A tensa relação de Estados Unidos e China no Mar da China Meridional
(Arquivo) Secretári0 de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, discursa no 20º Diálogo Shangri-La, em Singapura, em 3 jun. 2023 (Crédito: Chad J. McNeeley/DoD)
Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU]
O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, marcou sua participação no Fórum de Defesa de Shangri-La, em Singapura, no dia 8 deste mês de junho, afirmando que a guerra dos Estados Unidos com a China “não é iminente nem inevitável”. A declaração do secretário foi feita a seguir ao seu encontro com Dong Jun, ministro da Defesa da China.
Lloyd Austin recusou-se a esclarecer a causa de seu pronunciamento. O presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos Jr., entretanto, manifestou-se no mesmo Fórum, tornando pública a razão do parecer do secretário norte-americano. Segundo o presidente filipino, a China chegou muito próximo do que pode ser considerado um ato de guerra, em virtude da morte de um filipino nas escaramuças que os chineses mantêm com a guarda costeira e com a frota mercante de seu país.
Print da transmissão de entrevista com o presidente filipino, no âmbito do Shangri-La Dialogue, em 31 de maio de 2024 (Crédito: CNA/YouTube)
Decerto que o secretário de Defesa norte-americano assumiu a incumbência de dialogar com o ministro chinês, devido ao receio de que alguma iniciativa dos filipinos fuja do controle dos Estados Unidos. O quadro político-estratégico da região da Ásia-Pacífico é muito delicado, de modo que qualquer atitude precipitada dos aliados dos Estados Unidos na região pode envolver os norte-americanos em algum problema de difícil solução.
Os Estados Unidos têm usado a determinação de Pequim em reintegrar Taiwan ao seu controle estatal como permanente instrumento de pressão. De acordo com o Comunicado de Xangai, de 28 de fevereiro de 1972, pelo qual Mao Zedong e Richard Nixon iniciaram diálogo diplomático da República Popular da China com os Estados Unidos, os norte-americanos admitiram que existe apenas uma China e que Taiwan é parte da China. Em contrapartida, os chineses se comprometeram a não usar a força para reintegrar Taiwan ao território nacional. Apesar de haver aceitado o argumento chinês da existência de uma só China, os Estados Unidos não cessam de vender armas para Taiwan, ao mesmo tempo que, dissimuladamente, estimulam os taiwaneses a proclamarem sua independência política, como o fez a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos EUA.
Um aspecto importante desses instrumentos de pressão usados pelos Estados Unidos são as alianças que os une a países da região. Com Austrália e Reino Unido foi formado o AUKUS e, com Japão, Índia e Austrália, compôs-se o QUAD. Além desses compromissos militares, os Estados Unidos assinaram em 1951 o Tratado de Defesa Mútua com as Filipinas, ao qual acrescentaram, em novembro de 2023, por ocasião da reunião da cúpula da Apec (Parceria Econômica Ásia-Pacífico), um acordo de cooperação nuclear em que se comprometem a compartilhar tecnologia e material nuclear com os filipinos.
A China, por sua vez, em face dessas alianças militares dos Estados Unidos com países da região, por ela denominada “OTAN asiática”, tem praticado uma política cada vez mais assertiva de ocupação do Mar da China Meridional. E o ponto mais sensível dessa política é o Estreito de Taiwan, em virtude da conhecida posição de Pequim de não ceder um milímetro em questões de defesa da soberania.
A Marinha do Exército de Libertação Popular possui, na atualidade, a maior frota naval do mundo, com mais de 340 navios de guerra. Além de bases instaladas pelo mundo, vinculadas ao projeto comercial de Cinturão e Rota, os chineses instalaram ilhas artificiais no Mar da China e as têm militarizado. Com essa política naval, os chineses procuram dar uma resposta ao conceito norte-americano de “Indo-Pacífico livre e aberto”.
(Arquivo) Navio da Marinha do Exército de Libertação Popular PLA(N) Qiandaohu (AO 886) (em 1º plano) durante exercício RIMPAC, em jul. 2014 (Crédito: DVIDS/Marinha americana/Shannon Renfroe)
Esse clima tenso envolvendo China e Estados Unidos e seus aliados da região é extremamente delicado porque as relações dos vasos de guerra no mar são muito diferentes das relações entre os exércitos em terra. Em terra, os exércitos são separados por fronteiras claramente delimitadas, constituindo a transposição da fronteira um ato de violação da soberania – o que constitui por si só um ato de guerra. No mar, a situação é bem diferente, uma vez que não existem fronteiras a delimitar o trânsito dos navios. Os vasos de guerra navegam uns muito próximos uns dos outros num espaço que é considerado de todos, o que eleva exponencialmente a possibilidade de choques que podem escalar muito rapidamente.
Em vista desse quadro estratégico, a preocupação das autoridades norte-americanas é administrar simultaneamente suas relações com a China e o comportamento de seus aliados na região Ásia-Pacífico vis-à-vis Pequim. Em relação à China, o objetivo é manter as relações sob certo nível de tensão, esperando que os dirigentes chineses deem algum passo em falso para tirar algum proveito. Quanto aos aliados, o objetivo é mantê-los sob controle, evitando que tomem alguma iniciativa comprometedora. Contar com sua lealdade é muito importante, mas é estritamente necessário que eles somente ajam a partir de ordens ou do consentimento de Washington. Afinal de contas, o que os norte-americanos pretendem é, justamente, restringir todo o jogo político de alto nível às grandes potências, e não permitir-lhe o acesso das médias potências.
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* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU). Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 13 jun. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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