Maria da Conceição Tavares e a retomada da hegemonia americana: relevância e atualidade
(Arquivo) Maria da Conceição participa da 1ª Conferência do Desenvolvimento (Code), do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), em Brasília, em 26 nov. 2010 (Crédito: Antonio Cruz/ABr)
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Por Rafael Seabra, Marcus Tavares e Haylana Burite* [Panorama EUA]
“Apesar da idade avançada e da saúde, o importante é nunca se entregar. Não entrego nada. ‘Só me entrego na morte / De parabelo na mão’. Para além de lições e contribuições econômicas, o importante é deixar um sentimento de otimismo e esperança para inspirar as gerações futuras. Eu não desisto deste país. Apesar de todas as desgraças de hoje, eu continuo achando que o Brasil é o país do futuro. O Brasil tem futuro!” – Maria da Conceição Tavares
Em entrevista publicada em 2019 pela revista Margem Esquerda, Maria da Conceição Tavares dizia manter as esperanças e não desistir do Brasil. Uma das mais proeminentes economistas brasileiras, Conceição faleceu em junho deste ano, deixando um legado memorável no campo do pensamento econômico crítico. Nascida em 1930 em Aveiro, Portugal, iniciou sua formação em Engenharia na Universidade de Lisboa, onde posteriormente se graduou em Matemática.
Em 1954, em virtude das opressões da ditadura salazarista, Conceição Tavares migrou para o Brasil, onde iniciou sua carreira profissional como estatística no Instituto Nacional de Imigração e Colonização. Em 1957, naturalizou-se brasileira e se matriculou no curso de Economia da antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na década de 1980, Maria da Conceição Tavares se filiou ao PMDB, atuando como assessora econômica até 1989, além de se tornar professora na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na UFRJ. Em 1994, filiou-se ao PT, partido pelo qual foi eleita deputada federal, destacando-se como uma das vozes mais críticas contra a implementação do Plano Real. Em tempos mais recentes, foi voz ativa no debate público contra a PEC 55, conhecida como o Teto de Gastos, aprovada em 2016.
A teórica é amplamente reconhecida como ícone e uma das fundadoras do pensamento heterodoxo em economia no Brasil. Crítica mordaz do mainstream, Conceição desempenhou um papel crucial na formação e na consolidação de dois dos mais importantes centros de pensamento crítico em economia no país: o Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) e o Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp).
Como afirma Carla Curty no artigo “Maria da Conceição Tavares e a contribuição a partir da periferia para o campo da Economia Política Internacional”, o pensamento de Conceição Tavares foi “fortemente influenciado por Michal Kalecki e por Aníbal Pinto, e, em menor medida, por Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Ignácio Rangel, Raúl Prebisch, clássicos da economia política, assim como, por Karl Marx, John Maynard Keynes, Joseph Schumpeter e Josef Steindl”.
Seu pensamento crítico tinha raízes nas visões de economistas clássicos, isto é, sua abordagem econômica reconhecia os elementos sociais, políticos e culturais que compõem a realidade material. Para Ricardo Bielschowsky, em discurso adaptado para a seção Memória do IE-UFRJ, da Rev. econ. contemp., em 2010, Conceição reunia:
“(…) mente brilhante, solidez teórica em economia, cultura histórica, e perspectiva multidisciplinar. Não é que faça análises totalizantes – ela sempre se burla disso –, mas é que tem a sensibilidade que os economistas tradicionais não têm para as disciplinas afins, a sociologia, a ciência política, a história. Para ela a economia é uma disciplina social e histórica, que para ser bem empregada requer, é claro, conhecimento teórico, mas requer também análises que saiam do âmbito restrito das aborrecidas tecnicalidades, e ajudem a entender a história e a sociedade em toda sua complexidade. E, não menos importante, a poderosa combinação entre criatividade e rebeldia. Mexe com a cabeça dos alunos e dos colegas economistas, obriga todo mundo a “pensar grande”.
