Registro de uma ‘watch party’ do debate Harris x Trump em um ‘pub’ em DC
Público do bar Dew Drop Inn assiste com atenção ao debate entre Kamala Harris e Donald Trump em Washington, D.C., em 10 set. 2024 (Crédito: Lucas Amorim/Arquivo Pessoal)
Série “Relatos de Washington”
Por Lucas Amorim* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Série] [Relatos de Washington] [Debate Presidencial]
O debate entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump prometia ser a primeira, e talvez única data, em que os candidatos à Presidência dos Estados Unidos se encontrariam face a face antes das eleições em 5 de novembro. Ciente da possibilidade de um outro debate entre os presidenciáveis não acontecer e tendo em vista a presença deste autor na capital americana, ficou acertada a decisão de que aquela noite não deveria ser gasta no diminuto quarto na suburbana Woodridge, a meros quarteirões da divisa com Maryland. Os hiperpolíticos habitantes da capital congregavam-se em bares, pubs e universidades para assistir juntos a um dos momentos mais marcantes da campanha de 2024, carregada de eventos inéditos, o que se convertia em uma oportunidade de mergulhar na cultura política local.
A possibilidade de atravessar a cidade de leste a oeste à noite para a watch party com colegas em Georgetown foi descartada. Calhou o convite de um conhecido para ir a um dos eventos marcados para aplacar o apetite dos residentes de D.C. por política, cerveja e petiscos. O bar Dew Drop Inn prometia salgadinhos de queijo e picolés como cortesia aos visitantes, além de desconto de 50% em uma bebida da casa com nome pouco publicável. Na descrição do post de divulgação do evento, o bar destilava seu pessimismo e sarcasmo com a eleição: “Venham todos, assistam com horror enquanto despencamos para o abismo regado a uísque da política. Um último grito antes de o país explodir em novembro!”. No entanto, o mais crucial para a decisão de escolher aquele lugar para assistir ao debate foi o fato de ele se localizar entre duas estações de metrô, a apenas algumas paradas de ônibus da minha morada provisória.
Imagem do post no Instagram que anunciada salgadinhos de queijo e picolés grátis, além de desconto de 50% em uma bebida da casa com nome pouco publicável (Crédito: Dew Drop Inn/Reprodução Instagram)
O bairro de Brookland, onde se localiza o estabelecimento, fica no quadrante nordeste do Distrito de Colúmbia. Desenvolveu-se como um subúrbio impulsionado pela abertura de linhas de bonde no século XIX e tem até hoje as linhas férreas como característica de sua paisagem e como conexão com outras partes da região metropolitana. A vizinhança também é conhecida como “Pequena Roma” pela forte presença de instituições católicas, como a Universidade Católica da América, o Santuário Nacional da Imaculada Conceição (a maior igreja católica na América do Norte) e sedes de diversas ordens religiosas.
Atualmente, o bairro passa por um processo de revitalização (e gentrificação) com a construção de edifícios residenciais, o que também deu origem a um emergente centro boêmio com diversas cervejarias e bares. O Dew Drop Inn faz parte dessa onda de barzinhos descolados e se estabeleceu em 2015 em uma construção de pedra outrora frequentada apenas por trabalhadores da construção civil. É possível avistar os trilhos da linha vermelha do metrô e dos trens regionais MARC e VRE do segundo andar do prédio, onde fica o balcão principal da área interna. Os pátios exteriores oferecem capacidade ampliada para eventos com mais pessoas. O espaço é decorado com peças de arte ready-made, como placas do metrô de Londres, cartazes da famosa casa de shows 9:30 Club e até mesmo um pôster da campanha do ex-prefeito Marion Barry.
Ao chegar ao salão principal, por volta das 20h30 locais (21h30 no Brasil), fui surpreendido pela lotação do espaço em uma terça-feira útil. Pela gentileza de um dos comensais, que me cedeu uma cadeira, consegui me ajeitar no escasso espaço que ainda restava. O ambiente estava completamente tomado pela algazarra que se espera de um bar e pelo som de hits pop dos anos 2000 e 2010. Recebi prontamente a porção de salgadinhos e o picolé vermelho, branco e azul, conforme o anunciado nas redes sociais, assim como uma cartela de bingo, ou melhor, “death-o”. Em vez de números, a cartela enumerava bordões dos dois candidatos como a pronúncia inconfundível de “China” de Trump (CHY-NAH!) e a possibilidade de que Kamala desse uma risada em um momento inoportuno.
