Eleições

Da Corte às urnas: o tema do aborto nas eleições americanas

Manifestações do lado de fora da Suprema Corte, em Washington, D.C., em 26 mar. 2024, enquanto os argumentos orais são ouvidos sobre a expansão do acesso à mifepristona pela FDA (Crédito: Victoria Pickering/Flickr)

Por Camila Brandão e José Eduardo Milheirão* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Aborto]

Com preocupações que perpassam economia, imigração, acesso a armas, relações com a China e guerras, a opinião pública americana também se preocupa com os direitos reprodutivos das mulheres. Em junho de 2022, quase 50 anos após Roe vs. Wade, responsável por garantir o acesso ao aborto nos Estados Unidos, a Suprema Corte mudou de decisão e sustentou que não há direito constitucional que assegure a interrupção da gravidez. Ao julgar o caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization, a Corte definiu que o aborto é uma questão moral e que a Constituição não impede que os cidadãos dos estados regulem ou proíbam o ato. A nova jurisprudência derrubou a histórica decisão de Roe vs. Wade e casos similares.

Neste cenário, o Pew Research Center publicou que em torno de 63% dos americanos são a favor da legalização do aborto. Alguns meses depois, durante o debate entre Kamala Harris e Donald Trump, em 10 de setembro, o aborto foi discutido. Se, por um lado, o candidato republicano afirmou que os democratas são “radicais” sobre o tema, por outro, a vice-presidente e candidata democrata relembrou a influência de Trump no julgamento que pôs fim a Roe vs. Wade. Cabe analisar qual é o papel da interrupção da gravidez no atual contexto político americano.

Os candidatos e o aborto: a posição de Donald Trump

A decisão que pôs fim a Roe vs. Wade teve contribuição das nomeações feitas por Donald Trump. Entretanto, a posição do republicano sobre o aborto na atual campanha eleitoral é analisada como contraditória e desagradável ao eleitorado conservador. Durante a primeira campanha à Presidência, Trump afirmou ser pró-vida, principalmente devido à pressão de apoiadores extremistas. Sua ascensão ao poder foi marcada por políticas e discursos antiaborto. Em 2020, tornou-se o único presidente que participou da Marcha pela Vida, organizada por movimentos pró-vida.

Após a queda de Roe vs. Wade e tendo em vista a corrida eleitoral, as contradições se tornaram mais frequentes. Em 2022, Trump afirmou que a decisão da Suprema Corte foi “a vontade de Deus”. Agora, o ex-presidente vocaliza abertamente a transferência da responsabilidade sobre o aborto para os Estados, sustentando que “o que quer que eles decidam deve ser a lei do país”.

Neste ano, Trump sinalizou que poderia consentir com a proibição ao aborto a partir da 15ª semana de gravidez. Ao mesmo tempo, o candidato também expressou a intenção de “manter as mulheres seguras”. É relevante ressaltar que o candidato a vice-presidente da chapa republicana, J.D. Vance, manifestou ser contra o aborto e que gostaria que o ato fosse ilegal. No último debate presidencial, Trump foi questionado sobre apoiar uma lei de proibição nacional, mas se esquivou ao responder, dizendo que concorda com a decisão sobre o tema na mão dos estado. Por fim, o republicano atacou os democratas, ao afirmar que eles apoiam a execução de bebês após o nascimento. A acusação falsa foi desmentida imediatamente pela mediadora, a âncora Linsey Davis, que frisou: “isso não é legal em nenhum dos 50 estados dos EUA”.

ABC's Linsey Davis Brutally Fact-Checks Trump During DebateA jornalista Linsey Davis, durante o debate presidencial (Crédito e fonte: print do debate ao vivo/Yahoo News!)

Os candidatos e o aborto: a posição de Kamala Harris

Kamala Harris defende que a decisão de abortar deve ser tomada pela mulher. A candidata pelo Partido Democrata afirmou ser a favor da garantia do direito ao aborto em todo o país, assumindo um papel fundamental na defesa desse direito. Durante sua carreira política, Harris manifestou sua visão favorável aos direitos abortivos, tanto no Senado quanto na campanha de 2020. A candidata é uma das principais críticas ao fim de Roe vs. Wade, condenando estados que implementaram leis que criminalizam médicos e mulheres que realizam abortos, atribuindo a culpa ao ex-presidente Donald Trump.

Recentemente, um vídeo de Kamala, durante seu período como senadora, viralizou nas redes sociais. Nele, Harris debate com juízes que fariam parte da Suprema Corte. Ela questiona um deles: “Você consegue pensar em alguma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino?”. A candidata não obteve resposta.