Embora, não seja um consenso, a obra de Conceição Tavares pode ser periodizada em três fases distintas. A primeira, conhecida como fase cepalina, vai de 1963, com a publicação de seu trabalho clássico Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil, até 1972, quando foi publicado Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente do Brasil, escrito em colaboração com José Serra. A segunda fase, concentrada no desenvolvimento capitalista, estende-se de 1973, ano em que a autora publicou o influente ensaio “Distribuição de renda, acumulação e padrões de industrialização” – precursor de sua tese de livre-docência – até 1985. A partir desse ano, com a publicação do artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, inicia-se uma nova etapa em seu pensamento, no campo da Economia Política Internacional, que ganhou destaque no pensamento da autora durante as décadas de 1980 e 1990, e no início do século XXI.
Recentemente, Maria da Conceição Tavares ficou popular nas redes sociais com publicações de vídeos de aulas e entrevistas, despertando interesse e entusiasmo em novas gerações.
A reflexão sobre a hegemonia dos EUA no contexto da Economia Política Internacional (EPI)
Os artigos de Maria da Conceição Tavares sobre a hegemonia dos EUA devem ser contextualizados no campo mais amplo da EPI e sobre o tema da hegemonia em específico. Durante o século XX, ao longo dos debates que consolidaram as Relações Internacionais enquanto campo de saber, diversos autores trabalharam a ideia de um Estado que, de alguma forma, ocupa posição de importância e influência superior aos demais. Segundo a sistematização do debate realizada por José Luís Fiori, após o surgimento da “teoria da estabilidade hegemônica”, desenvolvida por Charles Kindleberger, em 1973, o termo “hegemonia mundial” passa a ser cada vez mais usado. Conceito parecido já era, no entanto, trabalhado por Edward Carr, em 1939, e por Raymond Aron, em 1962. O primeiro, mais próximo do argumento hobbesiano da demanda por uma força superior coercitiva (“Superestado”), e o segundo, com base no idealismo cosmopolita e liberal kantiano, reivindicava a necessidade de um “Estado Universal”.
O reconhecimento dos EUA como Estado hegemônico desde o fim da Segunda Guerra Mundial é consenso. Já a hipótese de seu declínio é o centro de intensos debates na literatura e volta a ganhar intensidade pela atual competição com a China. O tema passa pela formulação da supracitada teoria da estabilidade hegemônica quando Kindleberger atribuiu a “crise de trinta” à incapacidade norte-americana de assumir a liderança mundial que fora até então da Inglaterra. Esta hipótese foi retrabalhada e aprofundada por Stephen Krasner, em 1976, e por Robert Gilpin, em 1976 e 1987.
Em suas linhas gerais, a teoria da estabilidade hegemônica se configura enquanto um corpo de ideias que sustenta, como propõe Gilpin, que, “na ausência de uma potência liberal dominante, a cooperação econômica internacional mostrou-se extremamente difícil de ser alcançada” (p. 88). Dentre os pensadores liberais, o trabalho desenvolvido por Robert Keohane, publicado em 1984, soma ao cenário de dúvidas e busca por respostas, propondo que a ordem econômica internacional não depende, necessariamente, da presença de um Estado hegemônico. Em vez disso, a cooperação pode ser sustentada por meio de instituições e regimes internacionais.
No final da década de 1980, o debate sobre o declínio do poder americano foi ainda fomentado por obras como The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Conflict From 1500 to 2000, de Paul Kennedy, publicada em 1987, e The U.S. – Decline or Renewal?, de Samuel Huntington, publicado em 1988. Fiori observa, contudo, que, por um caminho distinto, autores ligados ao pensamento crítico elaboraram o tema em outros termos, como veremos a seguir.
Em conferências na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, Fernand Braudel concluiu que o mundo necessita de um centro de gravidade. No entanto, ao contrário de muitos naquele momento, ele considerava muito improvável que os Estados Unidos estivessem deixando de desempenhar esse papel mundial. Em 1981, Robert Cox introduziu no debate o conceito gramsciano de hegemonia e a proposta de análise da formação e crise das ordens mundiais, complementando a dinâmica de poder entre os Estados nacionais, de recorte realista, com os processos simultâneos de internacionalização da produção, das relações de classe e das estruturas de poder. Para Cox, essa convergência explicaria a novidade da supremacia mundial norte-americana após a Segunda Guerra Mundial: não apenas um caso de hegemonia, como a da Inglaterra no século XIX, mas um “sistema imperial”.