A poucos minutos do início do debate, o murmúrio dos boêmios e a música eram o que ainda dominava. Quando os moderadores anunciaram o início do debate e começaram a informar as regras, a música foi desligada, e alguns começaram a pedir por silêncio, que veio por completo apenas quando ambos os candidatos se apresentaram aos púlpitos. Visto que aquela foi a primeira vez que eles se encontravam, a vice-presidente se apresentou e apertou a mão do adversário, ornado com a usual gravata vermelha, cor de seu partido, enquanto Harris usava um tailleur preto com uma camisa branca com babado no pescoço. Em comum, ambos usavam o onipresente broche da bandeira americana.
Começa o primeiro round
Kamala Harris inicia sua exposição, exaltando sua origem de classe média (raised in a middle class family) e propõe governar para criar uma economia de oportunidades (opportunity economy), expressões que, com certeza, teriam entrado em uma cartela de bingo no caso de um segundo (mas nunca realizado) debate presidencial. Delineia seu plano, mencionando algumas medidas, como créditos fiscais para famílias de primeira viagem e startups, e contrastando com o de seu adversário, de conceder reduções de impostos para os ricos e inserir tarifas generalizadas sobre todos os produtos importados, o qual ela nomeia, ironicamente, como Trump’s Sales Tax.
Na réplica, Trump defende suas tarifas como uma forma de forçar os outros países finalmente a pagarem por tudo que os EUA fizeram pelo mundo, em especial a China (menção que levou à primeira reação do debate: várias pessoas tinham “CHY-NAH” em suas cartelas). Criticou a desindustrialização e repetiu uma mentira conhecida, que imigrantes em massa haviam saído de prisões e “asilos para lunáticos”, talvez para confundir o eleitor em relação ao termo asilo político. Essa afirmação rendeu vaias e protestos da audiência que até então assistia relativamente atenciosa.
Kamala contra-atacou com uma fala bem ensaiada de como seu opositor havia deixado os Estados Unidos com “o pior desemprego desde a Grande Depressão, a pior crise de saúde pública em um século e o pior ataque à democracia desde a Guerra Civil”. Além disso, mencionou o pavoroso Projeto 2025, o que levou a mais alguns gritos de pessoas que tinham tal termo em sua cartela e a primeira onda de animação na plateia amplamente democrata presente no bar em Washington, D.C. (nenhuma surpresa quanto a isso, afinal). Trump apenas negou envolvimento com o plano, dizendo que “nem o leu, e nem gostaria de lê-lo” e justificou o desempenho econômico tendo em vista a pandemia inédita. Já se sabe que a história não é bem essa.
O debate pivotou para uma disputa sobre quem tinha uma postura mais dura em relação à China. Harris acusou o ex-apresentador de reality show de ter agradecido ao presidente chinês, Xi Jinping, na Internet, e de ter permitido a exportação de chips para a China, com os quais as Forças Armadas daquele país se modernizaram. Trump rebateu, acusando a rival de ter usurpado de sua agenda anti-China e sugeriu enviar-lhe o famoso boné vermelho com os dizeres Make America Great Again. Em ato contínuo, acusou-a de ser marxista, o que causou gargalhadas no bar e até mesmo um ousado grito de “I wish!”. Kamala também parece ter-se divertido com a fala do opositor, e sua sorridente reação se tornou uma das imagens mais conhecidas no pós-debate.
A próxima pergunta feita pelos moderadores tocou em um assunto delicado para o ex-presidente Trump: direitos reprodutivos e acesso ao aborto. O republicano foi questionado por ter afirmado “se orgulhar” da decisão da Suprema Corte (bingo!) que derrubou Roe v. Wade (bingo duplo!), precedente que garantia o direito ao aborto no nível federal, e de ser o presidente mais “pró-vida” da história dos EUA. O tabu religioso usado para mobilizar a base republicana está longe de ser consenso na sociedade americana, que apoia a legalidade da interrupção da gravidez na maior parte dos casos por uma margem de 63%.