Em março deste ano, Harris fez uma turnê por estados para defender o direito ao aborto. Durante sua passagem por Minnesota, visitou uma clínica que realiza o procedimento, tornando-se a primeira vice-presidente dos EUA a fazer uma visita deste tipo. Em seu discurso na Convenção Democrata, em 22 de agosto, a candidata mencionou suas viagens e destacou os riscos dos abortos clandestinos, o desenvolvimento de doenças e os casos de vítimas de abusos sexuais sendo obrigadas a continuar a gestação por falta de acesso a um aborto seguro. Por fim, a democrata prometeu que, se eleita, restaurará Roe vs. Wade. No debate em agosto, Kamala voltou a confrontar Donald Trump, atribuindo a ele a culpa pela situação da saúde reprodutiva das mulheres no país.

Linha do tempo de Roe vs. Wade

Para compreender o contexto do aborto nos EUA, é preciso regredir no tempo, mais especificamente, para os anos 1970. Neste período, muitos estados consideravam o aborto como crime em sua legislação. Após o julgamento de Roe vs. Wade, a Corte entendeu que o ato de abortar estava amparado no direito constitucional à privacidade, garantido pela 14ª Emenda à Constituição.

O caso foi responsável pela decisão judicial mais famosa da Suprema Corte dos Estados Unidos. Roe vs. Wade começou no Texas, após uma mãe solo, Norma McCorvey, mover uma ação judicial contra uma lei local que criminalizava o aborto. Em 1969, Roe estava grávida pela terceira vez e gostaria de interromper a gestação. Contudo, a decisão foi desfavorável à mulher, e Norma foi forçada a dar à luz. Em 1973, o recurso chegou à Suprema Corte. Sob o argumento de que a lei violava o direito à privacidade, os juízes votaram 7-2 a favor de Jane Roe. A Corte definiu que os governos não tinham o poder de proibir o aborto e que o direito de interromper a gravidez estava assegurado pela Constituição americana. Apesar da decisão, o Tribunal fixou que haveria uma exceção ao aborto quando a gravidez estivesse em estágio avançado, assim, o direito da mulher à privacidade não seria absoluto.

Composição da Suprema Corte

A mudança no pensamento do Tribunal foi impulsionada pela formação de uma maioria conservadora entre os juízes. Em 2016, após a morte de Antonin Scalia, Barack Obama indicou Merrick Garland, um jurista moderado, para a Suprema Corte. No entanto, o Senado, com maioria republicana, recusou-se a votar na indicação, alegando que o sucessor de Obama deveria fazer essa escolha, devido à proximidade das eleições. Com a posse de Donald Trump em 2017, ele nomeou Neil Gorsuch, um magistrado conservador, consolidando uma maioria de 5 a 4 na Corte, mas ainda com decisões imprevisíveis.

Em 2020, a morte de Ruth Bader Ginsburg permitiu a Trump nomear Amy Coney Barrett, também conservadora. Seu nome foi aprovado pelo Senado, de maioria republicana, apesar das críticas pela proximidade das eleições, uma situação similar à de 2016. Com Barrett, a Suprema Corte formou uma maioria de 6-3 para juízes conservadores. Posteriormente, em 2022, o presidente Joe Biden nomeou Ketanji Brown Jackson, após a aposentadoria de Stephen Breyer, mas essa indicação não alterou a balança, que permanece 6-3.

P20220408AS-1467 | President Joe Biden congratulates Justice… | Flickr(Arquivo) Presidente Joe Biden cumprimenta a juíza Kentaji Brown pela aprovação da indicação à Suprema Corte. Ao fundo, a vice, Kamala Harris, na Casa Branca, em Washington, D.C., em 8 abr. 2022 (Crédito: Adam Schultz/Casa Branca/Flickr)

Os estados no pós-decisão

Após o julgamento de 2022, diversos estados implementaram mudanças em suas políticas de aborto. Quatorze estados, incluindo Alabama, Arkansas e Mississippi, proibiram o aborto em quase todas as circunstâncias. Outros 27 impuseram restrições ao período gestacional, com oito proibindo o procedimento antes da 18ª semana, e 19, permitindo até esse ponto. Apenas nove estados e o Distrito de Columbia mantiveram políticas sem restrições baseadas no tempo de gestação.

De acordo com o jornal The New York Times, muitos estados com políticas restritivas dificultaram o acesso ao aborto, impondo exigências que não seguem normas médicas, como exames de ultrassom desnecessários. Em Louisiana e na Virgínia Ocidental, as constituições estaduais excluem explicitamente o direito ao aborto. Além disso, sete estados impuseram proibição de seguros de saúde privados cobrirem o procedimento, enquanto Idaho e Wyoming restringiram o acesso às pílulas abortivas, responsáveis por cerca de metade dos abortos no país.

Em 7 de outubro, a Suprema Corte da Geórgia restabeleceu a proibição ao aborto após a detecção do batimento cardíaco fetal, o que ocorre por volta da 6ª semana de gestação, com exceções para anomalias fetais ou proteção da saúde da gestante. Essa decisão se sobrepôs ao parecer de um tribunal inferior que permitia o direito ao aborto até a 22ª semana. A opinião pública contrária argumenta que, na maioria das vezes, as mulheres não sabem que estão grávidas na 6ª semana.

