Criador das ‘13 Keys’, Nostradamus das eleições nos EUA prevê vitória de Kamala Harris
Vice-presidente Kamala Harris discursa na Convenção Nacional Democrata, em Chicago, Illinois, em 22 ago. 2024, após aceitar a indicação do Partido Democrata para disputar a Presidência dos Estados Unidos (Crédito: Eric Elofson/Harris for President)
Por Tatiana Teixeira* [Informe OPEU]
Muito esperada por jornalistas, comentaristas e estrategistas políticos, a previsão do historiador Allan Lichtman para esta eleição presidencial estadunidense foi divulgada na última quinta-feira, dia 5, em um vídeo publicado pelo jornal The New York Times. É um vídeo bem-humorado, cuja leveza e graça contrastam com a relevância de sua mensagem central – principalmente se ela se confirmar em novembro próximo. De acordo com seu método, baseado em 13 keys e não isento de polêmica, a democrata Kamala Harris será a nova presidente dos Estados Unidos.
As “13 keys”
Professor de História Americana na American University, Lichtman tem doutorado pela Universidade Harvard, com concentração em História Americana moderna e Métodos Quantitativos. Desenvolveu o modelo “The Keys to the White House” (“As chaves para a Casa Branca”) em 1981, em parceria com o sismólogo e geofísico matemático Vladimir Keilis-Borok (foto ao lado), um especialista mundialmente reconhecido na previsão de terremotos. Juntos, Lichtman e Keilis-Borok amalgamaram suas expertises, olhando para as eleições presidenciais nos Estados Unidos da perspectiva desses fenômenos naturais.
Para isso, relata David Smith na entrevista feita este ano com o historiador para o jornal britânico The Guardian, “analisaram todas as eleições presidenciais desde a vitória de Abraham Lincoln em 1860, combinando o método de Keilis-Borok, que reconhece padrões associados à estabilidade e aos terremotos, com a teoria de Lichtman, segundo a qual as eleições são basicamente votos para cima ou para baixo sobre a força e o desempenho do partido que detém a Casa Branca”.
Conforme o PollyVote, um projeto dirigido por cientistas políticos e especialistas em pesquisa eleitoral, o modelo adota a teoria do voto retrospectivo, ou seja, “o eleitorado americano escolhe um presidente não com base nos acontecimentos da campanha, mas no desempenho do partido que controla a Casa Branca”. Isso significa que “as eleições presidenciais se tornam referendos sobre a gestão do partido em exercício, mais do que campos de batalha para debates, publicidade, ou táticas de campanha”. Em geral, essa abordagem teórica considera que o eleitor tem condições de distinguir bons de maus governos. Nesse sentido, eleitores satisfeitos com o desempenho do partido no poder, sobretudo na economia, recompensam o candidato da situação, reelegendo-o. Os insatisfeitos punem o governo, optando pela mudança. Como afirma Lichtman no artigo “The Keys to the White House: The Outlook for 2024”, publicado no periódico Social Education no início deste ano, “… governo, e não campanha, conta para eleger o presidente americano”.
Nesse modelo, o indicador econômico não é o único a ser considerado. Também se ignora pesquisas de opinião (ironicamente chamadas por ele de “horse-race polls”, em alusão às corridas de cavalos, uma obsessão da imprensa para alimentar o fluxo diário de notícias), análises dos comentaristas de plantão (“sem base científica para seus prognósticos”), comícios e outros eventos relacionados com a corrida eleitoral. “Nada do que um candidato tenha dito ou feito durante uma campanha, quando o público dá um desconto (por ver) tudo como político, alterou suas perspectivas nas urnas. Debates, publicidade, aparições na televisão, cobertura da imprensa e estratégias de campanha […] contam praticamente para nada no dia das eleições”, sentencia o autor no mesmo artigo.
Ele se fundamenta em 13 questões de “verdadeiro” ou “falso” (as “keys”) para verificar a força do partido da situação. Com seis ou mais chaves declaradas “falsas”, o modelo antecipa a derrota do candidato que busca a reeleição. Abaixo, a relação completa das keys e sua descrição:
- Mandato do partido: após as eleições de meio de mandato (midterms), o partido no poder detém mais lugares na Câmara de Representantes dos Estados Unidos do que após as midterms anteriores;
- Contestação: não há uma disputa séria pela nomeação do candidato do partido no poder;
- Incumbência: o candidato do partido no poder é o presidente em exercício;
- Terceiro partido: não há uma campanha significativa de um terceiro partido, ou de um candidato independente;
- Economia de curto prazo: a economia não está em recessão durante a campanha eleitoral;
- Economia no longo prazo: o crescimento econômico real per capita durante o mandato é igual, ou superior, ao crescimento médio durante os dois mandatos anteriores;
- Mudança de políticas: o governo em exercício faz mudanças importantes na política nacional;
- Agitação social: não há agitação social duradoura durante o mandato;
- Escândalo: o governo em exercício não foi afetado por escândalos graves e que envolvam o presidente diretamente;
- Fracasso militar/externo: o governo em exercício não sofre um grande fracasso em matéria de assuntos externos, ou militares [o autor não usa a expressão “política externa” neste, nem no próximo tópico];
- Êxito militar/externo: o governo da situação obtém um êxito importante nos assuntos externos, ou militares;
- Carisma do incumbente: o candidato do partido no poder é carismático, ou um herói nacional;
- Carisma do desafiante: o candidato do partido desafiante não é carismático, nem um herói nacional.