Cartela de bingo (ou death-o) distribuída durante a watch party no Dew Drop Inn (Crédito: Lucas Amorim/Arquivo Pessoal)
Fora da câmara ecoica da direita, Trump defendeu sua posição, dizendo que havia estados no país que permitiam o aborto até o nono mês de gravidez, e até mesmo a execução do recém-nascido após o nascimento, uma mentira tão inescrupulosa que os moderadores se viram obrigados a desmentir imediatamente — o que não é comum nesses debates.
Kamala acusou Trump de ter selecionado os três juízes da Suprema Corte por ele nomeados com a única intenção de acabar com o precedente Roe v. Wade. A democrata destacou casos como o de Amber Thurman. Ela morreu por sepse por ter serviços de saúde negados durante um aborto espontâneo – os médicos temiam sofrer sanções penais, se interviessem antes da morte do feto. Pela segunda vez, o público progressista da capital reagiu de forma entusiasmada, após Kamala afirmar que iria assinar uma lei federal garantindo o acesso ao aborto.
O próximo tema polêmico pressionava a vice-presidente: imigração. Harris defendeu a Border Act of 2024, uma proposta legislativa introduzida pelo governo democrata com apoio inicial da delegação republicana no Congresso. A democrata afirmou que Trump orientou os líderes republicanos a não votarem na proposta para não dar vitória a Biden em um tema caro ao seu eleitorado.
Foi aí que Kamala deu uma das grandes invertidas desse debate, atingindo um dos pontos suscetíveis do rival: mencionou o baixo público nos comícios de Trump, afirmando que mesmo os eleitores que comparecem desistem em meio às falas enfadonhas e sem sentido do republicano. O público do Dew Drop Inn entrou em polvorosa como uma turma de colegiais diante de uma grande tirada. Mesmo na amostra enviesada, a estratégia de Kamala de distrair o público (e o adversário megalomaníaco) frente a um tema difícil pareceu ter funcionado.
Trump foi colocado em posição duplamente desconfortável. Entre se defender em um tema de política pública e uma ofensa a sua honra pessoal, optou por iniciar pela segunda, proferindo uma série de disparates e insistindo em que os comícios de Harris eram inflados artificialmente com pessoas pagas para comparecer. A (sempre) sorridente vice-presidente ocupava metade da tela, reagindo ora com surpresa, ora uma risada irônica.
O momento viral do debate
O ex-presidente rebateu com uma acusação falsa que já circulava no Twitter há algumas horas: imigrantes haitianos estariam comendo animais de estimação, cães e gatos. Enquanto Harris gargalhava na TV, parte do público washingtoniano reagia com descrença do que tinham acabado de ouvir, enquanto outros debatiam se as risadas haviam ocorrido em um momento inadequado, o que renderia outra marcação na cartela do bingo. Uma pessoa bravejou: “Not the f… cats and dogs, bullshit!!!”.
Após a acusação (que não seria estranha em terras brasileiras) de que o país se tornaria uma Venezuela, caso Harris ganhasse, o moderador se viu na posição de ter novamente de rebater a fala de Trump: o gestor municipal de Springfield, Ohio, já havia declarado à ABC News que não havia relatos de desaparecimento de animais de estimação na cidade. Trump insistiu, dizendo que “havia visto na TV” os relatos que trouxera ao debate. Mais risos no salão.
Trump havia evitado completamente a pergunta de por que havia interferido na não adoção da lei de segurança na fronteira. Harris mais uma vez aproveitou o gancho para expor a falta de controle emocional do rival e afirmar que tinha o apoio de mais de 200 republicanos, dentre os quais muitos haviam trabalhado para Trump durante seu governo (2017-2021).
Entregando uma marca registrada de seu período como estrela de TV (You’re fired!), o republicano afirmou que aqueles que haviam se voltado contra si eram pessoas que ele havia demitido e, naturalmente, perdedores que tinham motivos para odiá-lo. Após outra torrente de bravatas sobre o Afeganistão, a inflação (bingo!), a Venezuela e o aumento na criminalidade no país, os moderadores intervêm uma terceira vez: estatísticas do FBI (a PF dos EUA) revelam que a taxa de criminalidade no país vem caindo de forma sustentada há alguns anos. Trump responde, afirmando que os dados do FBI são fraudados.
