Novas tarifas sobre veículos elétricos chineses: mais um elemento de disputa geopolítica EUA-China
BYD no México (Fonte: Mike the Car Geek)
Por Carla Morena e Yasmim Abril M. Reis* [Informe OPEU]
No dia 14 de maio de 2024, Estados Unidos e China iniciaram mais um capítulo no que tange à disputa comercial, em razão do novo comunicado da Casa Branca. O anúncio do presidente dos EUA, Joe Biden, teve como ponto central o aumento das tarifas sobre produtos chineses, em particular sobre os veículos elétricos, cujos tributos quadruplicaram, alcançando a taxa de 100%. Destaca-se, também, que outros itens serão afetados com a nova medida econômica estadunidense: baterias de íons de lítio, painéis solares, produtos de aço e alumínio e semicondutores.
A guerra comercial entre EUA e China não é um elemento novo na dinâmica da política internacional entre os dois países, já que essa disputa se tornou acirrada durante o governo de Donald Trump. Em 2020, o então presidente impôs tarifas equivalentes a 60%, ou mais, sobre os produtos chineses, o que ficou conhecido como o “tarifaço” de Trump. À época, a medida foi alvo de críticas do Partido Democrata, o qual justificou a oposição alegando que a ação não aumentava as exportações estadunidenses, bem como não impulsionava os empregos industriais no país.
Todavia, em 14 de maio, o presidente democrata anunciou um novo plano econômico, no qual a China foi o pivô das ações. O argumento da administração Biden consiste na criação de empregos e na proteção das empresas dos Estados Unidos contra as práticas chinesas consideradas desleais por Washington. Desse modo, percebe-se que, apesar da crítica a Trump sobre as medidas econômicas contra a China, elas foram similarmente relembradas por meio das novas tarifas impostas. Com efeito, constata-se que a China é o elemento de consenso bipartidário nos EUA, sobretudo neste ano eleitoral.
Assim, observa-se que, “além de um aumento tarifário de 25% para 100% sobre os veículos elétricos, as taxas subirão de 7,5% para 25% sobre baterias de lítio; de zero para 25% sobre minerais críticos; de 25% para 50% sobre células solares; e de 25% para 50% sobre semicondutores”. Essa medida pode ser mais bem visualizada na imagem a seguir:
Imagem 1 – Biden aumenta tarifas sobre produtos chineses
Identifica-se, dessa forma, que o plano econômico da administração Biden-Harris tem como objetivo proteger um dos pilares de sua segurança nacional: a dimensão econômica, à luz do pensamento do poder estrutural de Susan Strange. A tese da autora sobre poder estrutural desenvolvida por meio do trabalho intitulado States and Markets (Editora UNKNO, 1994) consiste em mostrar que esse poder é assentado em quatro aspectos centrais – segurança, produção, finança e conhecimento – e concede ao Estado que o detém a capacidade de moldar e determinar a estrutura da economia política global. Desse modo, ao analisar o novo plano econômico e as tarifas impostas sobre a China, percebe-se que há uma evolução do conceito de poder estrutural estadunidense frente a indústria do futuro, em particular no setor de energia renovável por meio da produção dos veículos elétricos.
O novo plano econômico e as tarifas sobre a China
O plano econômico lançado pela administração Biden-Harris tem como principal finalidade “apoiar investimentos e criar bons empregos em setores-chave que são vitais para o futuro econômico e a segurança nacional dos EUA”. Assim, percebe-se que, implicitamente, na disputa comercial entre EUA e China, há um Estado hegemônico e detentor da estrutura, os EUA, e o Estado postulante a assumir essa posição, a China. Em vista disso, infere-se que a agenda econômica, por meio do investimento em energia renovável, como veículos elétricos, mostra-se como a indústria do futuro e, portanto, a evolução do poder estrutural estadunidense se adaptando e ampliando à teoria de Susan Strange (1994).
Nesse contexto, o anúncio de Biden teve, entre várias alegações, o uso de práticas desleais utilizadas pela China nas últimas décadas. Identificam-se, mais especificamente, duas motivações centrais no novo documento: a proteção da tecnologia, assim como da cadeia de suprimentos dos Estados Unidos. Nesse sentido, o documento ressalta que “as transferências forçadas de tecnologia e o roubo de propriedade intelectual da China contribuíram para o controle de 70%, 80% e até 90% da produção global dos insumos críticos necessários para nossas tecnologias, infraestrutura, energia e saúde – criando riscos inaceitáveis para as cadeias de suprimentos e a segurança econômica dos EUA”. O documento enfatiza ainda que, “além disso, essas mesmas políticas e práticas não mercantis contribuem para o crescente excesso de capacidade e aumento das exportações da China que ameaçam prejudicar significativamente trabalhadores, empresas e comunidades estadunidenses”.
