Brasil

G20: um mundo justo e sustentável fora do papel?

Fonte: Global Donor Platform for Rural Development

Texto preparado para a cerimônia de abertura da IX Semana de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, 21/10/2024

Por Sebastião C. Velasco e Cruz* [Informe OPEU] [G20]

Antes de começar minha exposição, gostaria de chamar a atenção de todos para a declaração que se segue.

“As ameaças que os Estados Unidos enfrentam são as mais sérias e desafiadoras que a nação encontrou desde 1945 e incluem o potencial para uma grande guerra de curto prazo. Os Estados Unidos lutaram pela última vez em um conflito global durante a Segunda Guerra Mundial, que terminou há quase 80 anos. A nação foi preparada pela última vez para tal luta durante a Guerra Fria, que terminou há 35 anos. Ela não está preparada hoje.”

Esta afirmativa alarmante abre o Relatório Final, datado de 29 de julho de 2024, da Comissão sobre Defesa Nacional criada bi partidariamente pelo Congresso dos Estados Unidos.

Nosso assunto nesta mesa não é a Estratégia de Defesa Nacional, nem o Congresso dos Estados Unidos. Mas peço que a declaração que acabo de ler permaneça presente na mente de todos, como uma placa indicativa do rumo que vamos tomar, não exatamente até o ponto de chegada, mas a um entroncamento importante que a ele nos levará.

Agora, sim, entrando diretamente no tema que nos foi proposto: “Brasil: Um Mundo Justo e Sustentável fora do papel?”.

Confesso que fiquei um pouco confuso quando li o título da mesa na mensagem-convite que recebi do Lucca. Como assim, eu perguntei. Mundo fora do papel?

No momento em que o convite chegou, eu estava absorvido já há alguns meses na preparação de um texto de história intelectual, e não tinha nenhuma chave para interpretar o sentido do enunciado. Tudo se esclareceu quando o Lucca me informou do contexto do debate, e da referência direta à Conferência próxima do G20, que se realizará no Rio de Janeiro, daqui a algumas semanas.

Isso explica a menção ao papel. Conferências intergovernamentais são espaços de discussão sobre temas definidos e negociação em torno de documentos, e resultam tipicamente numa declaração final subscrita pelos Estados membros que participam da Conferência. Papéis, portanto.

No caso do G20 atual, papéis em quantidade muito maior, certamente. Isso porque o governo brasileiro transformou a natureza do encontro ao abrir a discussão dos temas em pauta à participação institucionalizada da sociedade civil. Discussão que envolve dezenas de grupos de trabalho, um número enorme de grupos e organizações sociais – no Brasil e no exterior – e que se desenrola desde o início do ano. Mais do que uma conferência, o G20 no Brasil é um processo. De certa forma a IX Semana de Relações Internacionais, organizada pelos estudantes da UFABC, faz parte dele.

Crédito: site do evento

Agora, ideias, críticas, demandas, propostas como as que estão circulando há tempos no G20 brasileiro só estão no papel porque estão no mundo.

Se recuarmos no tempo, 20 anos, por exemplo, veríamos que elas não estavam no papel – pelo menos não assim reunidas, e não no mesmo lugar.

