Eleições

Conservadorismo moral e o peso do voto religioso nas eleições de 2024

(Arquivo) Eleitores de Donald Trump em comício de campanha no Centro de Convenções Phoenix, em Phoenix, Arizona, em 29 out. 2016 (Crédito: Gage Skidmore/Wikimedia Commons)

Por Luiza Rodrigues Mateo* [Informe OPEU] [Eleições 2024]

As pautas morais sempre tiveram um papel importante nas disputas políticas nos EUA, crescentemente polarizadas em torno de campos ditos progressistas e conservadores no que se refere a temas como direitos reprodutivos, direitos da população LGBTQIA+ e liberdade religiosa e sua expressão nas políticas públicas de educação, saúde, entre outras. Acaba tendo um impacto indireto, ainda, sobre a composição de “visões de mundo” que direcionam o posicionamento do eleitorado americano sobre questões como posse de armas e combate à criminalidade, migração, meio ambiente e política externa (apoio a Israel, por exemplo).

A polarização da sociedade na “agenda de costumes” tem moldado os resultados eleitorais nos EUA desde os anos 1970. O impacto político das chamadas culture wars (“guerras culturais”) se deve, sobretudo, à capacidade de alguns setores da sociedade na mobilização para o voto e o apoio a candidaturas democrata e republicana nos últimos ciclos eleitorais. Exemplo claro é o apoio consistente dos evangélicos brancos aos candidatos republicanos: em 2020, os evangélicos brancos eram 28% do eleitorado registrado, e 81% deles votaram em Trump.

Na eleição presidencial de 2024, algumas mudanças importantes devem ser observadas no que diz respeito aos temas que ganham centralidade na pauta moral, assim como à composição da demografia religiosa nos EUA e ao potencial de mobilização para o voto a partir de plataformas da sociedade civil, como igrejas e movimentos religiosos.

Agenda de valores e a questão do aborto

Em junho de 2022, a Suprema Corte dos EUA derrubou a proteção federal ao aborto, deixando a decisão para as legislações estaduais. Desde 1973, com a decisão Roe vs. Wade, os estados poderiam restringir o aborto apenas após a viabilidade fetal, com cerca de 22 semanas de gestação, exceto em casos que protegessem a vida ou a saúde da gestante. Com o fim da proteção federal, 13 estados americanos proibiram o aborto em todas as fases da gravidez, e sete estados baniram o procedimento após seis semanas de gestação.

Supreme Court keeps abortion legal | After the decision on W… | Flickr(Arquivo) “Mantenha o aborto legal”: protesto em frente à Suprema Corte dos EUA, em Washington, D.C., em 27 jun. 2016, após decisão  relacionada a caso de aborto no Texas (Whole Woman’s Health v. Hellersted (Crédito: Adam Fagen/Flickr)

A polarização partidária sobre a questão do aborto vem se ampliando. Entre 2007 e 2024, cresceu de 63% para 85% o número de democratas que defendem o aborto legal em todos (os quase todos) os casos. No campo republicano, o número se alterou pouco, de 39% para 41% neste período, revelando um consistente movimento “pró-vida” do campo conservador. O apoio à restauração da garantia legal aos diretos reprodutivos em nível federal é maior entre as mulheres, os afro-americanos, jovens entre 18 e 29 anos, americanos com maior nível de escolaridade e entre aqueles sem uma religião específica (religiously unaffiliated).

Nas eleições de meio de mandato, em 2022, a questão do aborto se tornou central e ajudou a conter a “onda vermelha” – os republicanos conquistaram maioria tímida na Câmara, e os democratas mantiveram a maioria no Senado. Na eleição presidencial de 2024, a questão voltou a ocupar espaço nos debates entre candidatos e seus vices, e haverá consulta direta sobre legislação própria para resguardar o direito ao aborto em 10 estados.

