Brasil

Os Estados Unidos e a Cúpula do BRICS, em Kazan

Foto em família, BRICS 2024 (Fonte: Russian International Affairs Council)

Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU] [BRICS] [Ordem internacional] [Rússia] [China]

A ordem internacional liberal construída pelos Estados Unidos em Dumbarton Oaks e Bretton Woods, ancorada na ONU, no Banco Mundial (BIRD), no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no dólar como moeda internacional, recebe, na 16ª Cúpula do BRICS, em Kazan, realizada de 22 a 24 neste mês de outubro de 2024, a mais contundente contestação em toda sua existência. Sob a liderança do anfitrião do encontro, Vladimir Putin, representantes de 36 Estados, entre membros efetivos e convidados, além de representantes de seis organizações internacionais, reuniram-se para discutir mudanças na ordem internacional, de modo a trabalhar pelo reconhecimento da multipolaridade do sistema internacional e a buscar justiça nas relações entre os Estados, em lugar de regras. O encontro, que nas palavras do chefe de Estado da Rússia, Vladimir Putin, reuniu o Sul Global e o Leste Global, representou, por assim dizer, o mais sério desafio jamais lançado contra a preponderância dos Estados Unidos nas relações internacionais. 

Esta não é a primeira contestação da ordem internacional que os Estados Unidos e seus aliados europeus enfrentam. Outras já foram lançadas. Em meados da década de 1970, no contexto da primeira crise do petróleo, os países do então denominado Terceiro Mundo propuseram uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). O objetivo maior do movimento era corrigir distorções do comércio internacional. Objetivamente, tratava-se de impedir o maior enriquecimento dos países ricos às expensas do empobrecimento dos países pobres. Os países do Terceiro Mundo obtiveram como resultado a criação do Sistema Geral de Preferências (SGP), pelo qual se protegia os países pobres, mediante fixação de cotas e estabelecimento de preços mínimos, da especulação que os países mais ricos promoviam com seus produtos primários. A mudança da ordem, todavia, não aconteceu. Pelo contrário. Em resposta a essa movimentação do Terceiro Mundo, os Estados Unidos e o Reino Unido, então liderados por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, comandaram um movimento de orientação conservadora que sustou a contestação da ordem internacional e agravou a clivagem global.

Representatives from countries of the United Nations sit in tiered rows with placards bearing names of their countries on them including: Togo, Thailand, Sweden, Swaziland, Sudan, Sri Lanka, Spain, and South Afrida along with many others.(Arquivo) Representantes de países das Nações Unidas se sentam em fileiras com cartazes com os nomes de seus países, como Togo, Tailândia, Suécia, Suazilândia, Sudão, Sri Lanka, Espanha e África do Sul, entre outros. Um projeto de declaração sobre o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional (NOEI) é adotado por um comitê ad hoc da sexta sessão especial da Assembleia Geral da ONU, em 1º de maio de 1974 (Crédito: Teddy Chen/Nações Unidas. Fonte: Foreign Policy)

Uma contestação diferente das outras

A contestação, a que hoje se assiste, difere significativamente das anteriores. Na atual, o processo foi deslanchado por cinco grandes países em ascensão econômica, entre os quais se destaca a China, que reúne todas as condições para, em um futuro não muito distante, tornar-se a principal economia do mundo, vanguardista em ciência e em tecnologia, bem como grande potência nuclear-militar. Os demais quatro países são o Brasil, a Rússia, a Índia e a África do Sul. A fundamental diferença em relação às contestações da ordem internacional anteriores consiste na reunião de cinco países representativos de diferentes pontos de vista: dois membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e potências nucleares (China e Rússia); dois países mais populosos do mundo (Índia e China); um país sul-americano (Brasil) e um africano (África do Sul). São cinco países representativos da diversidade étnica, religiosa e cultural da humanidade, com um passado comprometido com a luta pelo desenvolvimento econômico-social e que trabalham em favor da desconcentração do poder mundial.