No mesmo período, em 1982, Immanuel Wallerstein assinalou que a economia-mundo capitalista continuava a se desenvolver e a seguir sua lógica interna, apesar da crise. Giovanni Arrighi, no mesmo volume, publicava “The Crisis of Hegemony” em viés marxista sobre a crise da hegemonia norte-americana. Ele defendia que uma análise centrada nos aspectos substantivos da hegemonia, em vez de aspectos formais, permitia enxergar que “a queda da ordem imperial dos EUA não levou ao fim da hegemonia dos EUA, mas simplesmente à sua transformação, de uma hegemonia formal organizada pelo estado, para uma hegemonia informal imposta pelo mercado e organizada corporativamente” (p. 66).
Posteriormente, Arrighi, em 1994, 1999 e 2004, e Wallerstein, em 2003 e 2004, ao olharem para o cenário internacional desde a década de 1970 até então e, em especial, para os EUA, encontram o que consideravam como evidências que os permitiram diagnosticar o início do declínio da hegemonia norte-americana que vivenciava uma “crise terminal”. A análise de Arrighi se baseava na leitura da existência de uma grande expansão financeira iniciada no período; de uma intensificação da competição estatal capitalista; de um aumento e intensificação de conflitos sociais e coloniais ou civilizatórios; e da emergência de novas configurações de poder capazes de desafiar e, por vezes, vencer o Estado hegemônico.
Arrighi parte da interpretação de que os Estados Unidos se fragilizaram, devido ao endividamento excessivo e à alta transferência monetária para o Leste Asiático, para apontar a “crise terminal” da hegemonia americana. Entretanto, como no argumento original de Conceição, avançado por Franklin Serrano no artigo “Do ouro imóvel ao dólar flexível” (2002, p. 250), no sistema monetário internacional caracterizado pelo “dólar-flexível”, “os Estados Unidos podem incorrer em déficits em balanço de pagamentos de qualquer monta e financiá-los tranquilamente com ativos denominados em sua própria moeda”. Além disso, ao se livrar da exigência de conversibilidade dólar-ouro nas últimas décadas do século XX, os Estados Unidos passaram a ter liberdade para variar a paridade do dólar em relação às moedas estrangeiras, conforme a sua conveniência, valendo-se para tal da alteração das suas próprias taxas de juros. Assim, “a ausência de conversibilidade em ouro dá ao dólar a liberdade de variar sua paridade em relação a moedas dos outros países conforme sua conveniência, através de mudanças da taxa de juros americana”.
Em 1985, como mencionamos, Maria da Conceição Tavares publicou o trabalho seminal “A retomada da hegemonia norte-americana”. Nele, suas ideias contrastavam com a percepção predominante na academia e no mundo político de que a ruptura dos Estados Unidos com o padrão dólar-ouro era um claro sinal do declínio do poder americano. A história nos mostra que, conforme a autora defendia, os Estados Unidos se mantiveram centrais na economia global, e seu poder aumentou com a ruptura do padrão estabelecido em Bretton Woods.
Em contraste com as leituras declinistas, o período imediato do pós-Guerra Fria marcou um momento unipolar, com os Estados Unidos mantendo uma imensa discrepância de poder em relação aos países mais importantes no Sistema Internacional. Em perspectiva, é simbólico que, na época, Francis Fukuyama tenha proposto sua polêmica tese sobre o “Fim da História”. Em linha com sua mitologia nacional, o poder americano passava da percepção de declínio para ser visto como uma força inevitável destinada a cumprir seu destino manifesto.
A seguir, aprofundamos os argumentos elaborados por Conceição no texto “A Retomada da Hegemonia Norte Americana”, de 1985, avançados no “Pós-escrito 1997: a reafirmação da hegemonia norte-americana”.
A retomada da hegemonia americana
O conceito de hegemonia e os desafiantes do sistema
De início, cabe ressaltar que, apesar de o artigo de 1985 se concentrar na reafirmação do poder do dólar como moeda internacional, Conceição Tavares conceitua hegemonia para além dos indicadores econômicos dos EUA. O ponto central reside no enquadramento econômico-financeiro e político-ideológico de seus parceiros e adversários, compelidos a “racionalizar a visão dominante como a única possível” (p. 214).