Harris toma a palavra e provoca o ex-presidente, referindo-se às suas condenações criminais (bingo!). Aproveita a oportunidade para se destacar, tendo em vista sua atuação como promotora. Trump rebate, dizendo que as condenações eram resultado de perseguição política e seriam revertidas em recursos, que poderiam se estender até a instância mais amigável — na visão do ex-presidente, a Suprema Corte.
A vice-presidente aproveita para expor ao público sua preocupação em relação à recente decisão daquela Corte, que reconhece como prerrogativa do presidente ter imunidade quase absoluta ante a jurisdição dos tribunais. Harris expôs o risco de, nessas condições, alçar Trump à Presidência pela segunda vez, já que ele incitara a insurreição de 6 de janeiro e agora ameaçava “abolir” a Constituição e utilizar o Departamento de Justiça para perseguir seus opositores.
A próxima pergunta, direcionada a Harris, foi sobre a inconstância de seus posicionamentos sobre temas como armamentos, fracking e migração. Encurralada, Harris rapidamente negou apoiar uma proibição do fracking, posicionamento que já havia endossado no passado. O tema é sensível, especialmente onde o debate foi realizado: a Pensilvânia, um estado pêndulo rico em recursos energéticos fósseis. Abordando o assunto, Trump também tensionou a coalizão democrata: de um lado, a ala à esquerda do partido, sensível à mudança climática; e, do outro, os trabalhadores brancos sindicalizados do decadente Rust Belt, beneficiados pelos empregos no setor fóssil.
A candidata afirmou que seus valores permanecem os mesmos. Que os adquirira com sua família, com a experiência de apoiar uma amiga abusada sexualmente na escola e como promotora na defesa de grupos vulneráveis, não com um empréstimo de 400 milhões de dólares como o que pretensamente Trump recebeu de seu pai. Finalizou sua fala, afirmando ser a pessoa que traz consigo os valores corretos: buscar elevar as pessoas, não derrubá-las.
Trump reforça a ideia de que Harris é inconstante em seus posicionamentos, citando o movimento para reduzir o orçamento da p olícia e proibir o fracking. Nesse momento, Harris tenta falar mesmo com o microfone desligado, ao que Trump ironiza: “I am talking now? Does that seem familiar?”, em referência à famosa frase “I am speaking” dita por Harris diante da interrupção de Mike Pence no debate vice-presidencial em 2020. “Será que posso marcar a casa ‘I am speaking’ da cartela do bingo? Era ela que deveria ter dito isso, certo?”, questionou alguém que estava sentado próximo.
A essa altura, o republicano fez a acusação bizarra de que Kamala Harris tinha como agenda em sua campanha dar cirurgias de redesignação sexual para prisioneiros imigrantes ilegais. Notei que alguns dos presentes no Dew Drop Inn tiveram de recorrer a seus pares para confirmar se tinham ouvido direito.
O moderador questiona Trump sobre a incitação à marcha ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. No bar, gritos isolados revelam que mais um espaço na cartela foi preenchido. O republicano diz que a manifestação dos seus apoiadores foi pacífica e patriótica, e logo voltou a falar sobre os imigrantes e acusar os oponentes de serem piores que os americanos que atacaram as instituições.
O ex-presidente insistiu em que quem deve ser processado são os imigrantes “que atearam fogo a Mineápolis”, não quem participou da insurreição do 6 de Janeiro. Pressionado, diz que não se arrepende de nada. Que foi apenas fazer um discurso, quando os manifestantes começaram a marcha para a sede do Congresso. Continuou afirmando que Nancy Pelosi (então presidente da Câmara) e a prefeita do Distrito de Colúmbia, Muriel Bowser, rejeitaram o apoio militar oferecido pela Casa Branca. Este veio, mas somente muito mais tarde, depois de o ataque já ter ocorrido.