A posição de defensor da ordem internacional dos Estados Unidos se vê, hoje, mais fragilizada, na medida em que a proposta do grupo BRICS vem ganhando adesões de países importantes. Ao grupo original somaram-se, na última reunião, mais cinco países. São eles: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Além desses recém incorporados, 36 Estados aguardam resposta à sua solicitação de ingresso. O enfraquecimento da posição dos Estados Unidos se deve ao fato de esses países desempenharem papel muito importante na economia mundial do petróleo. A inscrição como Estado indispensável das decisões relativas à questão da energia, base da economia industrial, é o que explica a polêmica em torno do veto brasileiro à inclusão da Venezuela no grupo, o que merece considerações à parte. 

Outra diferença muito importante da contestação da ordem internacional conduzida pelo BRICS, em relação ao passado, é que a atual contestação não reclama que os países do Grupo dos 7, Estados Unidos à frente, levem em consideração as reivindicações dos países em desenvolvimento e introduzam reformas na ordem de modo a atendê-las. No presente, o BRICS está se encarregando de construir a nova ordem à margem da ordem em vigor. Isto é, não está trabalhando para destruir a ordem internacional atual, tampouco para reformá-la. Todo o processo aponta na direção de tornar a ordem internacional isolada e irrelevante, até que a substituição aconteça por cooptação como algo inevitável. Esse processo de construção à margem teve início quando, por proposta da então presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, foram criados o Banco do BRICS (Novo Banco de Desenvolvimento) e o Arranjo Contingente de Reservas: o primeiro, com a função de financiar projetos dos países em desenvolvimento; e o segundo, com a missão de ser um fundo de estabilização monetária. Oficialmente criadas na 6ª Cúpula do BRICS, em Fortaleza (Ceará, Brasil), em julho de 2014, as duas instituições constituem alternativas ao Banco Mundial e ao FMI que se oferecem aos países em desenvolvimento para a execução de projetos de infraestrutura (BATISTA JR., 2015, 33-38).

Desdolarização e multilateralismo para uma nova hegemonia

Russia-BRICS Project Office | ⚡What is the BRICS union for you? We want to  know what your thoughts are about our great future within the framework of  this association.... | InstagramRealizada no formato expandido, a Cúpula de Kazan reuniu 35 países e seis organizações internacionais sob o lema Fortalecendo o Multilateralismo para um Desenvolvimento Justo e Seguro. Numerosas reuniões em grupos e em formato bilateral foram realizadas, havendo sido as discussões concentradas em três áreas principais: política e segurança; comércio e investimento; intercâmbios culturais e humanitários. Cada um desses países tem seu próprio caminho de desenvolvimento, modelos distintos de crescimento econômico e ricas história e cultura. É, obviamente, essa diversidade civilizacional e combinação única de tradições nacionais que fundamentam a força e o enorme potencial para cooperação não apenas dentro do BRICS, mas também dentro do círculo mais amplo de países com ideias semelhantes que compartilham os objetivos e os princípios do grupo. No total, a cúpula foi formada por mais de 200 eventos, organizados em 13 cidades russas, constituídos por “reuniões de ministros setoriais, conferências, seminários e o Fórum Empresarial, além dos Jogos Esportivos”.

O documento final do encontro, Declaração de Kazan, composto de 134 parágrafos, concentra os esclarecimentos sobre os três temas debatidos nas reuniões: Ampliação da Cooperação para a Estabilidade e a Segurança Global e Regional (“Enhancing Cooperation for Global and Regional Stability and Security”); Promoção da Economia e das Finanças para um Desenvolvimento Global Justo (“Fastering Economic and Financial for Just Global Development”); Fortalecimento das Trocas entre os Povos para o Desenvolvimento Social e Econômico (“Strengthening People-to-People Exchange for Social and Economic Development”).

Na coletiva de imprensa, em que prestou contas à opinião pública sobre os trabalhos realizados em Kazan, o presidente V. Putin declarou que:

“Cada um desses países tem seu próprio caminho de desenvolvimento, modelos distintos de crescimento econômico e uma rica história e cultura. É obviamente essa diversidade civilizacional e combinação única de tradições nacionais que fundamentam a força e o enorme potencial para cooperação não apenas dentro do BRICS, mas também dentro do círculo mais amplo de países com ideias semelhantes que compartilham os objetivos e princípios do grupo”.

