Os EUA ante o Pacto para o Futuro e a 79ª sessão da Assembleia Geral da ONU
Líderes mundiais durante a adoção do Pacto para o Futuro na sede da ONU, em NY, em 22 set. 2024 (Crédito: UN News)
Por Rúbia Marcussi Pontes* [Informe OPEU] [ONU]
Em 22 de setembro, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou o Pacto para o Futuro. Resultado de um longo processo de negociação entre os Estados-membros, o Pacto sintetiza 56 ações que devem guiar os trabalhos da ONU para enfrentar a tripla crise planetária e garantir um futuro mais sustentável e inclusivo para as gerações futuras.
Nesse sentido, o Pacto para o Futuro conta com o Pacto Digital Global, que almeja, entre outros pontos, a cooperação digital baseada nos direitos humanos e no direito internacional e a governança de Inteligência Artificial e de dados. O Pacto também inclui a Declaração sobre as Gerações Futuras, que incentiva estratégias abrangentes, em níveis de governo nacional e local, para formulação e implementação de políticas que salvaguardem as necessidades e os interesses das gerações futuras.
O Pacto para o Futuro e seus dois anexos foram adotados por consenso pela Assembleia Geral da ONU. Mas a aprovação não veio sem tensão: minutos antes da adoção, Irã, Coreia do Norte, Belarus, Síria e Nicarágua — liderados pela Rússia — incluíram uma emenda no rascunho da resolução, depois do parágrafo 17, reafirmando “que as Nações Unidas serão conduzidas por um processo de tomada de decisão intergovernamental e que as Nações Unidas e o seu sistema não intervirão em questões que estejam essencialmente dentro da jurisdição doméstica de qualquer Estado, conforme previsto no Artigo 2 (7) da Carta das Nações Unidas…”.
Guiada pela República Democrática do Congo, a União Africana liderou os esforços para que a emenda da Rússia não fosse considerada e propôs uma moção para que não se tomasse qualquer ação em relação à emenda. Assim, a moção de não ação foi aprovada com 143 votos a favor, 7 contra (os sete proponentes da emenda, mais o Sudão) e 15 abstenções, o que garantiu que a emenda não fosse discutida, e o Pacto seguisse para aprovação final.
Por fim, em discurso durante a Cúpula do Futuro, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, congratulou os chefes de Estado e de governo pelo comprometimento com as ações que visam a restaurar o papel do multilateralismo na governança global. Para tanto, Guterres salientou que reformas profundas são essenciais para “… tornar as instituições globais mais legítimas, justas e eficazes, com base nos valores da Carta das Nações Unidas”. Nas palavras dele, “não podemos criar um futuro adequado para nossos netos com um sistema construído por nossos avós”.
Secretário-geral da ONU, António Guterres, discursa na abertura da Cúpula do Futuro (Crédito: ONU/Flickr)
Nesse sentido, as ações nove e dez demonstram o comprometimento dos Estados-membros para enfrentar a mudança climática, o que demanda ampla cooperação e maior financiamento, especialmente via ampliação de estratégias de mitigação e adaptação, e para promover o paradigma da harmonia com a Natureza. Além disso, diversas ações e outros pontos evidenciam a necessidade de aceleração da implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e do Acordo de Paris.
A reforma do Conselho de Segurança aparece como um dos comprometimentos mais antecipados na dimensão de paz e segurança internacionais do Pacto para o Futuro. Na ação 39, os Estados-membros da ONU afirmam que a reforma acontecerá e que a reparação da injustiça histórica contra a África – que não está representada nos assentos permanentes do Conselho – é uma prioridade. Contudo, o futuro do veto, que tanto impede qualquer reforma do órgão, continua uma incógnita.
Os EUA e o Pacto para o Futuro
Em coletiva de imprensa que antecedeu a Cúpula do Futuro, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, destacou a singularidade daquele momento e do referido Pacto. As negociações do documento ainda aconteciam quando a entrevista foi concedida, e, nesse sentido, a embaixadora reconheceu que o Pacto dificilmente acomodaria os desejos de todos os Estados-membros da organização. Mas ela expressou a dedicação do país nas negociações e acreditava em sua adoção.
