América Latina

Venezuela e hegemonia dos EUA: impacto das sanções à luz das Convenções de Genebra

(Arquivo) ‘EUA tire as mãos da Venezuela’: protesto contra as intervenções e sanções dos EUA ao país sul-americano, diante da Casa Branca, em Washington, D.C., em 16 mar. 2019 (Crédito: Susan Melkisethian/Flickr)

Por Ailton Manoel Pereira Junior e Bruno Henrique Costa* [Informe OPEU]

O dia 12 de agosto de 2024 marca o aniversário de 75 anos da Convenção de Genebra. Os quatro tratados dela decorrentes e seus Protocolos Adicionais constituem o cânone do direito internacional humanitário, estabelecendo as normas legais para o tratamento de não combatentes em tempos de guerra. Entre diversas contribuições importantes, o artigo 33 da Quarta Convenção define que “nenhuma pessoa pode ser punida por uma ofensa que ele ou ela não tenha pessoalmente cometido. Punições coletivas e outras medidas de intimidação ou de terrorismo são proibidas”.

Pela ocasião da efeméride, um grupo de advogados e acadêmicos do mundo enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na qual defendem que essa noção de “punição coletiva é uma prática padrão da política externa dos EUA hoje, na forma de amplas e unilaterais sanções econômicas e financeiras. […] Estas medidas, embora divirjam de métodos de punição coletiva em conflitos convencionais, e sejam regularmente aplicadas fora de declarações militares de guerra, têm impactos sobre civis que podem ser tão indiscriminados, punitivos e mortais quanto”.

(Arquivo) Conferência diplomática em Genebra para o estabelecimento das Convenções Internacionais para Proteção de Vítimas de Guerra, em 1949 (Crédito: Comitê Internacional da Cruz Vermelha)

A carta ainda aponta para o fato de que o sofrimento e a piora das condições de vida da população atingida parece ser o principal objetivo das sanções econômicas estadunidenses, configurando a ação como ilegal ante o direito internacional humanitário, de acordo com as Convenções de Genebra. Como evidência citam a fala do então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que ao tratar das sanções contra o Irã, afirmou: “as coisas são muito piores para o povo iraniano, e estamos convencidos de que isso irá levar o povo iraniano a se revoltar e a mudar o comportamento do regime”. Por sua vez, Resolução 19/33 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sustenta que, de fato, “medidas coercitivas unilaterais”, como sanções econômicas, afetam principalmente as classes mais vulneráveis, prejudicando o acesso a itens essenciais como equipamentos de saúde e alimentos.

O fato torna-se mais sensível quando é enfatizado que os Estados Unidos são o país que mais aplica esse tipo de medida no mundo — em torno de 15 mil vezes, o triplo do segundo colocado, a Suíça —, afetando cerca de 60% dos países periféricos. Ainda assim, as lideranças e a estrutura política dos grandes países-alvo da guerra econômica estadunidense mantêm-se estáveis, como é o caso de Cuba, Rússia, Venezuela, Nicarágua e Coreia Popular, entre outros. A esse respeito, setores dirigentes dos EUA passaram a criticar a eficácia e os efeitos das sanções enquanto instrumento da estratégia do país, identificando-as como produto da influência de grupos de interesse sobre a determinação das políticas, com objetivos exclusivamente comerciais. Chegam a ressaltar que as próprias autoridades do Departamento de Estado e da Presidência teriam perdido controle sobre a aplicação de sanções, sendo essas dominadas pelo lobby corporativo que busca vantagens comerciais, gerando seu aumento expressivo nos últimos anos.

Independentemente da preponderância sobre suas formulações, o impacto concreto das sanções econômicas dos EUA, que visam ao alcance de objetivos particulares, sejam eles estratégicos ou comerciais, é a piora das condições de vida de grupos vulneráveis, principalmente aqueles de países periféricos com inserções dependentes no sistema internacional e no capitalismo global. A situação da Venezuela, dada a menor disponibilidade de recursos econômicos e geopolíticos, é exemplar a esse respeito. Apesar das tentativas do governo de Hugo Chávez de redistribuir a renda do petróleo, o país não conseguiu diversificar sua economia, permanecendo dependente dessa commodity, o que torna a nação mais vulnerável às flutuações de preços internacionais e às sanções impostas pelos Estados Unidos.

