse, espaço gramado ao sul da Casa Branca. No mesmo local, quatro anos antes, Trump fez seu infame discurso, estimulando seus partidários a “marcharem até o Capitólio”. Logo o comunicado junto ao governo local de Washington foi corrigido para 20 mil pessoas.
Multidão celebra Kamala, com monumento de George Washington ao fundo (Crédito: Kamala Harris/Facebook)
Debatemos entre nós quão cedo deveríamos chegar para conseguir um lugar adequado. Tendo em vista que os portões seriam abertos às 15h locais (menos uma hora em relação ao Brasil), concordamos em chegar às 17h, tempo suficiente para nos ambientarmos até o discurso, previsto a começar por volta das 19h. Fiquei sabendo depois que algumas pessoas chegaram às 7h da manhã, e uma colega de apartamento motivada pelo tema que tem entusiasmado muitas mulheres a votar — o direito à autonomia reprodutiva — me contou depois do evento que chegou às 13h30 para garantir um bom lugar.
Desorganização de principiante
O público foi bem maior do que as 20 mil pessoas inicialmente esperadas pela campanha da vice-presidente. Mais tarde naquela noite, o Serviço Secreto, que faz a segurança de altas autoridades como o presidente, a vice e ex-presidentes, informou que havia revistado cerca de 40 mil pessoas que adentraram o espaço gradeado da Elipse. Ao final do comício, a campanha estimou um público total de 75 mil, dentro e fora do espaço cercado no grande parque que circunda o Monumento a Washington. Essa subestimação do número de presentes garantiu uma entrada caótica.
Havia filas que levavam a lugar nenhum. Nenhum voluntário da campanha democrata se fazia presente, de forma que perdemos aproximadamente meia hora em uma delas. Apenas pela iniciativa de um conhecido que se dispôs a caminhar até a entrada, na esquina entre a 17th Street NW e a Constitution Avenue, que fomos informados de que era possível adentrar evitando filas, porém com algum tumulto. Já dentro do espaço gradeado, mas antes da barreira para revista, foi possível ouvir o barulho das cornetas e dos gritos de guerra de um protesto pró-Palestina.
Uma das longas filas que se formaram na 17th Street, entre as avenidas Constitution e Independence (Crédito: Lucas Amorim/ Arquivo Pessoal)
Perdemos mais meia hora na fila para passar pela rigorosa revista feita pelos agentes do Serviço Secreto e até mesmo por alguns da TSA, órgão responsável pela segurança nos aeroportos, provavelmente convocados de forma extraordinária para participar da segurança do evento. Além da perda de tempo decorrente da desorganização, a decisão de chegar relativamente tarde garantiu que o lugar de onde assistimos ao discurso vice-presidencial não fosse dos melhores. Veríamos a candidata apenas pelos telões.
Foram distribuídas pulseiras iluminadas, as do tipo que normalmente se encontram em shows como o da banda britânica Coldplay; bandeiras americanas; e cartazes com dizeres como USA e Freedom para garantir imagens fotogênicas do grande público presente para os jornais do dia seguinte — e também para as redes sociais. Mantenho alguns desses itens guardados como souvenirs da minha presença naquele dia.
Ao contrário de outros comícios, como aquele em Austin que contou com a presença da cantora texana Beyoncé, nenhum artista foi convocado para a capital federal para evitar distrações. Pronunciamentos de “eleitores comuns” foram realizados antes da fala de Kamala. Dentre eles, um casal do Texas que, diante de uma gravidez inviável, teve de esperar até que a vida da mãe estivesse em risco para que os médicos realizassem o procedimento de aborto de forma legal, devido à legislação do Texas que entrou em vigor após a queda do precedente Roe v. Wade. Craig Sicknick, irmão de Brian D. Sicknick, um policial que perdeu a vida na resposta ao ataque ao Capitólio, e um casal de republicanos da Pensilvânia que afirmavam não apoiar mais a candidatura de Donald Trump também falaram em defesa da candidatura da vice-presidente na noite de terça-feira.
Um vídeo também foi reproduzido com depoimentos de republicanos, incluindo a ex-representante (deputada) Liz Cheney, que deixaram de lado a política partidária para apoiar a candidatura de Kamala Harris. Nem seu candidato a vice, Tim Waltz, nem qualquer outro político democrata de monta tomaram o palanque.
Após um período sem ninguém no palco — apenas o setlist tão diverso que abarcava desde Beyoncé e Jennifer Lopez a Stevie Wonder distraía a população à espera do grande discurso da noite —, uma voz anunciou que todos deviam se levantar para ouvir o hino nacional. Em vez da canção patriótica, curiosamente, “Roar”, da californiana Katy Perry, ressoou na Praça da Elipse. A seguir, uma versão a capella de “The Star-Spangled Banner” foi executada, enquanto os apoiadores de Harris colocavam a mão sobre o peito ou agitavam suas bandeirolas.