As “chaves” e as eleições de 2024
No vídeo divulgado no NYT, o historiador detalha o motivo pelo qual oito das 13 “chaves” (ou “categorias”) são “verdadeiras” (2, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 13), fortalecendo a democrata Kamala Harris, e três, “falsas”, o que ajuda o republicano Donald Trump. Entre os aspectos favoráveis aos democratas, estão a ausência de um candidato forte de um terceiro partido; o fato de a economia não estar em recessão; a não ocorrência de tumultos sociais prolongados, de grande amplitude e repercussão nacional; e a falta de carisma do adversário. “Donald Trump é um consumado showman que atrai a atenção da mídia, mas que tem apelo apenas junto a uma pequena fatia do eleitorado, em vez de exercer um amplo apelo, como [Ronald] Reagan. Havia muitos democratas pró-Reagan, mas (há) praticamente nenhum democrata pró-Trump”, justifica Lichtman no artigo já citado.
Assista ao vídeo do NYT na íntegra (Fonte: canal do The New York Times no YouTube)
No caso das três “falsas” (1, 3 e 12), Lichtman lembra que 1) os democratas perderam cadeiras na Câmara de Representantes nas midterms de 2022; 2) Joe Biden deixou a corrida; e 3) Kamala está longe de ser uma candidata carismática, no sentido de alguém “amplamente inspirador”, que surge uma vez a cada geração e que tem amplo apelo ao longo de todas as linhas partidárias, como, segundo ele, Franklin D. Roosevelt, John F. Kennedy, Reagan, ou Barack Obama. Ainda ficam faltando duas “chaves”, referentes às questões de política externa/militares (10 e 11). Ambas são impossíveis de serem definidas no momento atual, em que ainda há grandes eventos em curso – entre eles, o conflito em Gaza e a guerra na Ucrânia. Aqui, acrescenta ele, mesmo que as duas categorias se confirmem como “falsas”, o total será insuficiente para garantir a vitória de Trump.
Fragilidades do modelo
Aclamado pela imprensa em geral e procurado por candidatos (foi elogiado por Trump ao ser um dos poucos a prever sua vitória em 2016) e até mesmo por órgãos do governo (como a CIA e a própria Casa Branca), o trabalho de Allan Lichtman também é alvo de críticas, sobretudo, em termos metodológicos, acusado de ser “superficial”, “tendencioso” e “subjetivo”. Tampouco, insistem seus oponentes, seria melhor e mais confiável do que as pesquisas, como o historiador argumenta há décadas. Esses questionamentos se refletem, por exemplo, na ausência de consenso entre os analistas sobre o número acumulado de acertos das suas previsões: se oito, nove, ou dez, das últimas dez eleições presidenciais americanas – a saber, os pleitos de 1984, 1988, 1992, 1996, 2000, 2004, 2008, 2012, 2016 e 2020. Ainda assim, é uma série que impressiona e que levou a imprensa estadunidense a apelidá-lo de “Nostradamus das eleições”.
Em defesa de seu histórico de número redondo, o acadêmico observa que a disputa em 2000 – ano em que o democrata Al Gore venceu no voto popular, mas perdeu a eleição na Suprema Corte para o republicano George W. Bush – foi incomum. Quanto à “desonestidade” apontada pelos jornalistas e ex-alunos da American University Lars Emerson e Michael Lovito no que se refere ao resultado de 2016, Lichtman também tem uma explicação. Inicialmente, seu modelo foi concebido para identificar o ganhador no voto popular, o que aconteceu com a ex-secretária de Estado Hillary Clinton no referido ano. Isso não lhe garantiu a vitória, já que seu então adversário, Donald Trump, obteve maioria no Colégio Eleitoral. Essa eleição levou o autor a reavaliar o foco do seu experimento – não mais o vencedor no voto popular, mas o vencedor da disputa –, como ele relata neste trecho de uma entrevista à revista semanal Washingtonian:
“… durante a maior parte da nossa história, os dois coincidiram [voto popular e Colégio Eleitoral], exceto algumas exceções resultantes de coisas estranhas que aconteceram durante a Reconstrução e a transição para os chamados governos supremacistas brancos ‘Redentores’. Mas, nos últimos anos, o voto popular se tornou irrelevante [grifo meu], porque os democratas acumulam tantos milhões de votos extras somente em Nova York e na Califórnia, que não contam para nada no Colégio Eleitoral. Por isso, em 2016, 2020 e 2024, limitei-me a dizer os vencedores. Não vale a pena olhar para o voto popular. De fato, desde 1992, sabe quantas vezes os republicanos ganharam o voto popular? Uma vez, em 2004, por pouco”.