Ao longo de toda campanha, Kamala Harris declarou apoio à legislação que restauraria proteções estabelecidas pela decisão Roe vs. Wade. Como vice-presidente e como senadora, ela teve um papel central na defesa dos direitos reprodutivos e da saúde materna. Já Donald Trump tem um histórico de posicionamento bastante variável quanto ao aborto, incluindo manifestações em favor de proibição total em nível federal. Na reta final da campanha, Trump tem defendido que a legalidade do aborto deve ser decidida pelos estados. J.D. Vance, candidato a vice, tem sido mais vocal na defesa de medidas mais restritivas, incluindo a possibilidade de monitoramento de dados menstruais e gestacionais.

A expectativa do campo conservador é que uma futura presidência Trump pudesse ampliar as limitações práticas ao aborto a partir de iniciativas federais – por exemplo, impedindo o acesso a “pílulas abortivas” por meio de medidas sanitárias, ou do envio de medicamentos por correio entre estados. Este é o roteiro idealizado no chamado Project 2025, elaborado pelo think tank conservador The Heritage Foundation.

Ou seja, a questão do aborto se tornou, mais uma vez, um amálgama importante do campo religioso conservador à candidatura de Trump. Foi justamente durante seu governo que a nomeação de três juízes empurrou a Suprema Corte para a direita e permitiu o fim da proteção federal no direito ao aborto.

Pode-se argumentar que, desde as eleições de 2016, o apoio do eleitorado religioso a Trump seja meramente transacional, já que o republicano não representa o típico homem de fé ou o ideal de família tradicional defendida pelo campo conservador. No entanto, nem mesmo a recente condenação no processo envolvendo abuso e suborno à atriz pornô Stormy Daniels parecem distanciar o eleitor religioso do trumpismo.

O voto religioso nas eleições presidenciais

Se quiser sair vitorioso em novembro, Trump precisará manter energizado o campo religioso conservador que participa dos comícios estampando slogans como “Jesus is my savior, Trump is my president” (“Jesus é meu salvador, Trump é meu presidente”) e “Make America Godly Again” (“Faça a América Piedosa De Novo”). O apoio de evangélicos brancos, em particular, é histórico e foi decisivo nos últimos resultados eleitorais.

ABOS7329.jpg | A man wears a red face mask that reads "Make … | Flickr(Arquivo) Eleitor de Trump: Boné da NRA (poderoso lobby pró-armas nos EUA) e máscara de proteção “Make America Godly Again”, em uma manifestação contra a ordem de permanência em casa, por parte das autoridades do Colorado, por causa do coronavírus, em Denver, em 19 abr. 2020 (Crédito: helloandyhihi/Flickr)

George W. Bush recebeu o aval de 68% dos evangélicos brancos em 2000, e 78%, na sua reeleição, em 2004. Apesar das derrotas republicanas para Barack Obama, os evangélicos brancos perfilaram 73% dos votos para John McCain em 2008, e 79% dos votos para Mitt Romney, em 2012. Em 2016, Trump recebeu 77% dos votos de evangélicos brancos, enquanto apenas 16% votaram em Hillary Clinton. Em 2020, Trump recebeu 81% dos votos de evangélicos brancos, enquanto apenas 18% votaram em Joe Biden.

A pesquisa realizada pelo Pew Forum em setembro sinaliza que 82% dos evangélicos brancos pretendem votar em Trump, além de 61% dos católicos brancos e 58% dos protestantes brancos. Em todos os outros seguimentos no cruzamento religioso e racial, Harris conta com apoio expressivo dos eleitores. Hoje ela tem, inclusive, maior apoio entre protestantes negros e católicos hispânicos que Biden tinha em abril.