A construção do sistema de sanções econômicas estadunidense

A capacidade dos EUA de aplicarem sanções indiscriminadas com impactos globais deriva do poder estrutural do dólar na economia internacional. Sua origem remonta ao período da Segunda Guerra Mundial, no qual o país atuou como fiador da reconstrução europeia, ao mesmo tempo em que garantiu a prioridade estratégica no comércio internacional de petróleo com os países do Oriente Médio. Essa triangulação formou o sistema dólar-ouro, que, junto com a expansão militar do país, tornou o dólar a moeda de curso internacional, com sua emissão lastreada em ouro.

Nos anos 1970, a nova estratégia estadunidense gera transformações nesse sistema. Com o choque Volcker no governo de Richard Nixon, a conversibilidade do dólar em ouro foi quebrada, dando início ao sistema do dólar-flexível, cujo lastro passou a ser apenas o poder dos Estados Unidos. A partir daí, a consequente liberalização dos mercados financeiros, com a padronização de políticas de câmbio flutuante, fez o controle das taxas de juros dos EUA determinar os preços das demais moedas no mundo e influenciar seu balanço de pagamentos. Nesses períodos iniciais, sanções contra Cuba e o Irã, por exemplo, tenderam a se constituir enquanto bloqueios de redes comerciais, sob a contrapartida de os EUA pararem de comercializar com qualquer país que tivesse contato com eles.

Paul Volcker, former Federal Reserve Chairman | Ralph Alswan… | Flickr(Arquivo) Paul Volcker, ex-presidente do Fed (Crédito: Ralph Alswang Photographer/Flickr)

Por sua vez, a década de 1990 representou a expansão e o desenvolvimento dos mercados financeiros do mundo, o que tornou imperativo o uso do dólar para operações financeiras de grande escala, seja visando à administração dos riscos, aquisição de seguros ou mesmo à utilização como lastro para garantia de cumprimento dessas obrigações. Assim, a grande maioria dos fluxos financeiros globais passou a ter, de alguma forma, contato com a moeda estadunidense. Nesse contexto, com a nova mudança na política externa dos EUA, devido ao 11 de Setembro de 2001, o governo do país passou a utilizar uma espécie de direito de extraterritorialidade que o autorizava a gerenciar a conexão (ou não) de instituições financeiras de qualquer país ao sistema financeiro internacional, mediante a justificativa da possibilidade de ligação dessas instituições com o financiamento a atividades terroristas.

Nos anos seguintes, a partir dessas prerrogativas, sanções econômicas ganharam um novo patamar, tornando-se capazes de impedir não apenas o comércio, mas qualquer tipo de contato dos países-alvo com instituições financeiras estrangeiras, muitas das quais guardavam as reservas em dólar, utilizadas para estabilizações cambiais. A “bomba dólar”, derivada da “militarização do poder proveniente do papel central” do dólar no sistema internacional, levou a um aumento de cinco vezes da taxa anual de inflação do Irã entre 2018 e 2020, um aumento de quatro vezes na taxa de câmbio e uma queda de 13 pontos percentuais do PIB, efeitos similares a guerras tradicionais, agora geradas pelas citadas medidas coercitivas unilaterais.

Em síntese, o governo dos EUA tem a seu dispor a capacidade de influir de modo determinante sobre o funcionamento econômico, social e político de qualquer país em nível global, com base em um instrumento de poder irreplicável, a partir de seus interesses estratégicos nacionais e sem responsabilização direta por suas consequências.

As sanções estadunidenses sobre a Venezuela e a dependência petroleira

Na cobertura jornalística recente sobre as eleições na Venezuela, a condição de vida deteriorada do povo é comumente mencionada, ressaltando-se as grandes dificuldades pelas quais aquela população vem passando, em especial durante o governo de Nicolás Maduro. Pouco comentado é, no entanto, o papel da inserção dependente do país no sistema internacional, centrada na exportação de petróleo, aliada ao regime de sanções que dificulta ainda mais suas possibilidades de desenvolvimento autônomo.

