Hollywood e o fenômeno do ‘whistleblowing’ nos Estados Unidos
(Arquivo) Edward Snowen, em Moscou, em 9 out. 2013 (Fonte: Wikimedia Commons)
Por Rúbia Marcussi Pontes* [Informe OPEU]
Edward Snowden, então funcionário terceirizado da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla no inglês) dos EUA, veio a público em junho de 2013 com revelações surpreendentes sobre os programas de vigilância global e espionagem do governo dos EUA, os quais podiam coletar dados de absolutamente qualquer pessoa ao redor do globo – desde um cidadão estadunidense até líderes globais, como Dilma Rousseff e Angela Merkel. Desde então, Snowden se tornou um dos whistleblowers mais conhecidos, com representações de Hollywood no documentário ganhador de Oscar Citizenfour (2014), de Loira Poitras, e no filme Snowden (2016), de Oliver Stone.
A história do advogado e whistleblower Rob Bilott também foi representada no filme Dark Waters: o preço da verdade (2019), do cineasta Todd Haynes. Bilott descobriu que a multinacional de produtos químicos DuPont despejava resíduos altamente poluentes no ar e na água na Virgínia Ocidental, na Pensilvânia, onde uma indústria estava instalada. O filme demonstra a luta – e a vitória nos tribunais, em 2017, com acordo de US$ 671 milhões em nome de mais de 3.500 demandantes – de um Davi, na figura do advogado que tenta corrigir um grave ato ilícito que afetava a população e a natureza, contra um Golias, uma empresa multinacional, com recursos e enorme capacidade de retaliação.
Já Reality (2023), de Tina Satter, se baseia na transcrição real da dinâmica e do interrogatório inquietantes de agentes do FBI na casa de Reality Winner, de 25 anos, ex-linguista da Força Aérea dos EUA e terceirizada da Pluribus International Corporation, que trabalhava para a NSA. Em 2018, ela foi presa com base no Ato de Espionagem de 1917, acusada de vazar um relatório ultrassecreto que incluía detalhes da interferência russa na eleição presidencial de 2016. Winner se declarou culpada como parte de um acordo que exigia sua condenação a cinco anos de prisão – a sentença mais longa já proferida por um tribunal federal dos EUA a um whistleblower.
Essas são apenas algumas das histórias de whistleblowing dos EUA representadas em filmes e documentários. Trata-se, na verdade, de um fenômeno – e um interesse de Hollywood pela Jornada do Herói – com origens antigas.
O que é whistleblowing?
O whistleblower vem da união de duas palavras do inglês: apito (whistle) e soprador (blower). Ou seja, o whistleblower (em tradução livre, colaborador de boa-fé, ou reportante) é aquele que sopra o apito quando identifica algo de errado acontecendo em um determinado ambiente, ou em uma organização, o que varia desde fraude e corrupção até abuso de autoridade e poder.
Ainda segundo a definição oficial do U.S. Merit Systems Protection Board (MSPB), whistleblowing significa “divulgar informações que você, razoavelmente, acredita serem evidências de violação de qualquer lei, regra ou regulamento, ou grave má gestão, um grande desperdício de fundos, um abuso de autoridade ou um perigo substancial e específico para a saúde ou segurança pública”. Logo, o whistleblowing é uma metáfora esportiva para chamar a atenção de outras pessoas e, sobretudo, de autoridades competentes, para o ilícito identificado pelo whistleblower.
Marcia Miceli, Janet Near e Terry Dworkin se debruçam sobre tal fenômeno e destacam que os whistleblowers podem ser membros – e até mesmo ex-membros – de uma determinada organização, pública ou privada, ou, ainda, serem externos à organização em que identificam o ato ilícito, como fornecedores, funcionários terceirizados, ou clientes. De qualquer forma, ambos os tipos são moderadamente comprometidos com os valores e ideais de justiça e sentem que algo precisa ser feito para remediar o problema identificado – diferentemente dos observadores inativos, que, como a classificação sugere, podem observar o ato ilício e escolher pela inação.
Abraham Mansbach chama o whistleblowing de “discurso sem medo” (fearless speech), porque, embora os transgressores estejam em posição de prejudicar o reportante, ele ou ela escolhe fazê-lo de qualquer maneira, seja por meio de vazamentos anônimos, ou não. Isso demonstra um ato de coragem, com o qual outras pessoas se identificam, bem como uma decisão política que, embora não tenha o mesmo peso que uma ação coletiva, para o autor pode gerar impactos duradouros e mudança política verdadeira.
Fenômeno moderno?