A análise da política de corrida armamentista em relação à URSS não é aprofundada, concentrando-se no enquadramento dos parceiros desafiantes: a Alemanha e o Japão. No plano geográfico, esse desafio seria parte de um movimento policêntrico, representando propostas de autonomia tanto na Ásia quanto na Europa. Destaca-se a compreensão da autora de que esse era um movimento estimulado pela própria transnacionalização dos capitais americanos, com um sistema bancário que passara a operar fora do controle do Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) e filiais que promoviam uma concorrência favorável à modernização e à expansão europeia e também japonesa.
Da falência do sistema dólar-ouro à diplomacia do dólar forte
Um dos principais aspectos desse desafio estava nos movimentos de questionamento da hegemonia do dólar, revertidos pelo que Conceição denominou como a “diplomacia do dólar forte”, a partir de 1979. Como afirma Conceição, o sistema dólar-ouro carregava uma contradição exposta por Robert Triffin no livro Our International Monetary System; Yesterday, Today, and Tomorrow (1968): a liquidez do restante do mundo dependia dos déficits de balanço de pagamentos dos EUA. Entretanto, esses mesmos déficits minavam a credibilidade da conversibilidade do dólar em ouro. O Mercado Comum Europeu ampliaria a liquidez do sistema, afetando suas premissas. Ao atrair investidores americanos e aplicações de dólares dos bancos centrais europeus a curto prazo, houve uma ampliação da oferta de dólares e de créditos denominados em dólares muito além do permitido pela base monetária dos respectivos países e, portanto, descolado do padrão monetário vigente.
Esse quadro culminou, após 1968, na mudança na política monetária dos EUA e no fim da conversibilidade da libra em dólar, engendrando uma liberação total no mercado interbancário do padrão monetário e de reservas dólar-ouro. Nas palavras de Conceição, forma-se “um circuito supranacional de crédito com muita liquidez, cada vez mais fora do controle das autoridades monetárias e sem relação com o déficit no balanço de pagamentos dos EUA” (p. 216). Trata-se de um cenário que favorecia movimentos especulativos que minavam o papel do dólar como moeda de reserva, fortalecendo o marco e o iene como moedas internacionais.
Apesar do apoio da maioria dos países capitalistas a uma solução concertada, a reação americana veio unilateralmente em 1979, com a elevação da taxa de juros por parte de Paul Volcker, então presidente do Fed. A política recessiva do dólar forte iniciava o enquadramento de aliados e agentes privados e lançava as bases do novo sistema. Com a supervalorização, o Fed retomou o controle dos bancos americanos e do sistema bancário privado internacional. As flutuações das taxas de juros e de câmbio ficaram novamente atreladas ao dólar e, por meio delas, a liquidez internacional foi direcionada conforme os objetivos da política fiscal americana, financiando seu déficit. Sem qualquer lastro, a dívida americana se tornou o instrumento de controle da liquidez internacional e uma aplicação segura e rentável para investidores globais. Assim, o déficit americano se converteu no único mecanismo de “estabilização temporária do mercado monetário e de crédito internacional” (p. 219).
A outra face desse sistema que se formava foi o ajustamento dos demais países, obrigados a adotar políticas monetárias e fiscais restritivas e a obter superávits comerciais crescentes para compensar o déficit dos EUA. Conceição vinculou, portanto, a dimensão internacional e sistêmica, pela qual as economias nacionais perdiam seu potencial de crescimento endógeno, enquanto seus déficits públicos eram convertidos em déficits financeiros estruturais sem vínculo com políticas de corte keynesiano.