Harris vem de uma família religiosamente diversa: seu pai é um cristão batista nascido na Jamaica, sua mãe é hindu nascida na Índia, e seu marido é judeu. Ela se diz batista, mas tem um baixo perfil na expressão pública de sua fé, tentando se vincular à narrativa compassiva de justiça social. Já Trump se diz presbiteriano e, ainda que raramente mencione experiências ou crenças religiosas, tem mantido o suporte do campo religioso conservador com seu discurso nacionalista cristão. O slogan “Make America Great Again” acaba resumindo, para este público, uma defesa da americanidade mítica, branca, cristã e patriarcal, em oposição às mudanças demográfico-culturais e às pautas ditas progressistas.

A grande diferença quando se fala em apoio do bloco nacionalista cristão, da direita cristã e, mais especificamente, do eleitorado evangélico branco é sua efetiva capacidade de mobilização para o voto, considerando-se o caráter facultativo das eleições nos EUA. Estima-se que os evangélicos brancos representem hoje 14% da população americana, mas cheguem a compor entre 20 e 24% do eleitorado nas eleições de novembro. Além do tradicional apoio nos estados do chamado Bible Belt (Cinturão da Bíblia) – como Alabama, Mississippi, Louisiana, Arkansas, Carolina do Sul, Tennessee e Oklahoma, que deram vantagem substantiva a Trump em 2020 –, deve-se acompanhar a potencial base de apoio republicana em estados pêndulo como Carolina do Norte, Nevada, Geórgia e Arizona, que tiveram aumento no padrão de filiação e frequência religiosa na última década.

A 2011 survey map of religiosity shows the bible belt in dark green, stretch from Texas to N.C.

Estados do Bible Belt (marcados em verde-escuro), nos EUA (Fonte: ThoughtCo)

Os limites do apoio religioso ao campo republicano

A paisagem religiosa dos EUA mudou significativamente na virada do milênio. Em 1972, pelo menos 90% dos americanos se identificavam como cristãos. Cinco décadas depois, o número de cristãos cai para 63% enquanto aqueles que dizem “não ter uma religião específica” passam de 5% para 29%. A mudança é ainda mais expressiva entre os mais jovens, que viram a proporção dos religiously unaffiliated aumentar quase 50% na última década – população que tende a apoiar candidaturas democratas.

O acompanhamento de tendências feito pelo PRRI indica, ainda, uma redução da percepção da importância da religião na vida do americano (apenas 53% dizem ser uma questão central) e sua frequência a igrejas e centros religiosos (apenas 24% costumam comparecer a cultos uma vez ou mais na semana). Essas tendências apontam, junto com mudanças demográficas gerais – de composição étnico-racial, concentração urbana, escolaridade, entre outras – para os limites da base de apoio republicana no futuro próximo.

Importante frisar também que já no ciclo eleitoral anterior a National Association of Evangelicals não apoiou Trump abertamente, e movimentos religiosos expressaram apoio a Biden – como o Not Our Faith, Evangelicals for Biden, Pro-Life e Evangelicals for Biden. Neste ano, organizações como Vote Common Good, Christians for Kamala e Evangelicals for Harris também buscam arregimentar o voto religioso para a candidata democrata. O grande desafio será, justamente, aumentar o apoio entre evangélicos brancos, ampliando o (ainda que tímido) incremento conquistado pelo Partido Democrata entre as eleições de 2016 e 2020.

Apesar das sinalizações para a manutenção do apoio a Trump nas pesquisas de intenção de voto, há que se registrar que mudanças na demografia religiosa, bem como questionamentos do trumpismo por parte de movimentos religiosos, podem representar limites no curto e médio prazo à base de apoio do campo republicano. As eleições de 2024 darão sinais para o futuro da aliança entre o eleitorado religioso conservador e o Grand Old Party, consagrado pelo ativismo de lideranças da direita cristã desde os anos 1970 e pela centralidade da agenda moral e guerra cultural no debate político dos EUA.

 

* Luiza Rodrigues Mateo é professora no curso de Relações Internacionais e no Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais na PUC-SP e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: lrmateo@pucsp.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 9 out. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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