Assim, se a análise feita acima acerca da dimensão do impacto das sanções estadunidenses estiver correta, a compreensão da situação do país deve considerá-las tanto ou mais do que as políticas, equivocadas ou não, do governo de Maduro. Isso porque a crise em que o país se afunda, e da qual não consegue se desvencilhar desde a metade de década passada, deve ser compreendida para além dos discursos simplórios que a grande mídia ecoa insistentemente, pautados ora no binômio democracia/ditadura, ora em um autoritarismo sanguinário de Maduro. Embora as diferenças políticas de estratégia entre Maduro e Hugo Chávez não devam ser descartadas, deve-se dedicar maior atenção à economia política do país e a sua inserção na hierarquia global.

The Organization of American States Shouldn’t Be Run by Regime Change EnthusiastsProtesto contra o governo de Nicolás Maduro em Caracas, abril de 2017 (Crédito: Edgloris Marys. Fonte: Robert Schuman Centre)

Os ciclos de crescimento e depressão da Venezuela coincidem, não por acaso, com as flutuações dos preços do petróleo no mercado internacional. É por isso que se fala em hiperinflação, insegurança alimentar e migrações a partir de 2014, precisamente quando a proporção US$/barril começa a despencar de US$ 140 no pré-crise de 2008 para US$ 30 em 2016. Mesmo assim, o quadro socioeconômico geral da sociedade venezuelana parece ter apresentado sinais expressivos de recuperação no último ano e nos meses que antecederam as eleições, com melhoras nos índices de preços e até um crescimento do PIB de 5% em 2023. Ainda é cedo para dizer, porém, que a tormenta passou.

A importância estratégica da Venezuela para a política externa dos EUA é antiga e pode ser demonstrada pelas suspeitas de envolvimento estadunidense no golpe de 11 de abril de 2002 contra o governo Chávez, retratado no filme “A revolução não será televisionada”. Mais recentemente, a virada estratégica de Nicolás Maduro no trato com a oposição – menos conciliador, para dizer o mínimo –, combinada com a conjuntura externa de baixa nos preços do petróleo, que contribui para a perda de legitimidade interna do governo, justificaram o tensionamento por parte de Washington. Nesse contexto, Barack Obama chega a declarar, por meio da Ordem Executiva 13.692, que o país era “uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos”, razão pela qual as sanções financeiras passavam a ser institucionalizadas.

Em 2014, durante o mesmo governo, é instaurada a Lei 113-278, cujo objetivo é “impor sanções específicas a pessoas responsáveis por violações de direitos humanos de protestantes antigoverno na Venezuela, fortalecer a sociedade civil na Venezuela …”, entre outras medidas. A partir desse momento, intensificou-se o congelamento de contas de instituições, bancos públicos e da Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA) em bancos internacionais, o aumento dos níveis de risco-país, e a proibição da realização de operações financeiras em dólares com a Venezuela.

O governo de Donald Trump contribuiu para o fortalecimento da postura anti-Venezuela: além de ter proibido transações que envolviam o governo venezuelano e a PDVSA, mediante a aprovação da Ordem Executiva 13808, no ano de 2019 ordena o congelamento das propriedades do governo venezuelano e de quaisquer indivíduos que lhe tenham dado assistência. Para se ter uma dimensão do impacto dessas medidas, estima-se que os embargos custaram à Venezuela mais de 40 mil vidas e US$ 6 bilhões, e isso apenas entre os anos de 2017 e 2018.

Impactos sociais das sanções: o caso da migração venezuelana

Os impactos dos embargos no cotidiano do povo venezuelano, brevemente suspensos por não mais que seis meses, em razão da maior dificuldade nas importações de petróleo russo com as consequências da Guerra na Ucrânia, já logo voltaram a surtir seus efeitos, sem que houvesse um alívio considerável do quadro de calamidade que o país enfrenta. Na falta de um mercado interno robusto e da citada ausência de diversificação produtiva para atender as necessidades mais básicas de bens de consumo – consequências, também, de uma industrialização tardia –, essa dependência da volatilidade do petróleo e as sanções estadunidenses repercutem na vida da população na forma do desemprego, da fome, de taxas galopantes de inflação e, em último caso, de uma inviabilidade de se permanecer no território, levando aos deslocamentos forçados.