Thomas-Greenfield também afirmou que os EUA priorizam um Sistema Internacional mais inclusivo e eficaz. Nesse sentido, “a Cúpula do Futuro nos dá uma chance de impulsionar essa mudança. E, como anunciei na semana passada, no Council on Foreign Relations [think tank estadunidense], os EUA estão entrando nesta AGNU com novos compromissos para criar uma ONU mais eficaz e, em particular, um Conselho de Segurança da ONU mais inclusivo, representativo e legítimo. Isso inclui, além dos compromissos anteriores, nosso apoio a dois assentos permanentes para países africanos, um assento rotativo reservado para Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento e nossa prontidão para colocar a caneta no papel por meio de negociações baseadas em texto”.
(Arquivo) A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, em entrevista coletiva na sede da organização, em NY, em 20 mar. 2023 (Crédito: Evan Schneider/ONU/Flickr)
Ela reconheceu o uso disfuncional do poder de veto no Conselho de Segurança: “[os EUA] não estão prontos para abrir mão do nosso poder de veto, mas estamos dispostos a ouvir o que os outros têm a dizer sobre isso e veremos onde isso nos levará”.
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, esteve presente na Cúpula do Futuro e discursou sobre o Pacto para o Futuro. Blinken também ressaltou o engajamento do governo dos Estados Unidos nas negociações do documento e disse que ele não deve ser visto como um texto definitivo, mas um guia inicial para que a ONU responda melhor a choques, como pandemias e desastres naturais, os quais serão cada vez mais comuns em frequência e em intensidade. Afirmou, porém, que os EUA são e continuarão a ser “resolutamente opostos ao revisionismo. Não aceitaremos esforços para derrubar, diluir ou alterar fundamentalmente os princípios centrais da Carta da ONU – soberania, integridade territorial, independência” – temas que os EUA ignoram histórica e continuamente.
Assim como a embaixadora dos EUA na ONU, Blinken ressaltou a reforma do Conselho de Segurança em seu discurso e trouxe especificações da proposta estadunidense: “os EUA acreditam que isso [a reforma] deve incluir dois assentos permanentes para a África, um assento rotativo para Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento, representação permanente para a América Latina e o Caribe, além dos assentos permanentes para países que há muito endossamos: Alemanha, Japão e Índia. Os EUA apoiam o início imediato das negociações sobre as reformas do Conselho”.
Debate Geral da 79ª sessão da AGNU
A adoção do Pacto para o Futuro antecedeu a 79ª sessão da Assembleia Geral da ONU. Em 24 de setembro, teve início o Debate Geral, que reuniu dezenas de chefes de Estado e de governo na sede da ONU, em Nova York. Seguindo a tradição, o Brasil, na figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi o primeiro a discursar.
Em seu pronunciamento, o presidente Lula ressaltou como a “difícil aprovação” do Pacto para o Futuro representa “o enfraquecimento de nossa capacidade coletiva de negociação e diálogo. Seu alcance limitado também é a expressão do paradoxo do nosso tempo: andamos em círculos entre compromissos possíveis que levam a resultados insuficientes”.
Lula defendeu a reforma da ONU, a qual deve começar pela própria Carta: “prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente. Apenas quatro emendas foram aprovadas, todas elas entre 1965 e 1973. A versão atual da Carta não trata de alguns dos desafios mais prementes da humanidade. Na fundação da ONU, éramos 51 países. Hoje somos 193. Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre seus objetivos e funcionamento”.
Além disso, o presidente Lula defendeu a revitalização da Assembleia Geral e ressaltou a urgência de se reformar o Conselho de Segurança, principalmente em termos de composição, métodos de trabalho e direito de veto.
Presidente Lula (primeiro plano, ao centro) discursa na AGNU, em NY, em 24 set. 2024 (Crédito: Loey Felipe/ONU/Flickr)
Também como de costume, os EUA foram o segundo país a discursar no Debate Geral. Em seu quarto e último pronunciamento à Assembleia Geral da ONU, o presidente dos EUA, Joe Biden destacou, o ponto de inflexão atual da humanidade e a necessidade de respeito aos princípios elencados na Carta da ONU, com destaque para a não intervenção, em clara menção à invasão da Ucrânia pela Rússia.