Em 2004, o G20 já existia, mas como reunião de ministros de finanças e outras autoridades dos países integrantes, que se encontravam anualmente com o propósito de zelar pela estabilidade financeira global. O G20, então, ainda engatinhava, pois fora criado poucos anos antes na esteira de crise cambial que eclodiu em 1998 na Tailândia, se estendeu rapidamente à Coreia do Sul e à Indonésia, atingiu a Rússia e veio bater com força na nossa porta, quando desmontou o modelo de política macroeconômica desenhado pelo plano Real. Mas foi em 2008, com a crise financeira global desencadeada pela falência de um grande banco de investimento tragado pelo colapso do mercado hipotecário nos Estados Unidos, que o G20 assumiu a sua feição definitiva, como reunião de chefes de Estado. Os estudantes aqui no auditório não têm como se lembrar, mas os que somos jovens há mais tempo guardamos bem nítida na memória a imagem surpreendente do Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush – que alguns anos antes havia anunciado arrogantemente ao mundo que invadiria o Iraque, mesmo contra o voto do Conselho de Segurança da ONU – para derrubar o regime de Saddam Hussein, implantar a democracia naquele país e levar a paz e a prosperidade ao Oriente Médio – vimos este mesmo Bush adentrar inopinadamente a sala onde os participantes do G20 se reuniam, sentando-se ao lado do nosso Ministro da Fazenda, Guido Mantega, para humildemente trocar ideias sobre como sair do vórtice de uma crise financeira sem precedentes na história do capitalismo mundial, desde o crack da bolsa de Nova York, em 1929.

Saiba mais sobre o G20 nesta série do programa Diálogos INEU (Fonte: canal do YouTube)

No vídeo que registrou este momento histórico excepcional estão estampados dois elementos estruturais do mundo contemporâneo. E por mundo contemporâneo estou me referindo à ordem internacional que emergiu na última década do século passado com o fim da Guerra Fria, o desaparecimento do bloco socialista e a dissolução da União Soviética.

Com efeito, as imagens naquele vídeo mostravam que uma das propriedades estruturais da globalização neoliberal – um dos pilares em que se apoiava a ordem unipolar emergente centrada nos Estados Unidos – era a volatilidade dos ativos, com seu correlato: a elevada propensão a crises financeiras severas.

A outra propriedade evidenciada no vídeo era a nova geografia econômica mundial. O destaque recebido pelo Ministro da Fazenda brasileiro era uma ilustração do fenômeno. Mas, por trás dela, em forte articulação com ela, projetava-se a figura discreta, mas poderosa da China, de cujas políticas muito dependiam as perspectivas de conter os efeitos da crise financeira global.

Um outro atributo da ordem emergente no pós-Guerra Fria manifestou-se ruidosamente, também em 2008, fora do G20. Estou me referindo à intervenção militar da Rússia na Geórgia, que quebrou um tabu, desafiou o poder disciplinar da potência hegemônica e expôs aos olhos de todos uma falha grave no outro pilar daquela ordem, a saber, a existência de vasto arsenal nuclear à disposição do antigo inimigo, suficiente para arrasar – ainda que de forma suicida – os Estados Unidos.

Ora, poder militar e poder econômico são duas dimensões da realidade política mundial que se intercomunicam. No final da primeira década do século presente, a conversão do segundo ao primeiro já estava avançando rapidamente na China.

Commission on the National Defense Strategy | RANDEsta observação nos devolve ao documento da Comissão Sobre a Estratégia de Defesa Nacional do Congresso dos Estados Unidos, com o seu cenário assombroso de uma grande guerra nos próximos anos. O texto é extenso – tem quase 150 páginas – detalhado, farto em dados, análises e recomendações de políticas. Não caberia resumi-lo, mas as passagens a seguir dão uma boa ideia do teor da conversa.

“O exército dos EUA é o maior, mas não o único, componente de dissuasão e poder dos EUA. Uma abordagem eficaz para todos os elementos da estratégia de poder nacional … depende de um esforço coordenado para reunir diplomacia, investimento econômico, segurança cibernética, comércio, educação, capacidade industrial, inovação técnica, engajamento cívico e cooperação internacional”.

Ou seja, a estratégia de defesa nacional dos Estados Unidos deve ter a transversalidade que a nossa ministra Marina Silva almeja para a política nacional de meio ambiente. Nada de novo aqui. Este tipo de transversalidade estava no coração da Doutrina de Segurança Nacional que as ditaduras latino-americanas, aí incluída a brasileira, importaram nos anos 1960 dos centros de formulação estratégica estadunidenses.

Retorno ao documento.