Harris compartilhou sua experiência dentro do Capitólio naquela data, como vice-presidente eleita e senadora. A vice também lembrou da tragédia em Charlottesville, na Virgínia, onde neonazistas e extremistas marcharam sobre a cidade, e Trump disse que havia “pessoas boas” entre eles. Houve confronto, que resultou em uma pessoa morta e em vários feridos. A menção à marcha extremista rendeu uma onda de vaias dos presentes no bar que se tornou uma exaltação quando Harris lançou seu bordão “We are not going back!” — não se sabe se por causar animação genuína ou por estar na cartela do bingo.
Trump, que reivindica até hoje a vitória na eleição de 2020, é perguntado pelo moderador se agora admite a derrota. Dobrando a aposta, Trump diz que sua fala de que havia perdido “by a whisker” (por um fio) foram irônicas, e que imigrantes “que nem sabem em que país então” estão votando nas eleições. O moderador, então, desmente Trump pela quarta vez: mais de 60 juízes analisaram as acusações, mas nenhum concordou com quaisquer das reclamações a respeito de fraude. O republicano não se dá por vencido e afirma que o Judiciário sequer analisou seus pedidos.
Mirando em mais uma fragilidade do adversário, Kamala retruca, dizendo que Trump é uma vergonha internacional para o país, e que líderes internacionais e militares fazem troça do ex-presidente. O republicano utiliza como exemplo de líder que o admira, Orban, o primeiro-ministro húngaro que levou a jovem democracia em seu país a uma situação periclitante. Ele cita ainda Xi Jinping e Kim Jong-un, líderes da China e da Coreia do Norte, respectivamente, como pessoas que o temiam, o que colocava os EUA em vantagem em negociações — sobretudo, completa, tendo o declinante Biden em contraste.
Em relação ao conflito israelo-palestino, os moderadores pressionam Harris sobre o fato de, até agora, nenhum tipo de negociação ter obtido êxito em parar o massacre de palestinos na Faixa de Gaza. Harris inicia sua fala dizendo que Israel tem direito a se defender da “agressão terrorista e não provocada” do Hamas. Complementa, dizendo que “palestinos demais” já morreram, e defende a adoção de um cessar-fogo, assim como a negociação final de uma solução de dois Estados.
O público esmagadoramente democrata da capital pela primeira vez se dividiu em dois grupos: aquele que aclamou a afirmação a respeito do direito de defesa de Israel; e aquele que lamentou que Harris tenha optado por iniciar sua fala legitimando o governo Netanyahu, o que evidenciou a cisão da coalizão democrata a respeito do tema. Ao término de sua fala, ficou claro que nenhum grupo se sentiu plenamente contemplado pelo doisladismo da candidata.
Trump rebate, dizendo que fosse ele o presidente, nem o Hamas, nem a Rússia haveriam agredido Israel ou a Ucrânia. Donald também acusa Kamala de odiar Israel, por ter-se negado a se encontrar com Bibi. O ex-presidente segue afirmando que ela também odiaria os árabes e que, durante seu mandato, o Irã esteve controlado e não tinha recursos para financiar os ataques do Hamas, do Hezbollah e dos huthis no Iêmen. Harris acusa Trump de ser muito afeito a ditadores sanguinários como Vladimir Putin, na Rússia, e de até mesmo ter escrito “cartas de amor” ao líder norte-coreano, o que tirou algumas risadas do público em Brookland.
Intervalo antes do segundo tempo
Após o longo bloco de quase uma hora e algumas cervejas, o público no bar já se encontrava mais disperso, e o anúncio de um intervalo caiu bem. Aproveitei para dar uma volta pelo ambiente, pegar mais uma cerveja e uma porção de cheese balls, retirados de um grande pote de plástico. O DJ não perdeu tempo e, enquanto os comerciais eram veiculados, começou uma nova rodada de clássicos dos anos 2000 e 2010. Ao som de Party in the USA, hit de 2009 de Miley Cyrus, retornei ao meu lugar, de onde perguntei ao colega da mesa vizinha o que ele havia achado do desempenho dos candidatos até então. “Kamala foi promotora na Califórnia, estava claro que seu desempenho não seria ruim. Já Trump está fazendo o que ele sempre faz. Não tem muito o que comentar, mas o papo dos haitianos e os cachorros e gatos foi de arrepiar…”.
