‘Apocalypse Now’ – O retrato de um Vietnã desolado
Por Vitor Kishimoto Cavani* [Resenha OPEU]
Há 45 anos, em 1979, foi lançado o filme “Apocalypse Now”, do diretor Francis Ford Coppola. A obra tem como enredo a Guerra do Vietnã (1955-1975), primeiro conflito do qual os Estados Unidos saíram derrotados. O filme recebeu diversos prêmios, como o Oscar de Melhor Fotografia e Som e a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Diante da importância não apenas do filme, mas da história nele contada, o objetivo desta resenha é destacar alguns aspectos relevantes do contexto histórico em que se passa a narrativa – a Guerra Fria – e os conflitos presentes na política internacional e externa dos EUA.
Com o encerramento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a longeva ordem multipolar europeia colapsou, abrindo caminho para o surgimento de um novo sistema internacional de natureza bipolar. Esse contexto geopolítico, conhecido como Guerra Fria, foi caracterizado pela acirrada disputa ideológica, militar, econômica e tecnológica entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Embora um confronto direto entre as duas grandes potências tenha sido evitado por conta da ameaça de destruição mútua assegurada pelas armas nucleares, houve inúmeros pontos de tensão pelo mundo – notadamente no chamado Terceiro Mundo –, nos quais os dois países se enfrentaram de maneira indireta.
Nesse sentido, a Guerra do Vietnã (1955-1975) emerge como um importante acontecimento desse período histórico, uma vez que contou com a participação direta e maciça de tropas dos EUA e impactou profundamente a sociedade e as políticas do país líder do bloco capitalista. As enormes baixas decorrentes desse conflito, juntamente com os inúmeros crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos, desencadearam uma poderosa onda de protestos sociopolíticos em solo americano. Essa dinâmica é analisada em detalhe pelo historiador e professor francês Maurice Vaisse em seu livro As Relações Internacionais depois de 1945, publicado no Brasil em 2013 pela editora Martins Fontes.
Como consequência desse panorama, o diretor Francis Ford Coppola desenvolve o longa-metragem “Apocalypse Now” (1979) com o objetivo de fazer uma crítica contundente à intervenção militar dos Estados Unidos no território vietnamita. O enredo dessa produção hollywoodiana acompanha a missão secreta do capitão Benjamin Willard, um veterano de guerra que é forçado a retornar ao Vietnã para assassinar o renegado e supostamente insano coronel Walter Kurtz. Enquanto procura pelo desertor ianque, que se encontra refugiado no Camboja, o protagonista comanda um grupo de quatro soldados que representam fielmente os combatentes dos EUA, todos jovens, inexperientes e imaturos, que anseiam por retornar para casa em segurança. Ao longo da jornada, os personagens principais encaram várias situações desoladoras e traumatizantes que transmitem com precisão as complexidades da época e as atrocidades presentes nessa guerra.
O primeiro cenário desconcertante que o esquadrão de Willard testemunha no Vietnã do Sul é marcado pela violenta e impiedosa investida do exército estadunidense contra um pequeno vilarejo nas margens do Rio Nùng (Laos, Camboja e Vietnã). Essa cena caótica, composta por uma simultaneidade de eventos, tais como bombas explodindo, helicópteros voando, casas pegando fogo, mulheres e crianças desabrigadas, pessoas orando fervorosamente e corpos espalhados pelo chão, claramente evoca na mente dos espectadores a palavra “apocalipse” contida no título do filme.
Outro elemento que se destaca no filme é a presença de alguns soldados sul-vietnamitas maltratando os sobreviventes da batalha. Essa cena ressalta a afirmativa que Michael E. Latham faz no livro The Cambridge History Of The Cold War Volume II (Cambridge Press, 2010), no qual salienta que “o governo e os líderes militares do Vietnã do Sul frequentemente abusavam da população rural que deveriam proteger e ajudar”. Para concluir essa passagem do filme, os membros da equipe observam a entrada triunfal do tenente-coronel Bill Kilgore, um homem arrogante e indiferente que trata aqueles ao seu redor com grande desdém – uma representação habilmente empregada por Coppola para personificar os Estados Unidos ao longo do conflito desumano.
A próxima situação marcante do filme acontece durante o transporte de helicóptero dos protagonistas para um afluente do rio, onde Kilgore planeja proporcionar a Lance, um famoso nadador e subordinado de Willard, a chance de surfar. Conforme os veículos se aproximam do destino final, os soldados do tenente-coronel fazem ecoar a melodia clássica Cavalgada das Valquírias, da ópera do compositor alemão Richard Wagner, em um gesto arrogante para anunciar sua presença aos vietcongues presentes na aldeia local. Desse modo, ao som da música, desenrola-se uma sequência brutal de ataques aéreos, durante os quais os combatentes dos EUA cometem um massacre indiscriminado contra os vietnamitas da região e empregam o napalm, arma química emblemática dessa guerra, para eliminar os guerrilheiros refugiados na selva. Assim, nessa famosa cena do cinema estadunidense, Coppola subverte os significados sonoros e audiovisuais de forma magnífica, utilizando a composição musical de tom glorioso para representar um episódio sangrento, mais uma vez criando uma metáfora sobre o papel dos Estados Unidos no Sudeste Asiático.