A concepção de força da Estratégia Nacional de Defesa de 2022 não considera suficientemente a competição global ou a ameaça muito real de conflito simultâneo em mais de um teatro. Propomos uma Construção de Força de Teatro Múltiplo. ….

A concepção de força proposta é a espinha dorsal militar da nossa abordagem abrangente. Ela reflete a probabilidade de conflitos simultâneos em vários teatros devido à parceria de adversários pares (quer dizer, equipotentes) ou quase pares dos EUA e incorpora o sistema de alianças e parcerias dos EUA.

Os Estados Unidos devem se envolver globalmente — com presença militar, diplomática e econômica — para manter a estabilidade e preservar a influência em todo o mundo, incluindo no Sul Global, onde a China e a Rússia estão estendendo seu alcance.”

O relatório da Comissão sobre a Defesa Nacional dos Estados Unidos fala da guerra em múltiplos espaços geográficos como um cenário provável, mas o futuro que projeta não é mais do que o prolongamento do cenário presente. Sim, porque os Estados Unidos já estão em guerra, embora terceirizada, em dois teatros críticos: na Europa Oriental, onde aprofundam o seu envolvimento no conflito, não mais restrito ao território da Ucrânia, mas estendido ao da Rússia, que passa a ser vulnerado com armas de longo alcance fornecidas pela OTAN, guiadas por sistemas da OTAN e operadas, segundo alguns especialistas, por pessoal altamente especializado dos Estados Unidos. O outro teatro é o Oriente Médio, onde o governo norte-americano reforça seu aparato militar e o aciona, sempre que preciso, em defesa de Israel, a quem abastece com um fluxo permanente de munições e armas, ao tempo em que lhe assegura cobertura diplomática.

Contenho-me para não externar aqui a minha indignação com a violência criminosa desse Estado celerado e com a hipocrisia daqueles que posam como donos da virtude e dos bons sentimentos, mas fecham os olhos à matança desenfreada em Gaza, que já ascende a mais de 45 mil vítimas, principalmente mulheres e crianças, e que agora se estende ao Líbano, enquanto seus perpetradores prometem levá-la ao Irã, à Síria, onde quer que se encontrem os alvos de sua fúria assassina.

Heavily destroyed buildings and several people around it.(Arquivo) Imagens da destruição do hospital Al-Shifa em Gaza, em meio ao cerco israelense, em abr. 2024 (Crédito: UN News)

Ao invés disso, retorno ao mote do G20 brasileiro e à questão proposta para o nosso debate: um mundo justo e sustentável… fora do papel? Já vimos que as ideias, as propostas, as aspirações expressas nas atividades em curso do G20 só estão no papel porque estão no mundo. Mas o mundo que elas projetam contradiz profundamente a realidade do mundo que nos cerca.

Crendo-se dotados de suprema sabedoria os céticos desmerecerão esse resultado com um sorriso irônico, vendo nele não mais do que devaneios, expressão piedosa de desejos, sonhos utópicos. Mas o que os “sabidos” desconhecem é que a utopia não pode ser confundida com utopismo, que é uma forma de fugir da realidade. A utopia é como a estrela no firmamento que guiava os navegantes na Antiguidade. Sem ela somos condenados a movimentos supostamente inteligentes, frustrados necessariamente em seu sentido, porque míopes, destituídos de direcionalidade. No mundo trágico que vivemos, a utopia é condição sine qua non do realismo, um pressuposto da racionalidade.

É claro, na sinfonia dodecafônica do G20 brasileiro haverá espaço para o desenho de vários horizontes utópicos. Seria um exercício fascinante reconstituí-los e examiná-los criticamente. Mas esta já seria uma outra história.

 

* Sebastião Velasco e Cruz é coordenador do INCT-INEU e do OPEU, Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

** Este Informe OPEU é uma adaptação do texto preparado para a cerimônia de abertura da IX Semana de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, realizada em São Bernardo do Campo, em 21 out. 2024. O tema do evento foi “Brasil em foco: G20, BRICS e COP30 como agentes de mudança?”. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

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