Cardápio improvisado informa o preço dos drinks e shots promocionais (e com nomes temáticos) para o debate no Dew Drop Inn. A foto foi tirada durante o primeiro intervalo do debate (Crédito: Lucas Amorim/Arquivo Pessoal)
Pouco tempo depois, a música cessou novamente para dar lugar ao áudio dos estúdios na Filadélfia. Rapidamente, o moderador realizou a primeira pergunta do segundo bloco, sobre a Guerra na Ucrânia. Ele foi direto: perguntou se Trump quer que a Ucrânia saia vitoriosa. Acrescentou o pedido de esclarecimento a respeito do que consistia seu plano de 24h para encerrar a guerra. Trump disse que queria a paz e o fim da guerra. Segundo o republicano, “milhões” de pessoas já haviam morrido, a despeito da falta de esforço das potências europeias, que não respeitariam Biden. Falando em Biden, disse que nem mesmo era possível saber se ele ainda era o presidente, já que fora retirado da chapa presidencial “como um cachorro”. Reforçou o compromisso: falaria com Putin e acabaria com a guerra antes mesmo da posse.
O moderador não se deu por vencido diante da esquiva de Trump em responder sua pergunta: tornou a perguntar se o ex-presidente acreditava que a vitória ucraniana era do interesse nacional dos EUA. Trump insistiu em que o fim da guerra era do interesse do país, negando-se a apoiar a causa de Kiev.
Kamala falou que a “solução de 24 horas” de Trump era a rendição total a Moscou. Disse que a integridade territorial da Ucrânia era do interesse dos EUA e reiterou o apoio ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, com quem havia conversado recentemente. Segundo a vice, se Trump fosse presidente, Putin já estaria vitorioso em Kiev de olho no território dos demais aliados europeus, a começar pela Polônia. Harris mencionou a comunidade polonês-americana que conta com 800 mil pessoas no estado. O que me levou a externar o pensamento ao colega do lado: “essa fala tem cara de ter base em algum relatório de pesquisa eleitoral, né?”. A estratégia parece ter rendido frutos, já que a candidata recebeu apoio da comunidade polonesa do estado.
Trump rebateu que Putin permaneceria sentado na capital russa e teria evitado perder 300 mil tropas. Incrédula, Kamala teceu um comentário inaudível fora do microfone. Trump acusou Kamala de ser a enviada da paz três dias antes da invasão, de forma a culpabilizá-la pelo ataque russo – uma mentira, segundo Harris. Trump, apesar de não ter mais a palavra, de forma questionável diante das regras do debate, cuspiu uma série de críticas contra a OTAN, aliança militar que acusou de “não pagar o suficiente” pela proteção americana. Um contraste marcado com as declarações de Kamala que chamou a aliança ocidental de “a mais forte coalizão da atualidade”.
Colocando a administração democrata (e, por tabela, a atual vice-presidente) contra a parede, o moderador fez uma pergunta sobre a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão, cujas forças armadas financiadas e aliadas a Washington não impuseram qualquer resistência à tomada violenta do poder pelo grupo fundamentalista Talibã.
Harris defendeu a iniciativa de Biden, exaltando o fato de que a retirada economiza impressionantes 300 milhões de dólares por dia do contribuinte e que, pela primeira vez em 100 anos, não há tropas americanas em zonas ativas de combate. Acusou Trump de ter negociado um acordo extremamente fraco com o Talibã e repudiou que ele tenha levado negociadores do grupo terrorista a Camp David, um lugar, segundo ela, de significância histórica para a diplomacia americana.
O palavrão favorito
Um momento que viralizou nas redes foi quando Harris quase deixou escapar uma obscenidade, em uma frase que saiu “this … former president”. Posteriormente, usuários de redes sociais recuperaram o vídeo em que, no passado, Kamala havia dito que seu palavrão favorito começava com “m” e terminava com o som “uh”, o que resultaria em mothafucka (filho da p…) que encaixava bastante bem na ocasião. Ao vivo, essa sutileza foi perdida. Nenhum dos presentes no pub em Brookland chegou a ter esse insight.
Trump extrapolou seu tempo, defendendo o mérito do acordo negociado por seu então secretário de Estado, Mike Pompeo, em fevereiro de 2020. Acusou a administração Biden-Harris de ter causado a invasão na Ucrânia, após Putin ter visto fraqueza na retirada aloprada e a queda de Cabul.
