O fantasma de Pequim na América Latina: um conto de dois republicanos
(Arquivo) Presidente chinês, Xi Jinping, recebe seu homólogo venezuelano, Nicolás Maduro, no Grande Palácio do Povo, em Pequim, em 13 set. 2023 (Crédito: Xinhua/Liu Bin)
Por Lucas Barbosa* [Informe OPEU]
Em maio deste ano, o congressista republicano pelo Missouri Jason Smith (R-MO) publicou em seu site que a “agenda de fronteiras abertas da administração Biden” é “desastrosa”. No mesmo artigo, Smith lamenta a decisão de Biden de cancelar a construção, iniciada na presidência de Donald Trump (2017-2020), do muro que separaria os territórios dos Estados Unidos e do México.
Dois meses depois, durante a Convenção Nacional Republicana em Milwaukee, a também congressista republicana pela Flórida Maria Elvira Salazar (R-FL) afirmou que o governo estadunidense deveria matar “aqueles que acabaram de chegar e pertencem ao Tren de Aragua”. De origem venezuelana, a organização citada por Salazar está envolvida, dentre muitos outros crimes, com o tráfico internacional de pessoas. Imediatamente depois, em uma tentativa de suavizar o comentário, a congressista complementou: “Nós deveríamos pegá-los pelos cabelos e chutá-los daqui”.
Isto posto – e somado às tendências republicanas –, não é difícil supor que a visão de ambos os congressistas sobre a questão migratória é indício de um posicionamento mais amplo e igualmente problemático da América Latina.
Avançamos para agosto, quando Salazar e Smith publicam conjuntamente um artigo de opinião no site de análise política The Hill, intitulado “A América deve aproveitar o momento, fortalecer parcerias na América Latina”. O texto foca justamente no relacionamento dos Estados Unidos com a América Latina, mas não apenas isso. O argumento dos autores é fundado, necessariamente, no diálogo dessa relação com um terceiro elemento: a China, que se tornou, nos últimos anos, o espantalho argumentativo preferido de estadunidenses em qualquer lado do binômio partidário.
De maneira lamentável, o primeiro parágrafo já marca o tom daqueles que se sucedem: considerando a “influência maligna” da China no mundo, “é vital que os EUA fomentem nossas parcerias estratégicas em nosso próprio quintal”. Reduzida a um mero quintal, a América Latina (que ainda nem foi diretamente mencionada a essa altura do texto) é considerada não sob a lógica de uma região autônoma, digna do mais respeitoso trato diplomático, mas, sim, como um apetrecho que, para o desgosto da potência hegemônica, tem-se voltado cada vez mais para o rival.
O parágrafo a seguir expõe as fragilidades do pensamento de Salazar e Smith:
“Já que a China continua a ludibriar essas nações [latino-americanas] com dívidas e investimentos desnecessários em infraestrutura, os EUA deveriam buscar relações econômicas mutuamente benéficas na região. Enquanto os EUA estão comprometidos com a promoção da liberdade, do desenvolvimento e da democracia, a China está focada na extração de recursos e na aproximação e encorajamento de atores maléficos como Cuba, Nicarágua e Venezuela. A política comercial dos EUA deve recompensar países na região cujos líderes apoiem uma mudança alinhada aos nossos valores, não os da China comunista”.
Deixemos de lado o esforço intelectual que exigiria desmantelar o estado de coisas como posto pelo trecho acima. Admitamos que 1) a China sufoca a América Latina em dívidas e obras (em sua grande maioria, fundamentais); 2) que os Estados Unidos estão alinhados aos mais nobres valores das relações internacionais; 3) que Cuba, Nicarágua e Venezuela são maus Estados; e, por fim, 4) que usar da política comercial para pressionar mudanças no relacionamento de um outro país com terceiros não é uma afronta ao direito internacional. Mesmo assim, seria impossível não sentir uma generosa dose de hipocrisia: 1) a terra que deu origem ao Consenso de Washington endivida e subordina economicamente países mais pobres como comportamento padrão há décadas; 2) o envolvimento da indústria, do exército e da mídia estadunidenses em vários dos horrores que ocorrem em solo estrangeiro já são amplamente denunciados; 3) os Estados Unidos, sob a administração de Trump ou não, é um aliado próximo de diversos governos criminosos, nomeadamente Israel; e 4) ao longo da história, a intervenção estadunidense tem desencadeado vários produtos infelizes: a Guerra da Coreia, as ditaduras da América do Sul, a Al-Qaeda e o Talibã, e a lista se alonga…
Salazar e Smith celebram a eleição nos últimos anos de líderes latino-americanos “alinhados aos valores estadunidenses”, indivíduos que seriam supostamente inclinados a colaborar com o país no isolamento da China. Quem quer que sejam as figuras misteriosas, Bukele em El Salvador, Milei na Argentina ou outro, pode acabar passando pelo mesmo que Bolsonaro no Brasil: apesar das declarações infames e incapaz de fugir das condições concretas, não chegou nem perto de desmantelar os investimentos chineses por aqui, inclusive sob pressão de um dos grupos de interesse mais favoráveis ao seu governo, o agronegócio.
O artigo também aponta que o recém-celebrado Acordo EUA-México-Canadá (USMCA), substituto do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA), serviria como o molde sobre o qual novos mercados latino-americanos poderiam ser conquistados. Resta saber se os países das Américas Central e do Sul estariam dispostos a aceitá-lo. Não custa lembrar que o NAFTA foi o que restou da fracassada iniciativa da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA), cujo pan-americanismo de viés imperialista foi rejeitado pela maior parte dos países na periferia do continente.
“Com uma estratégia alinhada para aprofundar parcerias com países na América Latina e Caribe, nós podemos mitigar a expansão da China e manter nossos próprios interesses estratégicos no hemisfério ocidental”. Salazar e Smith terminam sua exposição assim. Os interesses, além da manutenção pura e simples da hegemonia, se é que eles existem, não são nunca revelados. Só há uma certeza: se os republicanos querem chutar os latinos de volta para o sul da fronteira, eles também gostariam de chutar os chineses para fora do continente. E os latino-americanos não têm nada a ver com isso.
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* Lucas Barbosa é mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGCP-UNIRIO) e graduado em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ). Contato: lucasmbar@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 25 set. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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