Mas Biden também ressaltou a necessidade de encerramento da sangrenta guerra civil do Sudão e do conflito no Oriente Médio, considerando que, para este último, “uma solução diplomática ainda é possível. Na verdade, continua sendo o único caminho para uma segurança duradoura”. Biden também mencionou a China e a política dos EUA para o país, no sentido de “administrar de forma responsável a competição com a China para que ela não se transforme em conflito”.
O presidente dos EUA também dedicou grande parte de seu discurso a discutir os usos da Inteligência Artificial (IA), afirmando que ela mudará “nossos modos de vida, de trabalho e de guerra”. Ele também ressaltou a necessidade de se discutir a regulação de IA e sua relação com a governança global, pois, “à medida que países e empresas correm para fronteiras incertas, precisamos de um esforço igualmente urgente para garantir a segurança, proteção e confiabilidade da IA”.
Em contraste com o discurso de Lula, Biden fez poucas menções à reforma da ONU, mas destacou que a organização precisa ser mais inclusiva e eficaz. Como antecipado por Thomas-Greenfield e Blinken, fez, no entanto, menção à posição estadunidense de reformar e expandir o Conselho de Segurança. Para finalizar seu discurso, o presidente Biden relembrou a decisão de não concorrer à reeleição, afirmando que é tempo para que uma nova geração lidere.
O que vem a seguir?
Especialistas ressaltam que o essencial não era o documento em si, mas o início imediato de ações em prol da reforma do sistema ONU, visando a um mundo mais sustentável e inclusivo. Alguns dias após a adoção do Pacto para o Futuro, porém, os EUA explicaram sua posição oficial em diversas das ações adotadas, indicando questionamentos e clara discordância de pontos centrais do documento.
Nesse sentido, o primeiro ponto de explicação que merece destaque se refere ao direito ao desenvolvimento, com os EUA afirmando que esse direito não é reconhecido em nenhuma das principais convenções de direitos humanos da ONU, bem como não é reconhecido como um direito universal que cada indivíduo pode exigir de seu próprio governo. As dificuldades de financiamento dos 17 ODS da Agenda 2030 também aparecem na explicação de posição, e, embora o tema apareça diversas vezes no Pacto, os EUA reafirmaram que não firmaram qualquer compromisso financeiro específico por meio do Pacto para cobrir alguma dificuldade de financiamento.
Vale mencionar também a dissociação do país com os parágrafos 24(a), (b) e (c) do Pacto. Os parágrafos tratam de temas comerciais e, mais especificamente, reconhecem o “… acesso comercial preferencial para os países em desenvolvimento, conforme apropriado, e um tratamento especial e diferenciado direcionado que responda às necessidades de desenvolvimento de cada país, em particular dos países menos desenvolvidos, em conformidade com os compromissos da Organização Mundial do Comércio”, bem como a necessidade de reformar a Organização Mundial do Comércio. Mas, para os EUA, esses parágrafos “não têm legitimidade em futuras negociações da ONU” e “não têm relevância para a política comercial dos EUA, para nossas obrigações ou compromissos comerciais, ou para a agenda na Organização Mundial do Comércio, incluindo discussões ou negociações naquele fórum”.
O país também desencoraja reformas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, ao relembrar que tais organizações internacionais contam com regras decisórias, órgãos de tomada de decisão e membros próprios. Logo, os chamados de reforma da arquitetura financeira internacional do Pacto “… não vinculam e não podem vincular essas organizações independentes, e as decisões relativas às suas atividades devem ser tomadas pelos seus respectivos órgãos dirigentes”.
A proposta de emenda liderada pela Rússia pode ter sido a demonstração pública de maior questionamento sobre o Pacto para o Futuro. Mas os pontos da explicação da posição oficial dos EUA indicam a primazia dos interesses nacionais do país e o baixo interesse em promover reformas efetivas no sistema ONU e na arquitetura financeira internacional – as quais são tão centrais para a implementação do Pacto.
Assim, desenha-se um futuro com grandes chances de a organização, prestes a completar 80 anos, continuar como nossos avós criaram, e não como as gerações futuras a idealizam e precisam que seja.
* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: rubiamarcussi@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 24 out. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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