O debate seguiu com uma pergunta, cuja estranheza revela a excepcionalidade da corrida eleitoral: o moderador questionou Trump sobre sua afirmação de que “nem mesmo sabia que Kamala era negra, até alguns anos atrás quando ela se tornou negra e quer ser conhecida como negra”. O público do Dew Drop Inn, que mantinha relativo silêncio, irrompeu em uma algazarra indiscernível: um sinal de que achavam que a pergunta era difícil de ser respondida. Usando um argumento comum entre racistas inconformados, afirmou “não se importar” com a cor ou raça da opositora, mas apenas ter expressado sua estranheza com a “mudança”.
Kamala acusou seu opositor de explorar retórica racial diversiva e lembrou que Trump, apesar da tentativa de parecer “cego” à questão racial, já fora investigado por se negar a alugar apartamentos para pessoas negras em Nova York e por ter pagado um anúncio de página inteira no New York Times, pedindo a execução de jovens negros e latinos, conhecidos em grupo como Central Park Five, por um crime do qual eles eram inocentes. “Os Estados Unidos merecem um presidente melhor que Trump”, afirmou a democrata. O republicano tentou brevemente se defender, mas seu discurso foi abafado pelas vaias e falatório dos pândegos.
O ruído ambiente cessou, quando a palavra retornou à vice-presidente, que aproveitou para reiterar sua agenda econômica. Disse que seu plano incluía créditos fiscais de 6 mil dólares durante o primeiro ano após o nascimento de um filho, 25 mil de subsídio para a entrada da primeira casa própria e 50 mil para os americanos que gostariam de iniciar seu próprio negócio. Trump não permitiu que a democrata saísse por cima e bruscamente interrompeu sua fala, acusando-a de querer tomar as armas dos cidadãos (mais uma casa no bingo!), cortar o orçamento para as polícias e, novamente, tendo em vista onde o debate ocorria, de querer proibir o fracking, indústria importante para a economia pensilvaniana. Kamala tentou obter direito de resposta, que foi negado pela moderação.
A moderadora questionou Trump sobre qual seria seu plano para a área da saúde. Apesar de ter prometido, nove anos atrás, “revogar e substituir” o pacote legislativo conhecido como Obamacare, o que não aconteceu, até então o ex-presidente não havia detalhado o que faria no lugar. Após uma fala desconexa, Trump se enrolou e confessou não ter um plano, mas “concepts of a plan”. “CONCEPTS OF A PLAN???”, bravejou alguém incrédulo no Dew Drop Inn. De tão malsucedida, a fala se encontra estampada em uma camiseta disponível para compra pela Amazon, provavelmente para ser vestida de forma irônica por opositores do presidente.
De volta à política de saúde, Harris afirmou que o plano de Trump era o retorno ao período pré-Obamacare, quando pessoas com problemas de saúde crônicos pré-existentes, como diabetes ou asma, podiam ter o acesso ao plano de saúde negado pelas seguradoras. Relembrou que o finado senador John McCain foi quem salvou o povo americano da revogação sem substituto da lei da era Obama. Um dos republicanos anti-Trump, tendo por ele sido humilhado por seu histórico como prisioneiro na Guerra do Vietnã, McCain proibiu, inclusive, que seu desafeto político participasse de seu funeral, após uma luta perdida para o câncer. Nos EUA, cabe lembrar, veteranos de guerra são considerados heróis nacionais, caso do senador republicano.
A moderadora fez a ambos os candidatos aquela que seria a última pergunta do debate sobre a mudança climática. Kamala destacou a importância existencial de combatê-la, destacando iniciativas do governo Biden, como a Lei de Redução da Inflação, que contém subsídios vultosos – 1 trilhão de dólares –, voltada para o estímulo da indústria de energia limpa. Harris reforçou que a transição climática não tem deixado os trabalhadores do Rust Belt na mão, mas sim gerado empregos, como na indústria automobilística, antes forte na região. Fez menção, inclusive, ao apoio que recebeu de Shawn Fain, presidente do United Auto Workers, um dos maiores e mais diversos sindicatos dos EUA.