(Arquivo) Paul Volcker, em 2 abr. 2012 (Fonte: Flickr)
Crescimento sob o dólar forte e a nova proposta hegemônica
A autora define o período de 1979 a 1983 como aquele em que os EUA demonstraram sua “capacidade maléfica de exercer hegemonia” (p. 221) e ajustar todos os países por meio da recessão. Em 1982, há a retomada do crescimento em linha com o novo modelo instaurado. Baseado em crédito de curto prazo e endividamento, fiscal e externo, esse crescimento não implicava inflação, pois os EUA detinham a moeda hegemônica e valorizada. Enquanto os gastos militares eram ampliados, o Estado de Bem-Estar Social era reduzido, beneficiando os mais ricos. O nível de endividamento das famílias foi incentivado, favorecendo o consumo de bens duráveis e a aquisição de imóveis. Simultaneamente, foram estimulados o setor terciário e as indústrias de alta tecnologia, lançando as bases da primazia americana nas décadas seguintes.
Como propõe Conceição, esse novo modelo era viabilizado pelo restante do mundo, coagido pelas políticas ortodoxas a manter baixas taxas de investimento e de crescimento e superávits comerciais. Nesse sentido, a abertura econômica dos EUA atraía capitais que financiavam não apenas o Tesouro Americano, mas também seus consumidores e investidores.
A Nova Divisão Internacional do Trabalho (DIT)
Essa macroeconomia acarretava uma proposta de nova Divisão Internacional do Trabalho (DIT), pela qual os EUA atuariam como uma locomotiva comercial, considerando não apenas o papel da Europa, mas também do Japão, dos Novos Países Industrializados, os NICs asiáticos e da América Latina, e se oporiam, em troca, às resistências protecionistas internas. Em contrapartida, a Europa deveria ter pleno envolvimento nas negociações globais e ampliar seu dinamismo com a adoção de políticas neoliberais, abrindo mão, portanto, do projeto social-democrata. Para a autora, cabe notar que a abertura proposta pelos EUA indicaria sua disposição em desempenhar um papel central na nova DIT, liderando o setor terciário e novas indústrias de tecnologia de ponta, enquanto deixaria de lado sua velha estrutura produtiva comercial. Trata-se de uma configuração inteiramente distinta do pós-guerra, implicando reequilíbrio estrutural dos mapas do Atlântico e do Pacífico. Ademais, cabe ressaltar que essa especialização dos EUA traria consequências regionais domésticas e prejuízos para parcelas dos trabalhadores “perdedores da globalização”.
O “dólar financeiro” no mundo globalizado
No pós-escrito de 1997, Conceição avançaria em sua elaboração sobre os meios pelos quais o dólar desempenhava a função de moeda internacional no novo padrão. Superado o período de enquadramento pelo dólar forte (1979-1985), os EUA desvalorizaram o dólar (1985-1989). Nesse intervalo, a desregulação dos principais mercados de capitais avançou, gerando uma sucessão de crises: a Bolsa de Nova York (19/10/1987), os mercados imobiliários (1989) e, por fim, a Bolsa de Tóquio (janeiro de 1990).
O choque do dólar forte reafirmou seu papel como moeda internacional, e a política subsequente do dólar fraco não alterou esse status. Conceição explica que, uma década e meia após o choque da política de Volcker, a diplomacia do dólar passou a mudar de direção, conforme as conveniências da economia americana, sem que desvalorizações provocassem fugas do dólar. No sistema extremamente volátil que se formava, a dívida americana passou a lastrear o movimento de securitização que se disseminava rapidamente. A presença “obrigatória” do dólar em pelo menos uma das pontas de todas as operações de securitização e arbitragem nos principais mercados de derivativos cambiais consolida sua posição dominante nos mercados financeiros globalizados.
Nos mercados globalizados, o dólar não atua mais apenas como reserva de valor, como no padrão monetário clássico. Em vez disso, ele desempenha várias funções essenciais no novo sistema financeiro: provê liquidez instantânea em qualquer mercado, garante segurança nas operações de risco e serve como unidade de conta para a riqueza financeira virtual, tanto presente quanto futura. Daí decorre que não há risco sistêmico decorrente da “fraqueza da moeda americana e da ruptura das paridades de seu poder de compra” frente às demais moedas internacionais relevantes. As funções centrais do dólar no sistema financeirizado são fornecer segurança e facilitar a arbitragem.