O whistleblowing não é necessariamente algo moderno: Allison Stanger afirma que esse é, na verdade, um fenômeno impresso no DNA estadunidense. Isso porque a primeira lei mundial de proteção de reportantes foi adotada justamente pelos EUA, ainda em 1778. No ano anterior, dez oficiais da Marinha enviaram uma petição ao Segundo Congresso Continental, denunciando seu comandante, Esek Hopkins, por tortura de marinheiros britânicos mantidos como prisioneiros. O Congresso destituiu Hopkins, que, por sua vez, retaliou e conseguiu que dois dos reportantes, Richard Marven e Samuel Shaw, fossem presos. O caso foi debatido pelo Congresso, que decidiu a favor de Marven e de Shaw ao adotar, de forma unânime, o Ato de Proteção de Reportantes (Whistleblower Protection Act), em 30 de julho de 1778.
Vale destacar trecho do Ato que demonstra o espírito do fenômeno: “é dever de todas as pessoas a serviço dos Estados Unidos, bem como de todos os outros habitantes, fornecer as primeiras informações ao Congresso ou a qualquer outra autoridade competente sobre qualquer má conduta, fraude ou contravenção cometida por quaisquer oficiais, ou pessoas a serviço desses estados, que possa chegar ao seu conhecimento”. Stanger ressalta que todos os arquivos do caso foram abertos para consulta pública e que o Congresso Continental, mesmo em período de guerra, pagou por todas as despesas dos reportantes, em uma clara demonstração de apreço por uma atitude que só cresceria, especialmente nos anos 1960.
Outras leis foram instauradas depois do Ato de Proteção, como a Lei de Falsas Reivindicações (False Claims Act), em 1863, que, entre outras questões, tratou de denúncias feitas por whistleblowers e previu recompensa para o denunciante de parte do valor recuperado pelo Estado. Também há leis mais atuais, como a Lei Federal de Proteção de Denunciantes (Federal Whistleblower Protection Act), de 1989, e a Lei Dodd-Frank (Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act), de 2010. Esta última, no contexto da crise econômica e financeira de 2007 e 2008 nos EUA, previu que a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC, na sigla em inglês) criaria um departamento específico para receber e avaliar denúncias de whistleblowers, principalmente no ramo financeiro, bem como aumentaria a proteção contra represálias.
Whistleblowing por Hollywood
Entender o que leva pessoas, em cargos de poder ou não, a denunciarem atos ilícitos, e quais os impactos dessas denúncias em suas vidas e na sociedade, desperta grande interesse do público sobre o fenômeno. Nesse sentido, Hollywood tem uma longa tradição de retratar o whistleblowing.
Destacam-se, além dos filmes já citados, Sindicato de ladrões (1954), Serpico (1973), Todos os homens do presidente (1976), Silkwood – o retrato de uma coragem (1983), O informante (1999), Erin Brockovich – uma mulher de talento (2000), O jardineiro fiel (2005), The Post – a guerra secreta (2017) e Segredos oficiais (2019). O interesse é tão significativo a ponto de “whistleblowers movies” ser considerado um gênero próprio no cinema hollywoodiano, ao retratar questões fundamentais da vida em sociedade, sobretudo da estadunidense.
Tais narrativas tendem, porém, a se concentrar no reportante como um indivíduo, e não no problema sistêmico denunciado. Nesse sentido, Anthony Moretti discute o caso de Snowden e afirma que “as questões legítimas não eram sobre ele e o que o motivava, mas sim sobre a relação entre o governo e a mídia, entre outros itens; e se os EUA seriam prejudicados militar, ou diplomaticamente, por causa da divulgação dos documentos”. Essa foi, inclusive, uma questão levantada pelo próprio Snowden, durante entrevista relatada no documentário Citizenfour: “a mídia moderna tem um grande foco nas personalidades, e estou um pouco preocupado, pois quanto mais nos concentramos nisso, mais eles vão usar isso como uma distração (…). A história aqui não sou eu”.
Thomas Olsen também constata que a Jornada do Herói é, normalmente, o arco narrativo dos filmes de Hollywood, com roteiros baseados em cinco etapas: descoberta de irregularidades; busca do reportante por correção do ato ilícito; experiência de retaliação, inclusive com a figura do transgressor como vilão; mudança de lealdades; e divulgação pública. De forma geral, Hollywood também carrega no aspecto sensacionalista dos casos.
O foco no indivíduo e na Jornada do Herói demonstra como a ideologia neoliberal perpassa as narrativas sobre os casos de whistleblowing nos EUA. Saša Miletić destaca que há representação de um momento de transgressão, mas o gênero não questiona estruturas e ideologias, elogiando apenas a agência individual. Nesse sentido, a Ideologia de Hollywood, como Slavoj Žižek caracteriza esses filmes, absorve qualquer potencial transgressivo.
Como Miletić conclui, “explorar o gênero do whistleblowing significa, portanto, confrontar um gênero feito em Hollywood, cuja política pode ter algum potencial progressista, mas, ao mesmo tempo, perceber que esse potencial está embrulhado em um papel de presente ideológico e brilhante”.
* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: rubiamarcussi@gmail.com.
Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 24 jul. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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