Na prática, as medidas sobre os carros elétricos não terão impacto imediato nos consumidores, dado que esses veículos ainda não são muito comercializados no país, em razão do elevado custo. A ação econômica visa, portanto, ao futuro da indústria automobilística, já que a China tem expandido o mercado nesse setor, em particular na América Latina, com o recente anúncio da construção de duas fábricas da BYD no Brasil e no México.
Assim sendo, nota-se que a indústria automobilística tem se constituído como uma infraestrutura crítica na economia dos Estados Unidos. Apesar de uma visão futurística, a imposição de tarifas sobre a China no ano de 2024 se mostra importante para o debate, visto que o tema relacionado à China é consensual entre os partidos e a economia é um dos fatores fundamentais para o ano eleitoral.
Ciberespaço, infraestruturas críticas e veículos elétricos
Entre os aspectos do poder estrutural propostos por Susan Strange (1994), o do conhecimento é indispensável para compreender a decisão do governo Biden de taxar os veículos elétricos chineses. Pode-se caracterizar a dimensão do conhecimento como constituída por todo o conhecimento produzido, descoberto, armazenado e comunicado. O poder estrutural dele proveniente reside naquele que desenvolve ou adquire a capacidade de negar acesso a determinado conhecimento desejado por outrem, ou controlar os meios pelos quais a comunicação é realizada.
Desde a Revolução Técnico-Científica, em meados dos anos 1970, o ciberespaço se tornou um componente essencial na dimensão do conhecimento que contribui para o poder estrutural dos Estados Unidos. Os avanços na microeletrônica e na computação, impulsionados pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA, na sigla em inglês), integraram a estratégia de retomada da hegemonia estadunidense e se tornaram a base da sociedade. Com o advento da Internet, o ciberespaço adquiriu capilaridade quase global, permeando diversos aspectos da vida cotidiana e da atividade econômica. Devido à sua importância para a sociedade e para a segurança nacional, em 2011 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DoD, na sigla em inglês) classificou o ciberespaço como um novo domínio de guerra, ao lado dos domínios terrestre, marítimo, aéreo e espacial.
Em termos conceituais, Daniel T. Kuehl postula que o ciberespaço pode ser definido como um domínio global que se manifesta pelo uso de tecnologias eletrônicas e pela exploração do espectro eletromagnético, para fins de criação, armazenamento, troca e modificação de informações por meio de redes interconectadas. Embora correta conceitualmente, essa definição pode levar ao engano de que o ciberespaço é um domínio virtual e intangível.
De forma resumida, o espaço cibernético oscila entre a materialidade e o virtual. Embora os fluxos do espectro eletromagnético sejam um componente essencial do ciberespaço, eles são possíveis apenas a partir da infraestrutura que é o sustentáculo do ciberespaço, a qual está, por sua vez, presente no mundo material, como redes de fibra óptica, estações de rádio e data centers.
A maioria das sociedades hoje depende desses sistemas interconectados que operam as infraestruturas críticas dos seus respectivos países, isto é, energia, água, comunicação, saúde, transporte e afins. O presidente Barack Obama (2009-2017) reconheceu essa dependência em seu mandato:
“Um dos grandes paradoxos de nosso tempo é que as mesmas tecnologias que nos capacitam a fazer grandes coisas boas também podem ser usadas para nos prejudicar e infligir grandes danos […] Grande parte da nossa infraestrutura essencial – nossos sistemas financeiros, nossa rede elétrica, sistemas de saúde – funciona em redes conectadas à Internet, o que é extremamente capacitador, mas também perigoso, e cria novos pontos de vulnerabilidade que não tínhamos antes”.
Dado o cenário de interdependência existente entre as infraestruturas críticas e o ciberespaço, e a dependência da sociedade moderna de sistemas interconectados, a cibersegurança se tornou uma questão de extrema importância. Inicialmente, a cibersegurança era vista, sobretudo, como uma questão técnica voltada apenas para a proteção de sistemas de informação. Com o aumento exponencial das ameaças cibernéticas e da crescente dependência da sociedade em relação aos sistemas informacionais, porém, a agenda de cibersegurança foi elevada a uma prioridade de segurança nacional.
Nesse sentido, as recentes tarifas impostas pelos Estados Unidos aos veículos elétricos chineses não podem ser compreendidas apenas sob a ótica do protecionismo econômico tradicional. Atualmente, os carros elétricos têm capacidade de se conectar à Internet, o que, por um lado, é benéfico, por representar uma inovação tecnológica que permite ao motorista realizar diversas funções do carro de maneira remota. No entanto, essa conectividade também representa uma nova vulnerabilidade na era da Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês).