Trump aproveitou sua última fala para acusar a política de Biden e Harris de ter levado as fábricas a deixarem os EUA para se relocarem no México, “matando” a manufatura americana. Acusou o presidente Biden de ter perseguido essa política equivocada, uma vez que ele e seu filho Hunter haviam recebido subornos chineses e, curiosamente ao mesmo tempo, da Ucrânia e da esposa do prefeito de Moscou.
Imagem externa do Dew Drop Inn. No lado esquerdo superior, é possível ver o deck onde, no segundo intervalo, aproveitei para pegar um ar e terminar minha cerveja, observando os trens (Crédito: The Dew Drop Inn/Yelp)
Um novo intervalo permitiu uma breve pausa para respirar ar fresco no deck de madeira, acessível pela porta oposta à entrada do pub. De lá, podia acompanhar o fluxo incessante de trens que conectam a capital ao restante do país. Era possível escutar o DJ tentando animar o público ao som de Macarena. Ali fora, consumi o último gole do segundo (e também último) pint de cerveja, que já me pesava a cabeça, e planejei a trajetória de retorno para a casa. Infelizmente, devido à baixa circulação de ônibus noturnos, a volta teria de ser feita de bicicleta de aluguel, seguindo a recomendação do aplicativo.
O silêncio repentino me alertou da hora de reentrar no salão que a essa altura já não estava mais tão lotado – apenas os persistentes permaneciam. A vice-presidente Kamala Harris foi a primeira a fazer o uso da palavra para suas observações finais. Contrastou a visão do adversário, voltada para o passado, com a sua, para o futuro, aproveitando para repetir o lema “we are not going back” e se referir ao seu plano de uma “economia de oportunidade”.
Passou uma mensagem positiva de respeito a grupos vulnerabilizados, e também aos veteranos de guerra, repetindo a afirmação recebida com alguma polêmica nas redes de que buscaria manter as Forças Armadas americanas como as “mais letais do mundo”. Mencionou sua carreira como promotora, senadora e vice-presidente, para ressaltar que, durante toda sua vida, teve um único cliente: o povo americano. Finalizou, dizendo que será uma presidente para todos – republicanos e democratas. O discurso relativamente protocolar, que buscou mais reforçar o já dito do que introduzir novos, rendeu, ainda assim, algumas falas entusiasmadas de “Let’s go Kamala!” dos presentes.
Antes do início da fala do republicano, alguns gatos pingados já se direcionaram para a porta, enquanto outros, pouco interessados em ouvir as bravatas de Trump, resmungavam. O republicano iniciou na ofensiva, questionando por que Harris, enquanto parte do governo Biden, ainda não teria feito nada do que prometeu. Sugeriu à vice voltar para a Casa Branca e o Capitólio para pôr seus planos em prática.
Acusou-a de ser uma radical com posições políticas incompatíveis com as do povo americano. Afirmou que os EUA são uma nação falida e em declínio, motivo de risada e incapaz de mobilizar a força do país para encerrar as guerras e o caos no mundo. Concluiu, afirmando que Biden e Harris compõem a pior administração da história dos Estados Unidos por terem deixado milhões de imigrantes atravessarem a fronteira sul. Um contraste de tons e de conteúdo inquestionável.
Àquela altura, já quase 23h, o público que permanecia no estabelecimento não estava mais interessado em política, e o som do DJ novamente tomou o ambiente. Notei que teria de fazer um longo caminho a pé por uma parte desconhecida da cidade para chegar à estação de aluguel de bicicletas mais próxima. Meu colega de mesa se voluntariou a me levar até a saída e me indicar a direção que eu deveria tomar. Aproveitei para pedir uma última opinião sobre o debate.
“Kamala foi claramente a vitoriosa do ponto de vista objetivo, mas são tempos loucos, e eu mesmo não sou um eleitor que precisa ser convencido a votar nela… O problema é que o eleitor indeciso dos estados pêndulo não é o mais esperto… Ainda assim, espero que o debate os ajude a se decidir”.
* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) em período sanduíche (2024-2025) na Georgetown University financiado pela Fulbright Brasil. Contato: amorimlucas@usp.br.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 31 out. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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