Entre todas as questões abordadas nas reuniões do BRICS, a que maior interesse tem despertado é a relativa à desdolarização da economia mundial. Isto porque, a propriedade da moeda de trânsito internacional constitui a pedra de toque da hegemonia desfrutada pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. Ao desbancar a libra esterlina dessa condição, os Estados Unidos, mesmo depois de haver abandonado o padrão ouro em 1971, detêm o privilégio de emitir o dólar. Em vista disso, o trabalho que os financistas do BRICS vêm desenvolvendo no sentido de usar as moedas nacionais em suas negociações e a expectativa existente em torno de um acordo para a composição de uma cesta de moedas nos negócios internacionais, escapando assim do sistema de pagamentos que tem o dólar como moeda de referência, representa, na verdade, um golpe direto na preponderância dos Estados Unidos na economia mundial. Nas palavras de Putin, na mesma coletiva, “continuaremos a aprimorar a comunicação interbancária e a trabalhar na criação de mecanismos para pagamentos em moedas nacionais que sejam imunes a riscos externos”.

Passo em falso do Itamaraty

Na entrevista coletiva, o presidente Putin também anunciou a renovação do mandato de Dilma Rousseff na Presidência do Banco do BRICS. Essa renovação exprime o reconhecimento do trabalho que a ex-presidente do Brasil vem realizando à frente do Banco. Além de Dilma Rousseff estar muito prestigiada por Putin e Xi Jinping, aos quais agrada a maneira como vem se conduzindo na Presidência do Banco, a decisão é consistente com a Presidência que o Brasil vem exercendo do G20, bem como pelo fato de o Brasil ser o próximo país a sediar a Cúpula do BRICS.

À frente do banco dos Brics, Dilma tem desafio de consolidar entidade no  mundo | CNN Brasil(Arquivo) Cerimônia de posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o NBD, em 13 abr. 2023, em Xangai (Crédito: Ricardo Stuckert/PR. Fonte: CNN Brasil)

Por fim, cabe assinalar que a participação do Brasil na cúpula foi cercada de muita polêmica. Isto porque o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, representando o presidente Lula, ausente por razões de saúde, vetou o ingresso da Venezuela no grupo. Desse modo, o envolvimento do Brasil na contestada eleição presidencial da Venezuela, acompanhando a posição adotada pelos Estados Unidos, foi levada para fora do continente sul-americano. O veto brasileiro causou grande constrangimento, em virtude do forte apoio que os venezuelanos vêm recebendo tanto da Rússia como da China, uma vez que seu país, grande produtor de petróleo de alta qualidade, sofre intensas pressões políticas e econômicas dos Estados Unidos com vistas a depor o governo de orientação político-ideológica chavista de Nicolás Maduro. Além disso, a posição brasileira representa a ruptura com um país que, histórica e igualmente, vê a integração regional como objetivo político de muito valor.

 

Brasil nos BRICS eBook : Costa, Darc, Gonçalves, williams: Amazon.com.br:  LivrosNota bibliográfica

BATISTA JR., Paulo Nogueira. BRICS: Um novo fundo monetário e um nova banco de desenvolvimento. In: COSTA, Darc; GONÇALVES, Williams. Brasil no BRICS. Rio de Janeiro: Capax Dei, 2015. pp. 33-38.

 

Conheça os textos mais recentes do autor publicados no OPEU

Informe “Congresso: Partido Comunista Chinês se infiltra e influencia os norte-americanos”, 29 out. 2024

Informe “O Partido da Guerra”, 11 out. 2024

Informe “Relatório sobre Estratégia de Defesa Nacional 2024 adverte sobre grandes ameaças aos EUA”, 25 set. 2024

Informe “A tensa relação de Estados Unidos e China no Mar da China Meridional”, 13 jun. 2024

Informe “Rotas de colisão”, 18 de maio de 2024

Informe “Encontro de Xi Jinping e Joe Biden na Apec”, 15 nov. 2023

Informe “Repensar a Estratégia dos Estados Unidos”, 2 ago. 2023

Informe “Desglobalização, guerra e a tentativa dos EUA de Biden de conter a China”, 4 jun. 2023

Informe “O G7 de Hiroshima”, 19 de maio de 2023

Informe “Grande Estratégia dos EUA: continuidade, ou mudança?”, 2 mar. 2023

Informe “O que o Brasil faz no Mar Negro aliado à OTAN?”, 27 jul. 2021

 

A China e a nova ordem internacional - Editora Ayran*  Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU). Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023).

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 31 out. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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