Portanto, percebe-se que a decisão da administração Biden se baseia, também, em um discurso de segurança do ciberespaço dos Estados Unidos. Embora o texto oficial não tenha mencionado explicitamente essas preocupações, em fevereiro deste ano o governo Biden solicitou ao Departamento de Comércio uma investigação sobre os possíveis riscos que os carros chineses poderiam representar para os estadunidenses. Nesse texto, do qual retiramos o trecho abaixo, a preocupação é evidente:
“Novas vulnerabilidades e ameaças podem surgir com veículos conectados, se um governo estrangeiro obtiver acesso aos sistemas ou dados desses veículos. Veículos conectados coletam grandes quantidades de dados sensíveis sobre seus motoristas e passageiros; regularmente utilizam suas câmeras e sensores para registrar informações detalhadas sobre a infraestrutura dos EUA; interagem diretamente com infraestruturas críticas; e podem ser pilotados ou desativados remotamente. Veículos conectados que dependem de tecnologia e sistemas de dados de países preocupantes, incluindo a República Popular da China, poderiam ser explorados de maneiras que ameaçam a segurança nacional”.
É possível extrair da passagem supracitada reflexões sobre a importância da Internet, do ciberespaço e dos dados na Era Digital. Primeiramente, percebe-se que há, desde a década de 1990, uma gradual redefinição da ameaça tradicional de destruição física em conflitos globais para uma ameaça de interrupção, devido à crescente interconexão entre dispositivos e dependência tecnológica. Em seu livro US Power and the Internet in International Relations (Editora Palgrave MacMillan UK, 2016), Madeline Carr observa que dois eventos foram cruciais na mudança da percepção estadunidense em relação à tecnologia da Internet. Antes vista como um dos alicerces para o exercício do poder dos EUA, hoje ela também é considerada como uma das maiores vulnerabilidades para a segurança nacional.
O primeiro evento foi o bug do milênio. Na época, havia um pânico generalizado de que a virada do século desencadearia interrupções em sistemas de computador em todo o mundo. Temia-se que, devido à forma como diversos dispositivos representavam os anos (em dois dígitos), o ano 2000 causasse falhas nesses sistemas e interrompesse serviços essenciais. O segundo divisor de águas foi o atentado do 11 de Setembro. O sentimento generalizado de vulnerabilidade no território dos Estados Unidos levou ao reforço da proteção de suas infraestruturas críticas. Além disso, os ataques cibernéticos ocorridos na Estônia, em 2007, intensificaram essa sensação de insegurança.
Com isso, não é difícil traçar paralelos entre o que acontece no ciberespaço e o que ocorreu nas demais dimensões convencionais. Fruto das competições sistêmicas no Sistema Internacional, as dimensões marítima, aérea e extra-atmosférica adquiriram contornos de dimensões territoriais. À medida que essas pressões também tomaram forma no espaço cibernético, os Estados se sentem cada vez mais compelidos a se proteger nesse domínio. Como observa Daniel Ventre, doutor em Ciência Política e pesquisador no Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (Cesdip) e da Université de Cergy Pontoise, o ciberespaço não oferece uma transposição precisa de suas fronteiras, dificultando a delimitação territorial nesse campo.
Embora difícil, essa delimitação não é impossível, e os Estados tentam construir fronteiras nesse domínio. A decisão de Biden de impor tarifas sobre os carros elétricos chineses pode, portanto, ser interpretada à luz do “dilema das fronteiras virtuais”. Esse paradoxo diz respeito à necessidade de se manter conectado ao ciberespaço como alicerce para a economia e a segurança, ao mesmo tempo em que há a necessidade de impor a soberania nacional em um espaço onde as noções tradicionais de território e fronteiras são desafiadas.
Assim, as tarifas podem ser vistas como uma tentativa dos Estados Unidos de manterem certo controle sobre o ciberespaço, garantindo que as infraestruturas críticas não sejam afetadas pela conectividade com esses veículos e que os dados sensíveis dos cidadãos do país permaneçam em segurança.
Conheça outros textos das autoras publicados no OPEU
Informe “No bicentenário ‘USS George Washington’ aporta no Brasil: parceria ou dependência estratégica?”, em 4 jun. 2024
Informe “Diante das instabilidades regionais, os gastos militares globais aumentaram em 2023”, em 8 de maio de 2024
Informe “Geopolítica da espionagem e vazamento de documentos: o caso dos EUA na guerra da Ucrânia”, em 23 jun. 2023
* Carla Morena é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) pelo Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (IMM-ECEME), pesquisadora júnior voluntária do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e jovem pesquisadora voluntária na área de Segurança Internacional e Regional no Módulo Jean Monnet do Instituto Brasil-União Europeia (FECAP). Contato: carlamorena.gsilva@gmail.com.
Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 14 jun. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: professoratatianateixeira@outlook.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.