Começa o show
O palco do lado norte da Elipse estava perfeitamente alinhado, de forma que a fachada sul da Casa Branca ladeada por várias bandeiras dos Estados Unidos serviu como plano de fundo para a chegada da vice-presidente. Kamala Harris, de terninho preto com lenço de seda no pescoço, tomou seu lugar em um púlpito que se diferenciava do comumente utilizado pelo presidente apenas pela aplicação do selo da vice-presidência. “Ela está com uma aparência bem presidencial, você não acha?”, comentei com a colega do grupo mais próxima, que respondeu acenando sim com a cabeça.
Kamala Harris discursa, com a Casa Branca ao fundo, para a multidão reunida na Praça da Elipse, em 29 out. 2024 (Crédito: Team PA for Harris-Walz/Imagem recebida por e-mail de 24info@padems.org)
A sempre sorridente Kamala cumprimentou os eleitores “GOOD EVENING, AMERICA!” e agradeceu pelo tempo dos presentes, que retribuíram gritando “KAMALA! KAMALA! KAMALA!”. Nem tudo na recepção da vice-presidente foram flores, porém, como mostram as telas da C-SPAN e dos canais de televisão por assinatura. Para nós, que estávamos mais ao fundo, era bem possível escutar a intensificação do protesto a favor da Palestina fora do gradil. Quanto mais os manifestantes gritavam de forma cadenciada “Free, free Palestine! Free, free Palestine” e batiam tambores, mais os apoiadores da democrata tentavam abafá-los com gritos de “Kamala! Kamala!”.
Harris iniciou seu discurso, lembrando aos eleitores que, em uma semana, teriam a chance de tomar uma decisão “que impactaria diretamente sua vida, a de sua família e o futuro deste país que amamos”.
* Confira a íntegra do discurso de Kamala Harris aqui *
“Nós já conhecemos Donald Trump” — o público reagiu com vaias à menção ao nome do opositor. “Ele é a pessoa que esteve neste mesmo local há quase quatro anos e enviou uma multidão armada ao Capitólio dos Estados Unidos para invalidar a vontade popular expressa em uma eleição livre e justa”, mais vaias para o republicano. Harris prosseguiu: “uma eleição que ele sabia que havia perdido. Cidadãos americanos morreram como resultado daquele ataque, e 140 policiais ficaram feridos”.
“E, enquanto Donald Trump estava sentado na Casa Branca assistindo à violência se desenrolar na televisão, sua equipe lhe disse que a multidão queria matar seu próprio vice-presidente. Donald Trump respondeu com duas palavras: ‘e daí?’”. Os eleitores voltaram a interrompê-la para vaiar o ex-presidente. “América, este é Donald Trump. E é este que está pedindo por mais quatro anos no Salão Oval – não para focar nos seus problemas, mas nos dele”.
Em uma mudança de tom, Kamala segue afirmando que “é hora de uma nova geração de líderes nos Estados Unidos”, oferecendo-se para fornecer essa liderança como a próxima presidente dos Estados Unidos da América. O público presente ovaciona e aplaude fortemente essa declaração.
“Em menos de 90 dias, ou Donald Trump ou eu ocupará o Salão Oval. E, no primeiro dia, se eleito, Donald Trump entrará naquele escritório com uma lista de inimigos. Uma vez eleita, entrarei com uma lista de tarefas, cheia de prioridades do que farei pelo povo americano”.
Algumas das falas e propostas do discurso de aproximadamente 30 minutos ressoam com declarações já realizadas pela candidata, sobretudo, algumas dadas no debate presidencial e em outros eventos de campanha. Kamala reafirmou que, assim que o Congresso aprovar uma lei restaurando a liberdade reprodutiva nacionalmente, enquanto presidente, ela irá sancioná-la com orgulho.
Reiterou que trabalhará com republicanos e democratas para aprovar a lei de segurança na fronteira precocemente abortada por Donald Trump, mas que, ao mesmo tempo, reconhece os EUA como uma nação de imigrantes. Nesse sentido, prometeu trabalhar com o Congresso para aprovar uma reforma imigratória que inclua um caminho para a cidadania para imigrantes e os chamados Dreamers. Repetiu a declaração de que, enquanto comandante em chefe das Forças Armadas, garantirá que os EUA mantenham seu posto com o Exército “mais forte e mais letal” no mundo.
Assista ao discurso na íntegra (Fonte: Canal de Tim Walz no YouTube)
Harris fez promessas ao povo americano de como conduzirá seu governo. Comprometeu-se a dar ouvido aos especialistas, àqueles que serão impactados pelas decisões por ela tomadas e também àqueles que discordam de suas opiniões. Contrastou sua posição com a do rival: “ao contrário de Donald Trump, não acredito que as pessoas que discordam de mim sejam inimigas. Enquanto ele quer mandá-las para a prisão, eu lhes darei um assento à mesa”. A democrata repetiu uma palavra-chave de sua campanha, ao prometer “abordar seu trabalho com a alegria (joy) e o otimismo que advêm de fazer a diferença nas vidas das pessoas”. Por fim, prometeu ser “uma presidente para todos os americanos” e sempre colocar o país à frente de seu partido e de si mesma.