Na mesma entrevista, ele rebate a acusação de subjetividade e, consequentemente, de ausência de hard data e de falta de objetividade, também feita por Nate Silver, criador do site FiveThirtyEight, hoje um dos mais relevantes e acompanhados em termos de pesquisa eleitoral nos Estados Unidos. Segundo Lichtman, “… as ‘chaves’ não são subjetivas. São julgamentos. E os historiadores fazem julgamentos a toda a hora. Além disso, cada ‘chave’ é definida muito especificamente no meu livro [The 13 Keys to the White House, em coautoria com Ken DeCell, publicado pela Madison Books, em 1991)]”.
Conforme seu artigo publicado na Social Education, mencionado anteriormente, “as respostas para algumas das questões colocadas nas ‘chaves’ requerem o tipo de avaliação informada em que os historiadores invariavelmente se baseiam para tirar conclusões sobre acontecimentos passados. Duas restrições distinguem essas avaliações dos juízos ad hoc oferecidos pelos comentaristas políticos convencionais. Em primeiro lugar, todas as decisões são tomadas de forma consistente em todas as eleições; os padrões-limite estabelecidos no estudo de eleições anteriores devem ser aplicados a futuras disputas. Em segundo lugar, cada chave tem uma definição explícita”.
Críticas não estão alheias ao meio. Neste caso em específico, trata-se de um contexto e cultura (políticos e acadêmicos) ainda extremamente positivistas, que preconizam a busca de uma realidade objetiva, mediante o uso dos mesmos métodos das ciências naturais – de natureza quantitativa, racional, lógica, verificável e falível – para o estudo em outras áreas e como caminho para a compreensão da sociedade e tendo por base a coleta e a mensuração de dados e a observação direta de um dado fenômeno.
Relevância da campanha
Em entrevista ao Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o brasilianista e professor Emérito Wayne Selcher (Elizabethtown College, Pensilvânia, EUA) diz ver pontos positivos no modelo das “13 keys”. Seria, no entanto, insuficiente para ser usado como único método para se olhar as eleições por não captar inteiramente a percepção do eleitorado e os cambiantes eventos e desafios no decorrer da campanha. “Os pontos do professor Lichtman são extrapolações do passado, bem-feitas no nível macro, e vale a pena tê-las em mente para análise. No entanto, elas não são definitivas e não são totalmente percebidas como verdadeiras por muitos no nível do eleitor comum”, observa.
“Harris está sobrecarregada com a questão da segurança nas fronteiras, seu maior obstáculo de longe. E milhões de americanos não sentem uma recuperação econômica em suas vidas pessoais, apesar de alguns dos indicadores macro estarem melhorando [grifo do entrevistado]. Trump está martelando nessas duas vulnerabilidades de Harris, assim como destacando seu forte histórico liberal e atacando seu estilo e inconsistência de suas posições políticas nos últimos anos”, exemplifica o professor Selcher.
Ele menciona ainda os “indicadores mistos”, o que pode afetar (para o bem ou para o mal) a maneira como o eleitor se posiciona em relação ao governo e a sua candidata. “A inflação tem sido a grande questão para o público, especialmente os preços dos alimentos, e Biden-Harris são os culpados, quer isso seja correto ou não. E a inflação agora está caindo lentamente”, reforça.
Para ele, a campanha e o que acontece nela – especialmente nos estados pendulares – continuam a ser elementos importantes, que não podem ser minimizados, nem ignorados.
“Penso que Lichtman está demasiado confiante em uma vitória de Harris. Muito dependerá do nível de afluência às urnas nos sete swing states, devido ao quão acirrada a competição está. Até agora, a competição parece ser 50-50, mas com Harris obtendo ganhos significativos nos principais estados competitivos. Aqui na Pensilvânia [estado onde o prof. Selcher vive], um estado altamente competitivo, com o maior número de votos do Colégio Eleitoral de todos os estados decisivos, os meios de comunicação, telefones e caixas de correio estão inundados de propaganda de ambos os candidatos, que também estão fazendo aparições constantes em todo o estado. Em todo o caso, uma das principais questões que se colocam é: ‘Como Trump vai reagir no caso de uma vitória de Harris?’”, complementa.
Essa parece ser, professor, a preocupante e fundamental pergunta de um milhão de dólares.
Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU
Informe “Impacto da saída de RFK Jr. é pequeno, mas pode ser chave em eleição apertada”, 30 ago. 2024
Informe “Think tanks, lobbies e política nos EUA”, 6 jun. 2024
Informe “Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste à mudança dos tempos e da sociedade”, 28 de maio de 2024
Informe “Lula e Biden: uma relação com ganhos e (novos) limites para Brasil e EUA”, 11 fev. 2023
Informe “A carta de Biden”, 21 mar. 2021
Informe “O legado do senador republicano Mitch McConnell”, 30 out. 2020
Informe “Think tanks e política nas eleições de 2020 nos EUA”, 15 dez. 2019
Informe “A bilionária e feroz propaganda eleitoral nos EUA”, 17 nov. 2019
Informe “Think tanks americanos e a desigualdade de gênero”, 29 out. 2019
* Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: professoratatianateixeira@outlook.com.
** Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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