Segundo dados recentes, já somam mais de 7,7 milhões os seus cidadãos dispersos pelo mundo na chamada “diáspora” venezuelana, que representa o maior fluxo migratório da história da América Latina, abarcando mais de 15% do total da população do país. Não é à toa que Maduro vinha esboçando tentativas – ainda que tímidas – de estimular o retorno desse contingente populacional. Tampouco são desprezíveis os desafios com que os países vizinhos têm de lidar no acolhimento desses imigrantes, que chegam aos montes, diariamente, nas fronteiras, em busca de uma nova vida. A Colômbia é o principal destino, com 2,9 milhões imigrantes venezuelanos, seguida do Peru, dos Estados Unidos, e do Brasil, com quase 570 mil imigrantes.

Fronteira do estado brasileiro de Roraima com a Venezuela, nas cidades de Pacaraima e Santa Elena de Uairén (Crédito: Amanda Magnani/Revista Crisis. Fonte: Revista Opera Mundi)

No que diz respeito aos emigrados para o Brasil, a chegada é por Pacaraima, uma cidade dotada de infraestrutura precária e com 20 mil habitantes, que eram cerca de oito mil no período anterior à intensificação da migração, por volta de 2015-2016. Esses indivíduos, desterrados de seu local de origem pela necessidade de sobrevivência, chegam muitas vezes subnutridos, carregando pouco ou nenhum pertence consigo e frequentemente tendo de enfrentar uma difícil jornada para enfim cruzar a fronteira em Santa Elena de Uairén.

Almejando um novo e mais profícuo projeto de vida, ou ao menos uma inserção minimamente digna no mercado de trabalho brasileiro, quando aqui chegam, enfrentam várias sortes de dificuldades: a xenofobia e o racismo são apenas duas delas. Afinal, mesmo não se distinguindo fenotipicamente dos brasileiros tanto quanto outros imigrantes, não deixam de ser racializados. Embora muitos, de fato, consigam alcançar uma situação socioeconômica mais digna do que a de sua terra natal, o desemprego e a informalidade são bastante comuns, o que frequentemente resulta em uma realidade material que contrasta com as expectativas da migração.

Com todos os problemas, não são incomuns nos relatos dos imigrantes venezuelanos a opinião de que o Brasil é, atualmente, o melhor país latino-americano para a migração: “O Brasil é um dos países que vi menos xenofobia, apesar de ter também. Em todos os outros países aqui perto é pior: Peru, Equador, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Argentina… Até os Estados Unidos é melhor. Lá no Peru é bem ruim mesmo, eles chegam a matar venezuelanos, como eles dizem as putas venezuelanas”, afirma Celeste (nome fictício), residente da Grande Florianópolis. É inegável, porém, que ainda há muito a ser feito para um acolhimento verdadeiramente humanitário.

Sobre os temores de uma nova onda migratória ainda mais expressiva com a vitória de Maduro, é preciso ter cautela. Embora, de fato, muitos venezuelanos aqui residentes possam repensar nas possibilidades de retorno à terra natal, o próprio Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou ainda não haver alterações no movimento transfronteiriço que justifiquem preocupações exacerbadas. As repercussões futuras a esse respeito precisam ser observadas, no entanto, depois de tão conturbado processo eleitoral.

Essas e outras dificuldades enfrentadas por esse grupo têm direta relação com a política de sanções estadunidenses. Afinal, conforme a fala de Pompeo, em consonância com sua declaração sobre o Irã, as sanções ao país sul-americano contribuem para a crise humanitária, na qual a Venezuela se encontra atualmente. Ao impedir qualquer possibilidade de diversificação produtiva e desenvolvimento econômico no país, exacerbada pela dependência petroleira, a política dos EUA para a Venezuela é exemplo de um processo de punição coletiva proibido pelas Convenções de Genebra e alvo das críticas apresentadas pela carta coletiva de diversos juristas e acadêmicos do mundo a Biden. Em nome de interesses estrangeiros, os direitos mais básicos são negados ao povo venezuelano, inclusive a vida na própria terra.

 

* Ailton Manoel Pereira Junior é bolsista de IC do INCT-INEU, auxiliar de pesquisa do Núcleo de Economia e Política Externa (NEPEX-UFSC), sob supervisão do prof. Dr. Jaime Cesar Coelho (professor titular do departamento de Economia e Relações Internacionais – UFSC). Contato: ailtonjunior726@gmail.com.

Bruno Henrique Costa é graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Catarina (UFSC) e estagiário do Núcleo de Atendimento aos Imigrantes da Defensoria Pública da União (DPU). Contato: brunohenriquescp@outlook.com.

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 11 set. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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