Os bancos centrais são forçados, por sua vez, de uma forma ou de outra, a coordenar suas políticas com o Fed, o que leva a contradições com as políticas nacionais de gasto fiscal e compromete, em consequência, as questões de natureza social. Há também um aumento da fragilidade financeira, na medida em que recursos fiscais são esterilizados por meio da dívida pública para lastrear os movimentos dos mercados monetários e cambiais. Como a interdependência entre juros e taxa de câmbio impede o funcionamento automático dos ajustes monetários do balanço de pagamentos, a ortodoxia passa a prescrever o ajuste fiscal como meio de correção de desequilíbrios externos. Nesse contexto, os bancos centrais estão se dissociando dos Tesouros nacionais em uma onda de “independência”.
Sede do Fed, em mar. 2008, em Washington, D.C. (Crédito: Adam Fagen/Flickr)
Assimetrias na globalização e divergência na periferia
Como observa Conceição, o mundo entrou nos anos 1980 em um período de forte assimetria nas taxas de crescimento. Por um lado, a partir de 1983, os EUA alcançaram um de seus mais longos ciclos de crescimento. Por outro, principalmente por conta das políticas deflacionistas sob a égide do neoliberalismo, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Japão passaram a crescer de forma mais lenta desde a crise de 1982 e voltaram a entrar em crise em 1993, a despeito da reestruturação industrial.
Na leitura de Conceição, as assimetrias apresentam uma dimensão geográfica, em que o dinamismo se concentra nos EUA e na China; um plano social, marcado pelo desemprego na Europa, na América Latina e no antigo bloco soviético, além da desestruturação da África e da piora na distribuição de renda, inclusive nos EUA; e o plano macroeconômico, caracterizado pela violenta concorrência nas exportações globais e pelo declínio do investimento produtivo em favor do investimento financeiro.
Essas assimetrias nascem do que a autora qualifica como três momentos do novo regime de acumulação: um momento concorrencial, que abarca áreas industriais estruturadas no pós-guerra, como a indústria automotiva e eletroeletrônica, cujos mapas de produção são redesenhados globalmente, sem base territorial, obrigando a uma “revisão permanente do conceito de vantagens comparativas dinâmicas”; um momento concentrador, caracterizado pela concentração de capitais por meio de fusões, localizado nos setores de tecnologia dura, como a indústria bélica, e nos setores de tecnologia de ponta, como telecomunicações e informática. Aqui, as políticas apresentam caráter nacional e territorial, havendo maior concorrência entre as principais potências. Finalmente, o momento centralizador, que responde pela localização convergente de capitais patrimoniais e financeiros nos grandes centros decisórios mundiais, “sujeitando o direcionamento dos fluxos de capital financeiro e a disponibilidade de crédito e liquidez em qualquer parte do globo a uma lógica financeira centralizada” (p. 249).
É importante destacar a diferença enfatizada pela autora entre a transnacionalização produtiva, um processo de duração mais longa, e a globalização financeira mais recente, avançada pelas políticas conscientes aqui delineadas e que foram determinantes no fortalecimento dos Estados Unidos. A reversão da liquidez internacional e a adoção das políticas neoliberais levaram às taxas menores de crescimento na América Latina e na Europa em comparação com os norte-americanos, que não seguem o receituário, mas sim um “keynesianismo bélico clássico”, além de investimentos em reestruturação industrial e atração de capitais estrangeiros. Esses investimentos e o consumo doméstico se encontram amparados na supremacia do dólar.
A essa capacidade aparentemente inesgotável de financiamento dos EUA contrapõe-se a deterioração da base fiscal da maior parte dos Estados nacionais, em função das elevadas taxas de juros e pela flexibilização dos mercados de trabalho. Para fazer frente a isso, os governos são induzidos a realizar ajustes fiscais que esgarçam o contrato social, mesmo onde havia o Welfare State.
A globalização implica, portanto, uma inserção diferenciada e amplamente favorável aos norte-americanos, mas com notória exceção na periferia, no que diz respeito à Ásia. Estes países se beneficiariam simultaneamente de dois movimentos: a disputa e a expansão simultânea das empresas transnacionais japonesas e americanas e a consequente “flutuação alternada dos padrões monetários e financeiros entre o dólar e o iene”, proporcionando condições favoráveis para políticas comerciais e ingresso de Investimento Externo Direto (IED). Distante dessa disputa, a América Latina, após a crise das dívidas externas dos anos 1980 e 1982, teria menos margem de manobra, ficando refém da inserção subordinada na globalização, com desindustrialização, concentração de renda, mazelas sociais e crises cambiais pela dependência de fluxos de capital externo.