A carta do excepcionalismo
Kamala apelou para o histórico de seu país, afirmando que os Estados Unidos nasceram quando os antepassados “lutaram pela liberdade contra um tirano mesquinho”. Prosseguiu: “Ao longo das gerações, os americanos preservaram essa liberdade, expandiram-na e, ao fazê-lo, provaram ao mundo que um governo do povo, pelo povo e para o povo é forte e pode perdurar. E aqueles que vieram antes de nós, os Patriotas na Normandia, Selma, Seneca Falls e Stonewall, no campo e nas fábricas, não lutaram, sacrificaram e deram suas vidas apenas para nos ver semear nossas liberdades fundamentais. Eles não fizeram isso apenas para nos ver nos submetermos à vontade de outro tirano mesquinho”. Talvez a crítica mais dura já realizada ao ex-presidente republicano.
“Estes Estados Unidos da América, não somos apenas receptáculo para os esquemas de aspirantes a ditador. Os Estados Unidos da América são a maior ideia que a humanidade já concebeu, uma nação grande o suficiente para abranger todos os nossos sonhos, forte o suficiente para suportar qualquer fratura ou fissura entre nós, e destemida o suficiente, para imaginar um futuro de possibilidades”, continuou.
Concluindo, Harris afirmou que, “em 7 dias, cada um de vocês tem o poder de virar a página e começar a escrever o próximo capítulo da história mais extraordinária já contada”. Mais uma vez agradeceu a todos os presentes e, em mais um ato bastante típico dos discursos presidenciais, invocou a proteção divina: “Deus os abençoe e que Deus abençoe os Estados Unidos da América. Obrigada!”.
Tão logo a vice-presidente deixou o palco ao som de “Freedom”, de Beyoncé, canção adotada como tema de sua campanha, o público cansado começou a se dirigir aos portões no lado sul da praça. A menção de Kamala Harris à luta dos heróis de guerra do país se repetiu na minha mente quando passamos lentamente em frente ao Memorial à Segunda Divisão de Infantaria. A espada dourada flamejante empunhada em riste, que simboliza a defesa de Paris contra os nazistas, é ladeada por colunas que carregam gravadas as vitórias da unidade militar nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais e na Guerra da Coreia.
O devaneio foi interrompido quando o grupo percebeu que a saída estava bloqueada — as dezenas de milhares de pessoas estavam sendo afuniladas em um portão minúsculo. O motivo do fechamento do portão era o protesto contra o genocídio em curso em Gaza. Assim que os agentes do serviço secreto abriram os grandes portões principais que finalmente deram vazão ao público, ouviu-se alguém cantar em tom divertido a letra chiclete da música de Beyoncé que acabara de tocar há pouco: “Freedom, Freedom, I can’t move, Freedom, cut me loose”.
Grupo de rabinos antissionistas, que fizeram parte das manifestações pró-Palestina naquela noite, debatem com apoiadores da candidata à Presidência (Crédito: Lucas Amorim/Arquivo Pessoal)
Já livres em plena Constitution Avenue, perguntei aos colegas europeus e latino-americanos o que tinham achado mais marcante daquele evento. Uma amiga se impressionou com a diversidade do público ali presente, tanto em termos de raça, quanto de idade e gênero.
No entanto, o comentário que mais encontrou apoio entre todos foi o quão intensa aquela demonstração de nacionalismo havia sido, desde o agitar das bandeiras, à performance do hino nacional, concluindo com o pedido de benção à nação proferido pela candidata. “Se foi assim aqui, imagina do outro lado”, observou um dos presentes, fazendo menção aos eventos de campanha republicanos. Alguém comentou da “bizarrice” do recém-acontecido comício de Trump em Nova York, e me lembrei de que, naquela ocasião, um dos oradores da noite comparou o território americano de Porto Rico com uma “ilha de lixo flutuante”. Especulamos durante alguns minutos sobre o impacto da fala na eleição vindoura.
A essa altura, já cansado, me despedi dos colegas e cortei o parque em torno do Monumento ao presidente George Washington, àquela hora avançada, iluminado artificialmente. Sem paciência para esperar os escassos ônibus noturnos da cidade, segui para a estação de metrô L’Enfant Plaza, ao sul do National Mall. Passando por prédios públicos e sede dos diversos museus mantidos pela Smithsonian Institution, em especial aquele conhecido como “O Castelo”, refleti sobre as chances de vitória dos dois candidatos que dependiam quase que inteiramente do resultado na Pensilvânia, com seus 19 delegados. Talvez seja conveniente ir até lá nesta reta final das eleições — pensei alto.
Na noite escura, contemplei o Capitólio iluminado e me dei conta de que havia, até então, feito um caminho semelhante àquele dos insurretos do 6 de Janeiro. Perturbado por esse pensamento, virei ao sul, adentrando o belo jardim com chafariz antes do Museu Hirshhorn, onde me embrenhei nas sombras daquela noite de lua nova.
* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) em período sanduíche (2024-2025) na Georgetown University financiado pela Fulbright Brasil. Contato: amorimlucas@usp.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 4 nov. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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