Já em estados favoráveis ao aborto, como Califórnia e Illinois, foram adotadas políticas que facilitam o acesso ao procedimento. A Califórnia permite o aborto até 24 ou 26 semanas e oferece fundos estaduais para cobrir o serviço, obrigando ainda os planos de saúde a oferecer essa cobertura. Illinois protege, por lei, os dados das pacientes e dos profissionais de saúde envolvidos nos procedimentos.

A opinião pública sobre o fim do aborto

A visão dos estados mais conservadores em relação ao aborto diverge substancialmente, porém, da opinião do eleitorado. Segundo pesquisas realizadas pelo Pew Research Center, 63% dos americanos acreditam que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos. Dentro desse grupo (gráfico ao lado), 85% dos democratas e 41% dos republicanos concordam com a afirmação.

Chart shows Partisan divide over abortion has widened over the past decade

Fonte: site institucional

Especificamente, 25% dos americanos consideram que o aborto deveria ser permitido em todos os casos, enquanto 38% julgam que deveria ser legal na maioria. Já 28% dos eleitores supõem que o acesso ao aborto deveria ser proibido na maioria dos casos, e 8%, que deveria ser ilegal em qualquer situação. Além disso, outros dados coletados revelam que 54% dos americanos concordam que a decisão sobre o aborto deve ser somente da gestante. No entanto, 35% acreditam que o embrião é uma pessoa com direitos, em oposição a 45% que discordam dessa visão.

A pesquisa também revela que 64% das mulheres apoiam o direito ao aborto em todos ou na maioria dos casos, uma porcentagem um pouco maior do que entre os homens (61%). Ademais, 28% das mulheres acreditam que o aborto deve ser permitido em todos os casos, enquanto essa porcentagem entre os homens é de 21%.

O apoio ao aborto é mais forte entre adultos negros e asiáticos, jovens menores de 30 anos e pessoas com ensino superior. A maioria dos protestantes evangélicos brancos afirma que o acesso ao serviço deveria ser ilegal, ao contrário dos protestantes negros, católicos e brancos não evangélicos, que, em sua maioria, apoiam o direito ao aborto. Entre os americanos sem vínculo religioso, 86% defendem que o aborto deve ser legal.

Outro aspecto relevante é a queda ao apoio à Suprema Corte, principalmente após a anulação da garantia aos direitos abortivos. Atualmente, 51% dos americanos manifestam ter uma opinião desfavorável ao Tribunal, com 53% das mulheres expressando essa opinião, enquanto 47% permanecem com uma visão favorável, sendo a maioria composta por homens.

Entre os democratas, o apoio à Suprema Corte atingiu o nível mais baixo dos últimos 30 anos, especialmente após o julgamento de 2022, com somente 24% com uma opinião positiva. Em contrapartida, 73% dos republicanos continuam tendo uma visão favorável à Corte.

É possível restabelecer o direito?

Apesar da intenção de Kamala Harris em restabelecer os direitos ao aborto nos Estados Unidos, o cenário atual tende a favorecer a posição de Donald Trump sobre a autonomia dos estados. Para reverter a decisão do caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization, seria necessário que a Suprema Corte retrocedesse em seu próprio julgamento. Com uma maioria conservadora no Tribunal, essa reversão é improvável.

Uma decisão favorável à restauração dos direitos ao aborto é difícil a curto prazo, ainda mais em um cenário político polarizado. É incerto que ocorra uma mudança significativa na composição da Suprema Corte, uma vez que os juízes têm mandatos vitalícios, aposentando-se apenas por vontade própria. No final de julho, o presidente Joe Biden afirmou que sugeriria mudanças no Tribunal, incluindo o fim do mandato vitalício. As chances de aprovação dessas alterações pelo Congresso são baixas, visto a maioria republicana na Câmara dos Representantes.

Outra forma de restabelecer o direito ao aborto seria por meio de uma emenda constitucional. Aqui, as chances de aprovação também são baixas, pois é necessária a maioria de dois terços em ambas as Casas legislativas. Existe, ainda, a possibilidade de reverter a decisão a partir de uma convenção nacional convocada por dois terços das legislaturas estaduais. Embora os democratas tenham uma pequena maioria no Senado, a situação na Câmara dos Representantes é desfavorável, com os republicanos detendo 220 representantes, e os democratas, 211. Portanto, a probabilidade de aprovação para garantir acesso aos serviços de aborto é mínima. Além disso, a criação de uma lei pelo Congresso pode ser considerada inconstitucional pela Suprema Corte. Por último, a população local dos estados mais restritivos pode pressionar os legisladores para aprovar normas que garantam o acesso ao aborto ou, se autorizado, votar em referendo que assegure os direitos.

 

* Camila Brandão é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: camila.brandao@outlook.com.br.

José Eduardo Milheirão é graduando em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: edumilheirao@gmail.com.

** Primeira revisão realizada por Isabela Agostinelli (pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU/CNPq). Contato: isagostinellis@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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