A retomada do declínio norte-americano?
A vasta e eclética produção de Maria da Conceição Tavares permite analisar sua relevância em diversos campos do pensamento econômico e político. Neste Panorama EUA, enfatizamos a contribuição da autora para o campo da Economia Política Internacional, no qual seus artigos sobre hegemonia americana têm centralidade. Diversos pontos chamam atenção por sua atualidade, quando observamos a política internacional, o sistema internacional, o debate sobre o desenvolvimento e a polarização política, especialmente pela ascensão da extrema direita.
Sob Donald Trump, a hegemonia dos EUA foi colocada em questão pelo próprio governo norte-americano, disposto a esgarçar e mesmo romper com instituições, alianças e aliados tradicionais do pós-guerra. Ainda assim, é a ascensão da China e os conflitos indiretos com a Rússia que renovam as perspectivas de declínio do poder americano. Por um lado, a leitura dos textos de Conceição sugere, no mínimo, cautela sobre esse declínio, ou sobre sua irreversibilidade. Por outro, como sustenta Carlos Medeiros, a ascensão da China – vislumbrada no pós-escrito de 1997 – representa um fenômeno profundamente distinto da ameaça dos aliados, em especial do Japão. A China é uma potência com capacidade nuclear autônoma e que não se encontra sob a arquitetura de segurança dos EUA. Portanto, as tensões deflagradas por essa transformação adquirem outra conotação, em linha com as disputas entre potências, que são a marca do sistema internacional.
Trump, na ONU, em 2019, contra o ‘globalismo’ (Fonte: Embaixada EUA/Egito)
Uma outra questão é que as recentes sanções aplicadas contra a Rússia, a partir da Guerra da Ucrânia deflagrada em 2022, valem-se largamente da posição dominante do dólar no sistema. O uso dessa “arma” evidencia o poder da moeda americana, mas também desencadeia movimentos, principalmente da Rússia, para transacionar sem o dólar, contornando as limitações impostas. Avaliar em que medida essas reações representam uma ameaça ao dólar é tema relevante na atualidade. A leitura da análise de Conceição sugere que futuros estudos devem considerar o papel do dólar em mecanismos financeiros, como os derivativos.
No campo do desenvolvimento econômico, Maria da Conceição Tavares lançou instigante abordagem sobre os caminhos distintos percorridos pela América Latina e por países asiáticos, como o Japão, mas também pelos chamados Tigres Asiáticos e a China. Sua leitura sobre os contornos e os impactos da competição entre capitais japoneses e americanos na região expõem os limites de análises centradas apenas no Estado desenvolvimentista, ainda que este seja parte fundamental para uma inserção autônoma e para a capacidade de se adotar estratégias que tirem proveito do contexto regional.
Finalmente, a globalização e as políticas neoliberais, cujo nascimento foram aqui revisitados, trouxeram, como alertava Maria da Conceição Tavares, o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, a enorme concentração de renda e a crise social, inclusive nos EUA. Esses fatores estão na raiz da ascensão da extrema direita e na desilusão com a democracia. Em certa medida, as políticas propostas por Joe Biden se propõem a reverter esse quadro, abandonando o neoliberalismo, enquanto aprofunda a competição com a China. Trata-se de movimento inverso à guinada que assegurou a retomada da hegemonia americana nos anos 1970-80, cujo esgotamento agora se faz notar tanto na periferia quanto no centro.
* Rafael Seabra é colaborador do OPEU/INCT-INEU, doutor em Economia Política Internacional (PEPI-UFRJ), mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFF) e economista (IE-UFRJ). Contato: rafaelhseabra@gmail.com.
Marcus Tavares é pesquisador voluntário do OPEU/INCT-INEU na área de economia, doutorando e mestre em Economia Política Internacional no Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ) e bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: marcus.tavares1987@yahoo.com.br.
Haylana Burite é pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e graduanda em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: buritehaylana@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 21 jun. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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