Cena ‘Cavalgada das Valquírias’ (Fonte: YouTube)
No decorrer da trama, os personagens principais se separam da divisão aérea Airborne e continuam sua jornada, navegando pelo Rio Nùng em direção ao Camboja, um país geograficamente adjacente ao Vietnã e que fazia parte do Movimento dos Países Não-Alinhados (MNA), grupo de nações que optaram pela neutralidade durante a Guerra Fria. Em um determinado ponto do percurso, Willard e seus subordinados precisam fazer uma minuciosa vistoria em um pequeno barco vietnamita que cruzou o seu caminho, com o intuito de garantir a ausência de materiais bélicos destinados aos vietcongues. Dado que nenhum dos tripulantes estadunidenses deseja assumir essa tarefa por conta dos riscos envolvidos, Phillips, o condutor da embarcação, resolve designar Chef, um integrante que almejava se tornar chefe de cozinha, para a responsabilidade da inspeção. Diante disso, o infortunado indivíduo empreende a busca no navio mercante com um ímpeto definido pela violência e pela pressa, desencadeando uma reação de resistência por parte dos vietnamitas. Como resultado, Clean, o membro mais novo do grupo, efetua uma série de disparos precipitados para proteger seu companheiro, causando a morte de todos os tripulantes nativos. Essa cadeia de acontecimentos mexe significativamente com o moral dos jovens dos Estados Unidos, em especial após descobrirem que os comerciantes mortos estavam tentando proteger um cachorro escondido dentro de um cesto.
Ao alcançar a fronteira entre o Vietnã e o Camboja, o esgotado esquadrão dos Estados Unidos é abruptamente emboscado pelos vietcongues, resultando na trágica perda de Clean e no agravamento das tensões psicológicas entre os sobreviventes. No entanto, essa atmosfera sombria cede espaço a um momento de esperança, quando os protagonistas são abordados por um grupo armado de colonos franceses, que, solidários à situação dos estadunidenses, organizam um funeral para o aliado caído e lhes oferecem abrigo temporário. Diante dessa reviravolta, Benjamin Willard e seus companheiros encontram refúgio na residência do patriarca da comunidade, Hubert de Marais, um homem mais velho, profundamente abalado pela perda de poder e prestígio da França na nova ordem mundial.
Essa amargura expressa pelo líder comunitário reflete uma tendência histórica que Mark Philip Bradley explora em The Cambridge History Of The Cold War Volume I, publicado em 2010 pela editora Cambridge Press, demonstrando como os franceses foram se enfraquecendo, conforme sucumbiam em conflitos pela manutenção de suas antigas colônias, como foi o caso da Indochina e da Argélia. Aliás, é nesse mesmo período da Guerra Fria que diversos países africanos e asiáticos passam por movimentos de descolonização e independência.
No desfecho da trama, o pelotão liderado pelo capitão Willard finalmente localiza com sucesso o esconderijo do coronel Kurtz, mas perde Phillips durante o processo. Diante desse revés, os três sobreviventes decidem, de forma unânime, entrar diretamente no antigo templo budista para concluir a missão o mais rápido possível, abandonando qualquer tentativa de não chamar a atenção. Essa manobra arriscada desencadeia uma cena angustiante, na qual centenas de seguidores fanáticos do coronel observam em silêncio o barco dos protagonistas se aproximando do cais, sem tomar qualquer ação hostil. A enorme tensão é interrompida pelos gritos de Dennis Hopper, um fotojornalista estadunidense membro da seita, que instrui os tripulantes a acionarem as sirenes antes de atracarem e, em seguida, comunica a Willard que Kurtz deseja ter uma conversa.
O clímax do enredo se materializa no profundo diálogo entre o protagonista e o antagonista da película, no qual debatem suas diversas vivências ao longo do conflito. Essas interações, que se estendem por dias, revelam que o coronel Kurtz é um homem paciente e lúcido que tem traumas profundos, contrariando todas as expectativas anteriores, baseadas nos relatórios fornecidos pelo alto comando militar dos EUA. Essa reviravolta excepcional, meticulosamente planejada pelo diretor, evoca uma profunda reflexão sobre os arquétipos de heroi e vilão.
O capitão Willard emerge como um executor impiedoso, obedecendo a ordens de um Estado corrupto e imperialista, enquanto o coronel Kurtz se destaca como um símbolo do estadunidense íntegro, que foi “quebrado” pelas terríveis experiências da Guerra do Vietnã. Portanto, no momento em que o líder do culto permite que o personagem principal seja livre, este decide cumprir seu objetivo primordial, o que culmina na morte de Walter Kurtz, e, consequentemente, o livramento da sua eterna angústia. A cena final retrata Willard e Lance, os únicos integrantes restantes do grupo, pedindo para um transporte aéreo buscá-los – mais uma figura de linguagem usada pelo diretor para evidenciar a influência profunda que a guerra exerce sobre a mente e a alma dos soldados.
Capitão Willard, interpretado por Martin Sheen (Crédito: United Artists/Photofest)
Para concluir, pode-se dizer que, o filme “Apocalypse Now”, dirigido por Francis Ford Coppola, desempenhou um papel crucial em uma onda cultural que criticava de maneira profunda as intervenções militares e políticas dos Estados Unidos em países periféricos, com ênfase particular na Guerra do Vietnã. Essa obra cinematográfica não apenas retratou os horrores e as complexidades do conflito, como também provocou uma reflexão profunda sobre as consequências humanas e éticas das ações estadunidenses no cenário global. Por meio de sua narrativa poderosa e das atuações memoráveis, o longa-metragem continua a ser uma peça fundamental no diálogo sobre imperialismo, descolonização e a busca por significado em tempos caóticos.
* Vitor Kishimoto Cavani é graduando em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: vitorkcavani89@gmail.com. Texto elaborado para a avaliação da disciplina obrigatória de Política Internacional Contemporânea, ministrada em 2024 pelo professor David Magalhães, do curso de Relações Internacionais da PUC-SP.
** Primeira revisão de conteúdo: Isabela Agostinelli (pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU/CNPq). Contato: isagostinellis@gmail.com. Copidesque: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Texto recebido em 2 ago. 2024. Esta resenha não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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